Ano VII

Violência e Paixão

segunda-feira out 17, 2016

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Revendo Gruppo di Famigli in um Interno

Por Ernani Bessa

Eu me aproximei de Visconti com admiração (isso faz muito tempo), mas uma certa reserva, um obscuro estranhamento que levei certo tempo para traduzir e digerir. Quando isso finalmente aconteceu, ao ver Rocco e Seus Irmãos, o sentimento de admiração passou a ser complementado por um respeito afetivo, emocional, que eu notei ser comum em outros admiradores dele.

Pode-se considerar que em parte isso deriva da natureza de seus principais personagens desde Gino, de Obsessão ou N´toni de A Terra Treme ou Maria Cecconi de Belíssima até esses controversos Brumonti e Konrad e o Professor desse Violência e Paixão que acabei de rever, cuja filiação remonta aos referenciais mais presentes de Visconti como o verista Giovanni Verga e os demais derivados de Balzac a partir do séc XIX até início do séc XX. Personagens expondo contradições em suas origens aristocráticas (como a do próprio Visconti, de família aristocrática, em direção oposta à de Balzac), mas de uma aristocracia que agora se desfaz e morre, de uma morte sobre a qual o realizador, nascido no olho do furacão, está plenamente consciente no decorrer desse recente final de século. Essa revisão franca, aberta e sistemática de sua própria origem traz consigo, inevitavelmente, um ingrediente emocional.

Mas no processo de construção de um filme, e mais ainda no de uma obra coerente, o sacrifício pessoal se intensifica. Analisando o conjunto de seus filmes nota-se uma dialética composta por alguns elementos claramente definidos: de uma parte exibindo tudo o que há de caduco, cadavérico em sua hereditariedade, de corrompido e decadente e por outro lado, expondo sua origem a partir da própria consciência dessa corrupção e decadência, com o sentimento seguido da certeza e após da fatalidade levando a uma transformação e a decorrente simpatia e adesão ao homem novo que nasce da sociedade em crise.

A capacidade de adesão

As obras duráveis são sempre o fruto de uma relação dialética entre o artista e o mundo. O autor se propõe muitas coisas: descrever, contar, desmascarar, invectivar, emocionar. E se, as vezes, uma dessas intenções contamina outras deixando a clareza comprometida, isso é um mal menor. A arte “pode”, a arte “não deve” ser clara.

Essas palavras são de Antonioni, falando sobre Visconti, e ele prossegue:

Mas existe em Obsessão um estimulante sentimental autobiográfico que impede as imagens de adquirir essa existência “destacada” e determinante que é típica das grandes obras onde o personagem tem com o autor uma semelhança longínqua, inalcançável, secreta.

É o caso do filme siciliano onde os personagens são filhos adotivos de Visconti. Ele os tornou seus durante sua estada na Sicília. Ele escolheu aqueles que eram principalmente os seus. “Eu passei o Natal com meus pescadores”, me escreveu ele naquela época. E é sua força mais concreta, esta sua capacidade de adesão, de entusiasmo, de sacrifício. (Os grifos são meus.)

Mas Violência e Paixão, filme testamento de Visconti, tem elementos novos. Inicialmente, essas palavras de Antonioni, que datam de 1959, apresentam algum caráter premonitório que vêm expressos nos grifos acima. Voltarei a eles.

Por outro lado, o próprio elemento da premonição tem lá seu caráter anedótico: o escritor e professor Mario Praz, cuja obra “Conversation Pieces: A Survey of the Informal Group Portrait in Europe and America”, serviu de inspiração para o nome do filme nos países de língua inglesa e de forma similar para o título original italiano. Praz também serviu de referencial para o personagem do Professor desde seu desenvolvimento no argumento original do co-roteirista Enrico Medioli. O fato premonitório é citado pelo próprio Praz, que teve sua residência “invadida” por um bando de tresloucados pouco tempo depois da estreia do filme. Nem o mais tresloucado sistema de distribuição americano sonharia com um golpe publicitário dessa natureza! E realmente não foi.

