Ano VII

Aquarius – texto 2

segunda-feira out 17, 2016

aquarius2

Aquarius (2016), de Kléber Mendonça Filho

Aquarius, novo longa de Kléber Mendonça Filho, almeja retratar um processo de resistência. Clara (Sônia Braga), uma viúva já em seus sessenta e poucos anos, é a última ocupante de um edifício à beira mar, na praia de Boa Viagem, zona nobre de Recife. O edifício, uma destoante construção de meados do século passado, está sendo comprado por uma construtora. A intenção dessa última é demoli-lo e erguer um novo arranha-céu que, enfim, “harmonize” com os outros já presentes em seu entorno. A protagonista, de uma tradicional família burguesa que sempre habitou no prédio, se recusa a vender seu apartamento para mais uma voraz empreitada que se sobrepuje à memória afetiva ali encrustada.

A grande questão, porém, é que é muito fácil de se resistir em Aquarius. Isso não advém apenas do fato de Clara usar o poder de barganha de sua classe social, ou por uma eventual ineficiência da construtora em lançar mão dos expedientes mais inescrupulosos possíveis a fim de expulsar a última residente do edifício. Longe disso. Clara faz o diabo, mobiliza tudo o que está ao seu alcance (inclusive a chantagem, proporcionada por um contato seu na grande mídia) para poder permanecer em sua residência (afinal, ela também não necessita do dinheiro da possível venda, como deixa bem explícito em conversa com os filhos). A construtora, encarnada na figura do jovem herdeiro Diego (Humberto Carrão), não fica para trás: autoriza festas orgiásticas bem no apartamento que se localiza logo acima ao de Clara, aluga o local para uma igreja neopentecostal e, como nada disso funciona, parte para a pura e simples destruição – ainda que lenta e silenciosa – da edificação. Até aí, teríamos apenas um mero conflito entre instâncias com poder de barganha e interesses divergentes. Não é disso que trata Aquarius.

Como dizíamos, a busca aqui é por retratar um processo de resistência. Clara é a heroína e a construtora Bonfim é uma exímia representante do processo de especulação imobiliária, que tomou conta de diversas capitais brasileiras nos últimos anos. Clara deve resistir contra esse processo e a tentativa do filme é fazer com que haja uma convergência entre o plano subjetivo, de memória afetiva da protagonista para com aquele prédio, e o plano social e político, no qual o ato de insurgência de Clara reverberaria numa escala muito maior do que o mero apego pessoal de uma pequena burguesa para com a sua propriedade. No choque entre esses dois planos – e assim como em o O Som ao Redor – procura-se esboçar o retrato de um momento do país no qual o já conhecido processo de substituição do ideário desenvolvimentista pré-64 pela modernização conservadora se defronta com estruturas sociais contemporâneas dotadas de uma recrudescida violência herdeira das estruturas mais arcaicas de nossa história (na obra de Kléber, os exemplos mais notáveis são a figura da empregada doméstica e a organização das forças que regem o espaço urbano como correlatas às já presentes no ambiente agrário-rural e escravista).

Nesse trajeto estamos, sem sombra de dúvida, juntos de Clara. Nada nos é furtado no processo de criação de empatia pela protagonista, de adesão ao seu universo. Não basta a evocação de um passado que estabeleça a relação de afeto – para além do apego material – entre Clara e o prédio: é necessário a criação de um flashback reforçando como outros membros da família ali vivenciaram suas melhores lembranças. Não basta que o tema da memória seja evocado pelo mesmo móvel presente nesse flashback (o qual será retomado não só na cena seguinte, mas sim como um leitmotiv no decorrer de todo o filme): é necessário que a protagonista explane, detalhadamente, para uma jornalista, sobre como a relação com os LP’s vai muito além do puro fetiche, sendo calcada no fato de que vários substratos de histórias pessoais vão se acumulando ali, naquele objeto, conforme o mesmo vai passando, ao longo dos anos, de mão em mão (dá mesma forma em que ela aplicará uma lição de moral – na verdade, um verdadeiro esculacho – em seu antagonista, Diego). Tudo isso costurado pela seleção musical mais virtuosa possível dos últimos 50 anos, sempre “passando mensagens” ou “dialogando” com a cena.

Não se trata de exigir exacerbadas nuances de uma construção que se pretenderia “clássica” (e nem de afirmar que uma dramaturgia genuinamente clássica demandaria polos opostos extremamente planos, sem um pingo de contradição). Talvez a construção das personagens em Aquarius tenha mais a ver com os tipos facilmente identificáveis da commedia dell’arte do que com heróis e vilões clássicos, repletos de contradição. Novamente, não é aí que está, necessariamente o problema. A questão é que o ato de resistência em si – bem como a nossa adesão a ele – se dá sem preço algum a se pagar, ou seja, se esvazia. A cada ataque da construtora, há um contra-ataque virtuoso de Clara (sendo o mais representativo, talvez, aquele que ocorre após a “festinha” promovida no apartamento de cima), uma série de respostas reiterativas em torno daquilo que já estávamos cientes.

Assim, a própria estrutura reiterativa do filme (cada uma das três etapas é uma exímia demonstração de um dos aspectos virtuosos de Clara, até mesmo quando ela recorre à chantagem, afinal, até aí é necessário expor a sua boa consciência e deixar claro que está lançando mão desse expediente por se tratar de uma vingança contra um bando de “filhos da puta”, como afirma seu sobrinho) contradiz a própria ideia de figuração do que seria um árduo processo de resistência, cujo significado se mostraria mais amplo do que a mera insistência em permanecer no edifício. As imagens de Aquarius parecem, nesse sentido, serem feitas muito mais para serem lidas como mensagens, com um eterno e persistente regozijo na identificação de seus significados e correlações supostamente cifrados por dentre seus estranhamentos visuais, do que para encarnarem qualquer tipo de dramaturgia que seja. Essa nossa leitura-guia está muito mais interessada em apresentar-nos a situação com um misto de retidão (“é muito melhor dar do que receber um câncer”) e resignação (“se eu puder dar uma dorzinha de cabeça que seja, já está de bom tamanho”), do que buscar retratar um processo de resistência que encene, de fato, a convergência – da qual falávamos – entre o plano subjetivo-afetivo e o plano social-político. Justamente por já estar supostamente dada nas entrelinhas das mensagens emitidas, tal convergência, paradoxalmente, não ocorre. Nessa equação do que não se processa, a resignação, acima mencionada, vence por completo, ainda que plenamente travestida de retidão.

Num texto clássico sobre Os Fuzis (1964), de Ruy Guerra, Roberto Schwarz identifica os soldados que protegem o armazém como os nossos emissários (de olhar, de atitude e de sentimento), naquela situação de conflito social flagrante e iminente. Em Aquarius, a musa Clara é, igualmente, nossa plena emissária. Ao contrário do filme de 64, porém, essa abordagem formal não é a cristalização ambígua e dramática de um dilema que perpassa o pessoal e o político, mas sim a expressão de uma confortável coadunação. Apesar de muito distintos em suas abordagens, Aquarius representa, junto com Que Horas Ela Volta? (2015), o cinema de reconciliação entre um determinado imaginário e uma determinada narrativa de esquerda, dos últimos 14 anos no Brasil. Nada mais contraditório para um filme que se avoca como político.

Guilherme Savioli

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As incólumes paredes do aquário, por Marina Fuser

O Som ao Redor

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