Elle
Elle (2016), de Paul Verhoeven
É preciso fazer sempre a apologia da violência, em tempos de conflito ou paz. O cinema nasce da violência (corta!) e morre com o sexo, diria Orson Welles. Aliás, dizer, exatamente, Welles, não disse a primeira afirmação – filmou. Já a segunda, sim, expressou verbalmente: para o diretor de A Marca da Maldade, não há muitos motivos para se retratar o sexo na película, uma vez que o ato não possui qualquer vantagem narrativa, não faz a trama avançar etc. Paul Verhoeven, ao ser confrontado com tal opinião, em recente conversa para o BFI, responde com simplicidade: Welles pensava assim por ser americano.
Verhoeven, que, definitivamente, é holandês, acredita que se pode obter determinados efeitos ao se filmar o sexo; que a prática permite, por exemplo, que duas pessoas se olhem nos olhos. Como então filmar o olho no olho entre vítima e estuprador? Do sexo violento, um paradoxo dos mais complexos e moralmente perigosos, nasce e morre um filme cujas imagens, como sempre em Verhoeven, iludem e desorientam.
Ao contrário do contemporâneo cinema-Enem brasileiro (cheio de questões), Elle está interessado nessa operação bem mais complicada que é promover um olho no olho com o espectador ao mesmo tempo em que na tela se desenrolam as mais hediondas imagens – ou seja, choque entre a verdade do olho no olho e da mentira que é toda e qualquer imagem filmada. Então temos a fotografia de Michèle criança, rosto chamuscado, usando calcinha e uma blusa apenas, encarando a câmera, logo depois de ter ajudado o pai psicopata a atear fogo à casa. Ou, ainda, Michèle, já adulta olhando calmamente para os amigos e lhe contando que fora estuprada. Isabelle Huppert, quando convém, consegue fazer dos olhos uma área de abstração, de uma expressividade que não se encaixa naquelas velhas categorias do cinema silencioso, como pesar, alegria, tristeza, desprezo (Uma Relação Delicada também é exemplar no quesito “abstração do olhar”). Em muitos momentos, Verhoeven precisa esconder os olhos da atriz atrás de óculos escuros, que a personagem usa mesmo em dias muito nublados: os olhos da medusa poderiam transformar o espectador em pedra – Sharon Stone já foi capaz de fazer homens suarem, na tela ou fora dela, apenas com um descruzar de pernas; quando se diz que Verhoeven filma mulheres fortes, não é, justamente, força de expressão.
Ela, a mulher, é sexo e morte, é orgasmo (klitoris, em grego, é pequena morte, não é mesmo?) e violação. Depois de desejar o estuprador, Michèle se fortalece ainda mais, nessa grande ironia da desgraça que é Elle. Assim sendo, a vitória deve ser encarada com o mesmo senso de humor que a derrota. Ou, caso contrário, o último plano do filme não se desenrolaria em um cemitério, mostrando a descontraída conversa entre duas mulheres que passaram o diabo nas últimas horas. O que não significa dizer que, por trás da galhofa, não exista uma nobre e louvável ideia: a recusa de Michèle em ser vítima.
Esse falso filme de vingança – quase todo longa de Verhoeven é um falso filme de determinado gênero -, cheio de enigmas de esfinge, de falsas pistas visuais e de dubiedade, se revela na violência. No fundo, o holandês sabe que é apenas no sexo e na violência em que a verdade brota, sem disfarces, sem máscaras. Verhoeven, como o escritor protagonista de O Quarto Homem, é daquele tipo que mente a verdade, mas que nunca nega os desejos primordiais do ser humano, o que faz de Elle algo fundamental para combater e arrebentar com a apatia moral em que vivemos.
Wellington Sari
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