Conversation Pieces – Impressões fugazes

Sobre as Conversation Pieces, em geral, há bastante material informativo no DVD, bem como na internet. Vou me ater no que importa considerar como informação adicional:

Na temática e correspondente ‘postura aparentemente informal’ que caracterizam esses quadros, ou seja, um grupo familiar ou de amigos reunidos interna ou externamente numa propriedade sem o ‘caráter posado’ dos personagens aristocráticos comumente abordados a partir do período barroco, nós devemos preferencialmente entender hoje como um ‘caráter evidentemente posado’.

Em grande parte desses quadros há sim uma mal disfarçada pose. Não a mesma dos personagens nobres, aristocráticos, que era evidente, proposital. Aqui se trata de personagens da alta burguesia, de pessoas com recursos, posses, aparentando uma naturalidade que tenta disfarçar um exibicionismo típico de sua condição social privilegiada. Isso será cada vez mais evidente a partir da revolução francesa. Dessa forma há uma evidente analogia com a situação do Professor interpretado por Burt Lancaster, pessoa do mais alto nível social e intelectual.

Outro fato importante para ressaltar em relação a esses quadros se refere a sua origem, que remonta justamente ao barroco, com autores tão diversos como Rembrandt, Rubens, Vermeer Goya ou Watteau ou com autores bem tardios, como John Singer Sargent, que chega ao séc XX. Mas ainda mais determinante é o caso de Hogarth, contemporâneo do estilo, mas que progressivamente o decompôs com sua personalidade francamente satírica, chegando a uma antinomia em relação às “conversation pieces” anteriores, praticamente desconstruindo o estilo com uma irreverência que cria um corte violentamente satírico ilustrando aqui, justamente, o que ocorre no filme com o comportamento anárquico da Marquesa e dos jovens: eles justamente convertem a residência do Professor num caos decadente digno de um típico Hogarth.

O que torna o Professor um admirador e colecionador desse tipo de pintura, por outro lado, não é um simples capricho ou gosto estético. A questão é mais complexa: Visconti sempre foi um autor com postura estética barroca e nesse filme testamento isso se manifesta densamente. Nenhum detalhe está ali sem função. Mas também não é um autor que entrega tudo de bandeja. E, como sempre, essa postura barroca tem seu preço, é preciso que o espectador se envolva e esteja atento; não há como fornecer um folheto explicativo ou ir dando “dicas”.

As armas do diretor estão expressas na tela por som e imagem e não há nenhum ruído sem função, nenhuma expressão dos personagens a se ignorar. No decorrer de todo o filme as expressões do personagem de Lancaster e de todo o resto do elenco são absolutamente cruciais para acompanhar a evolução psicológica e as intenções mais ou menos obscuras de todos os personagens.

Obs.: Aqui cabe uma consideração particular que é fruto de uma conclusão errada minha após a primeira visão do filme e que me cabe corrigir. A interpretação de todo o elenco, após a primeira visão, me pareceu bastante equilibrada, mas com uma exceção: considerei a interpretação do rapaz (Stefano) e da garota (Lietta), pelos atores Stefano Patrizi e Cláudia Marsani, sofríveis, especialmente a dela, mas ambas num nível inferior ao restante do elenco. Claro que a presença de Burt Lancaster e da Silvana Mangano reforça esse desnível. Mas numa segunda visão, mais tranquila, pude notar a causa dessa minha injusta impressão.

Tendo dirigido dublagem inúmeras vezes, pude perceber agora, mais claramente, a interferência da dublagem nesses dois atores, e que é exatamente esse o problema que afeta a duvidosa interpretação em alguns momentos cruciais do filme, resultado da inadequação da expressão vocal em relação à atuação física onde, pelo contrário, não notei nada fora do ritmo da ação. É na expressão e dinâmica das vozes que está o problema. Simplesmente não é uma ‘interpretação completa’! Isso obviamente não acontece com Lancaster ou Mangano e nem mesmo com Berger, que não são dublados. No caso particular da Dominique Sanda ou de La Cardinale isso não faz diferença pela própria natureza das personagens ‘distanciadas’, mas no casal jovem, dentro do nível realismo-naturalista, a interpretação plena é absolutamente fundamental.

Elementos principais da paleta de Visconti

Seus colaboradores, nesse filme em particular, são justamente aqueles que foram mais constantes: como roteiristas Suso Cecchi D’Amico e Enrico Medioli (ela desde Belíssima e ele em 6 filmes, desde Rocco…), e como montador Mario Serandrei (todos os filmes desde Obsessão); como diretor de fotografia Pasqualino De Santis (Deuses Malditos e Morte em Veneza); mais o cenógrafo Mario Garbuglia (desde Rocco… e O Leopardo) que, conforme orientação de Visconti, recriou o cenário externo de Roma, visto da sacada e das janelas do apartamento, concentrando as construções daquela vista externa da cidade recompondo torres, muros, elementos arquitetônicos, de forma a criar uma síntese estética da cidade a partir do real.

O roteiro começa com o story-line de Medioli já a partir do referencial, Mario Praz (apresentado mais adiante), objeto de conversas entre Visconti, Suso e Medioli. O trabalho prossegue com Suso e Medioli entremeado de extensas ‘conversations’ com Visconti, até a concepção final considerando uma decupagem completa das Cenas.

Essa divisão em Cenas prevê uma condição de filmagem adotada por Visconti (salvo exceções) passando a usar mais de uma câmera, eventualmente, a partir de Rocco… “Para não reiniciar a mesma cena, rodo frequentemente com três ao mesmo tempo … habitualmente, desta maneira: duas são colocadas de forma coerente em função da montagem e a terceira é um pouco, como dizer… ao acaso. Porque eu quero sempre conseguir alguma coisa que o ator não perceba, sem lhe dizer, (…) de forma que ela me dê coisas ocasionais, desapercebidas, um olhar improvisado, um gesto que não era previsto…

Esse processo de trabalho estabelece um comportamento, uma postura em relação ao trabalho de mise-em-scène ou ângulos de câmera as vezes determinantes no estilo de um diretor. Muitos já definiram sua concepção de cena como teatral. Visconti não está preocupado com isso. “Eu sei que dizem as vezes: que meus filmes são um pouco teatrais e meu teatro um pouco cinematográfico. Eu não vejo nenhum inconveniente nisso.

O Tipo referência: Mario Praz (1896-1992

Foi ele o personagem real que serviu de referência para Visconti, Lancaster e os roteiristas ao criarem o Professor. Era um crítico muito conceituado de literatura inglesa que lecionou em universidades britânicas, e era um dos maiores colecionadores de arte decorativa do séc. XIX além de profundo conhecedor das chamadas “conversation pieces”. Um livro dele, “Cenas de Conversação”, era muito conhecido por Visconti. Nele Praz se refere à sutil e mórbida ligação entre um termo de origem latina, Anima (Alma) e seu correspondente anagrama Mania. Pensemos no ato de colecionar do Professor!

Suas Cenas de Conversação, escritas como um estudo erudito, podem ser lidas como um romance. Ele acompanha com ternura e extremada dedicação, as vicissitudes da vida das gerações retratadas neste maravilhoso gênero de pintura burguês. O discorrer do Professor sobre esse assunto na Cena do Jantar certamente vem daí. No livro Praz se concentra com insistência sobre episódios macabros ou de luto que nos conduz a um subtexto que se refere a uma época morta.

Não são esses traços do estilo de Praz, nem seu habitat particular que se assemelham ao Professor de “Conversation Pieces”, mas sim outras afinidades mais específicas. Em “O Pacto com a Serpente” escreve: “Hoje a arte de oferecer não existe mais”. [Vide a Cena do Jantar] ; “O telefone quase aboliu o estilo epistolar (…) e destruiu qualquer possibilidade de contínuos e harmoniosos discursos”, justamente um tema recorrente em todo o desenrolar do filme. Em seu texto ele discorre frequentemente sobre a decadência de uma linguagem composta de “frases bem torneadas, controladas por um espírito brilhante que se compraz em ouvir”, em contraposição com o recente “rude e desbocado modo de falar plebeu”, tão característico da nova burguesia de blue jeans presente no filme.

É aquele “gosto antiquado, formal”, típico de Praz, que interessa a Visconti, para pontuar aquela “generation gap”* presente em todo o decorrer do filme, onde temos como protagonista “um idoso professor assistido por uma velha governante (aludindo, evidentemente a uma situação bem semelhante à minha) enquanto imaginou pôr para morar naquele “casamento”, um bando de jovens drogados e dissolutos”, como afirmou o próprio Praz, aludindo ao fato premonitório inserido no roteiro, situação que Praz viria a enfrentar após a estreia do filme. “Luchino devia estar animado por uma inspiração profética.” Após enfrentar uma similar convivência inconveniente, presente no filme mas menos brutal, Praz, atendendo o pedido de um deles, o mais notório, escreve num livro a dedicatória: “Para (nome do rapaz), vizinho de casa, distante de ideias”. Aqui Praz age como um êmulo do personagem de Lancaster, que se inspirou do próprio Praz. A vida copia a arte!

*_ Termo inglês indicando o conflito de gerações e identificando um “abismo” entre elas.

O Personagem

O Professor veste um robe de chambre, traje convencional e padronizado de seu tipo social, circula por seus vastos salões repleto de livros empilhados e de objetos de arte, em particular quadros típicos de um gênero de pintura inglesa do séc XVIII, “conversation pieces”, em suma: tipo padrão do intelectual humanista, o que não impede sua autocrítica. [No Jantar: “Os intelectuais da minha geração procuravam um equilíbrio entre política e moralidade, em busca do impossível.”] Acreditou na ciência, mas logo se desencantou [Prof. (após colocar “o filho” na cama): “O preço do progresso é a destruição. Percebi que a Ciência Moderna não pode ser neutra. Tem que servir a fins práticos. Então vi a tecnologia da Ciência, de libertadora, tornar-se um tipo de escravidão.”] Impossível não nos remetermos à época atual, com as pessoas ostentando celulares como apêndices adicionais ao qual estão acorrentados, e mais uma infinidade de recursos domésticos ou sociais: câmeras vigiando em toda parte, espionagem pela internet (vide o episódio Snowden), etc..

O Professor esteve na guerra mas, com a ajuda da idade, retirou-se para trás de sua barreira cultural, somando a suas declarações de esteta a felicidade da boa comida. Na cena da cozinha pode-se notar que ele certamente possui ainda terras de onde chegam nutrientes sadios, fartamente reunidos e seguramente conservados num reduto apropriado além de seus vinhos repousando na cave.

Invasores bárbaros

Brutalmente uma tribo estranha invade sua casa (e aqui nos lembramos de Boudu Salvo das Águas [Renoir]; Teorema [Pasolini]; Sete Mulheres [Ford]; Aquele que Sabe Viver [Risi]; O Estranho no Ninho [Forman]; etc.), todos filmes onde um elemento externo invade um núcleo estável mas incompleto, imperfeito na sua estaticidade, e logo se impõe e se instala caoticamente transformando de forma progressiva e determinante aquele mundo particular. São acidentes que entram e transformam, trazendo o caos mas também a luz, inicialmente ofuscante mas, depois, progressivamente esclarecedora.

Essa tribo é liderada por uma Marquesa (Brumonti) decadente, seu amante (Konrad), sua filha (Lietta) e o namorado (Stefano). A vulgaridade da linguagem, a promiscuidade das relações, o choca. Um deles, Konrad, que se apresenta desde o início como elemento dominante, se afirma, marca território e o intriga particularmente: conhece música (Mozart), está familiarizado com aqueles quadros, tem certa cultura, ainda que cultivada para reforçar seus interesses arrivistas. Prevalece um sentimento ambíguo de desconfiança, afeição e rejeição. Essa ambiguidade vai costurar as diversas cenas seguintes com altos e baixos até o Ápice, na Cena do Jantar, e mais além até o suposto final do filme, porque…

Voltando ao início

Uma fita de papel de um aparelho de medir pressão arterial serpenteia pelo chão, por trás dos títulos que apresentam o filme, formando um entrelaçado cardíaco… âmago do ser. Nosso campo de visão se dirige lentamente para o alto, de onde vem caindo a longa fita de papel até… Fusão para outra imagem sutilmente se impondo e revelando, por trás da lente de uma lupa, o detalhe de um quadro.

Inicialmente se percebe, em Primeiro Plano uma senhora que tem ao lado uma menina apoiada em seu ombro; logo a lupa se move para a esquerda revelando uma menina maior que pega algo sobre a mesa (por trás da qual está a senhora); a lupa se volta em seguida para a direita do quadro revelando outra menina ao mesmo tempo em que o Plano se abre passando a revelar todo o quadro.

Professor: “Primoroso!

É a palavra de um admirador típico de um objeto estético, até onde pode perceber o espectador numa primeira visão. Mas após conhecermos o filme de Visconti, quando revemos esse início, podemos induzir outros significados sob a aparentemente profissional atitude do Professor. Podemos considerar, por exemplo, que a Lupa é um convite ao exame retrospectivo do contexto simbólico dessas “Conversation Pieces”, induzindo-nos a um exame mais profundo, introspectivo, desse personagem que examina. Por outro lado, nos perguntamos: a que ponto está o inconsciente desse mesmo personagem, com a Lupa (e a câmera!), buscando um exame de si mesmo? São duas direções a considerar, mas que se interdependem, porque fazem parte de um mesmo contexto de comunicação. O filme vai nos dar algumas informações que se seguem, desenhando alguns caminhos paralelos se interagindo, e que continuam compatíveis e complementares a essa linha de comunicação.

Por exemplo: os bloqueios de que o Prof. se serve como escudos tentando preservar sua privacidade/solidão/estaticidade. Aí já seriam três exemplos, mas o fato é que esses três estados se interdependem e interagem. E só aquela grosseria invasiva, que é manifesta de tão várias formas por aquele grupo de pessoas absolutamente decadentes e promíscuas, praticamente uma antítese do modo de ser do Professor, acaba sendo capaz de romper aquele tríplice escudo e trazê-lo, ainda que temporariamente, à vida, rompendo com a privacidade, depois com a solidão e finalmente com o movimento da vida. Temporariamente.

Uma revelação

O incidente inicial com a reforma do apto superior leva Konrad e o Prof. a um confronto progressivamente revelador: aquele jovem arrivista grosseiro e abusado conhece música, Mozart, óperas; mais ainda, está familiarizado com “conversation pieces”, conhece seus autores e detalhes acima de um conhecimento médio. Claro que o Prof. homem experiente e vivido, se surpreende mas ao mesmo tempo desconfia; sabe que o rapaz poderia ter se informado especialmente para impressioná-lo. Mas a identificação de um quadro como de autoria de Arthur Devis (justamente um dos pintores ingleses mais importantes desse gênero), por um detalhe presente na pintura, mostra que indubitavelmente o rapaz estudou arte num nível acima da média. Isso impressiona o Prof., mas ele, ainda que explicitamente, vai manter essa postura conveniente e desconfiada, eventualmente dirigida aos outros elementos do grupo. Essa atitude, com altos e baixos, vai se prolongar durante todo o filme de diversas formas.

Cuidar de um filho

O filme trata de mostrar progressivamente para nós e, em seguida, para o Prof., o caráter corrupto e promíscuo de Konrad. A informação sobre um evidente relacionamento oculto, irregular, entre ele e Stefano, mostrada numa conversa entre este e a Marquesa é passada para nós mas escapa ao Prof.. Inicialmente pode se pensar em sexo, mas o final do filme nos sugere drogas. Essa clareza o filme fica nos devendo. Assim como as razões da agressão sofrida por Konrad, mas nesse caso particular a dúvida se justifica.

Mas é justamente essa agressão que vai permitir ao Prof. o exercício das funções de pai que ele não teve oportunidade de usufruir com o fracasso de seu casamento. O forma como ele cuida de Konrad é inequívoca: subitamente esse rapaz é o filho que ele não teve. A forma como ele cuida é instintiva, natural, embora ele não tenha nenhuma familiaridade com isso. Esse é um dos momentos mais belos do filme e, consequentemente, de um ator de extrema sensibilidade. Lancaster está excelente em todo o filme, mas aqui ele se supera.

O Imutável; a morte em círculo

A estaticidade, principalmente, que seria, como o filme nos mostrará, um prenúncio de morte ou mesmo uma morte em vida (a história que ele conta no final, sobre o que lê no seu livro de cabeceira, de um inquilino “que muda para o apartamento de cima e cujos passos ele ouve e imagina, que depois desaparece por certo tempo e não é mais ouvido… mas que volta, tornando sua ausência cada vez mais rara e sua presença mais constante; ele está morto; a consciência de que ele tinha chegado ao fim da vida se anunciou como um dos disfarces traiçoeiros da morte.

O teatro… e a cena final

A maior afinidade entre Visconti/Lancaster e a atitude postural de Mario Praz se nota, mais precisamente, na sensibilidade comportamental que os leva na direção de uma postura teatral ao lidar com o mundo que os rodeia, pessoas ou objetos, estabelecendo um comportamento litúrgico, cerimonial, como um escudo a separá-lo ou defendê-lo da inconveniência das intimidades.

É um “conceber a vida como um teatro”, postura também característica das “Conversation Pieces”. Nelas se nota a falsa consciência de uma classe social que incorporou em si ‘a arte de posar’, pretendendo garantir para si um escudo de ‘firmeza e segurança’ no âmbito do convívio em sociedade. O tema central do filme consiste, exatamente, na falência desta ilusão e o consequente desmascaramento dessa falsa consciência de si mesmo.

Freudianamente se poderia entender a estruturação dessa postura como um derivado da falência familiar do professor, vindo de um casamento desfeito e sem filhos. O entendimento do personagem e sua consciência progressiva de uma situação inicialmente aventada por ele mesmo, mas depois sugerida, de que Konrad poderia ter sido “um filho” para ele, um filho que ele rejeitou, ou ainda que ele abortou, é exatamente o que o fere mortalmente no epílogo.

E o que temos justamente conduzindo à Cena Final é a complementação do Plano Inicial:

Ao transportar o “filho” morto para a sala… voltamos para o exato momento em que nosso olhar acompanhava a fita de papel medindo a pressão… com nosso olhar subindo, buscando a origem dela, até vermos o aparelho e as mãos do médico; a câmera corrige para a esquerda, abrindo o campo de visão com a imagem do Prof. deitado; a cena prossegue com a visita da Marquesa, que depois o deixa com Lietta. que diz: “…não acredite, ele não se matou. Eles o mataram. O senhor era o único que tinha alguma fé nele. Não lhe negue isso agora que está morto. Adeus”. (Ela sai.)

‘O Professor ergue os olhos, enquanto ouve passos no andar de cima.’

Ah!, desculpem, vou parar por aqui.

Estou ouvindo passos na porta da rua. Espero que seja o cara da Light!

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