Aquarius
As incólumes paredes do aquário
Por Marina Fuser
Vivemos um tempo de Deus nos acuda, de grandes desilusões, de colapsos e cataclismas. E ainda assim, no olho do furacão, alguém resolveu fazer um filme sobre uma velha senhora em seu apartamento. Não é um filme da grande política, com uma luta entre dois campos claramente constituídos que definirá os rumos da humanidade, tal como sugere a tônica das redes sociais. Não obstante, o filme realiza o prodígio de capturar o espírito do nosso tempo, com uma política capilar que atravessa as paredes de um edifício, onde reside Clara. A protagonista é interpretada por Sônia Braga, a quem o tempo fora generoso, conservando a beleza da jovem Gabriela (1983).Clara permanece firme no último apartamento do prédio e resiste incólume às pragas bíblicas e profanas do jovem empreiteiro que quer, custe o que custar, se apossar do apartamento para tocar seu primeiro grande projeto imobiliário. O clima de golpe só por acaso se assemelha ao que rola atualmente no congresso. Sitiada, Clara toca a vida do seu jeito, com seus discos de vinil, seus álbuns de fotografia, e os cacarecos que colecionara durante toda uma vida. A vida e a passagem do tempo são linhas turvas e delicadas, que tecem uma narrativa complexa através de uma poética de imagens capturadas por uma câmera que passeia pelo apartamento.
O filme começa em flashback, no momento em que sua tia é homenageada em seu aniversário de setenta anos. Enquanto os irmãos mais novos de Clara prestam suas reverências à tia por sua gloriosa luta contra a ditadura, a mente da homenageada vagueia em torno de reminiscências vívidas de um amor proibido. Urge uma saudade voraz, que precisa finalmente ser compartilhada em reunião familiar, num desabafo após décadas de silêncio velado. A família responde com sorrisos constrangidos e olhares encabulados. As homenagens se seguem numa súbita mudança de assunto, que preenche o vazio de um desconforto com uma outra homenagem, quiçá a mais relevante: Clara vencera um câncer de mama e finalmente podia estar entre os seus. Os anos 80 no filme falavam da vitória de Clara, falavam da morte de John Lennon, cujo último vinil ela guardara por aludir a seus sonhos para o futuro. Uma nostalgia daquilo que pudera ter sido, não tivesse o John Lennon sido assassinado. Com efeito, era um tempo em que ainda havia esperança. Atenta aos detalhes, a câmera sugere esse tempo com velhas fotografias, recortes de jornal, e diálogos sobre o passado com a visita dos irmãos e filhos. O corte geracional chega à filha, uma mulher batalhadora, endurecida pela pressa e angústia de um tempo que a desumaniza.
Pragmática, ela vai direto ao assunto, não tenta suavizar a dor da mãe que está prestes a ser forçada a deixar o lar onde fora tão feliz. A filha é obrigada a se desdobrar no tempo do dinheiro, na era digital, do instantâneo, com seus dois empregos. Com a demissão repentina da babá é a Clara que cuida do netinho, que ainda não deixou as fraldas. O sobrinho também frequenta aquele espaço acolhedor, de uma ternura que ensina a viver na intensidade de Bethânia. Pois é nesta intensidade que Clara resiste, sólida, tal como as paredes do edifício. Se Fome (2016) de Cristiano Burlan é um filme que ritualiza o chão do maltrapilho, Aquarius é um filme de paredes. Perigosas, finas, trepidantes, ruidosas, bárbaras paredes que cercam o apartamento de Clara. A tinta branca com que ela manda pintar a fachada do prédio é mais um ato de desobediência civil, não poupando esforços para medir forças com os novos condôminos. A parede que se situa entre a câmera e os corpos que passeiam pela casa dá uma camada a mais ao espaço do íntimo, com dobraduras, portas, janelas, e ambientes onde a narrativa entra com cuidado. Não gostei da cena da festa. Achei as outras senhoras meio bobalhonas, e para variar, só falavam de homem, como em muitos filmes que reprovaram no teste de Bechdel (teste que avalia o nível de complexidade das personagens mulheres). Não consigo ver uma personagem tão densa dando gritinhos eufóricos com as senhoras, e muito me custa crer que suas amigas teriam este nível quase infantil de afetação. Não funcionou para mim. Mas em geral, Aquarius é um filme de peixe grande. Sônia Braga está ótima em seu papel.
No fim da sessão, o cine Belas Artes se viu tomado por gritos eufóricos de “Fora Temer”, em uníssono. Foi um público que riu quando as palavras de Reinaldo Azevedo serviram de marketing para o filme, um filme não recomendado para “homens de bem”. A platéia não se apraz em manter as aparências de “homens de bem” nos parâmetros da Veja. Muito pelo contrário. Com a ajuda do colunista da Veja, o filme faz sucesso entre uma esquerda mais ou menos intelectualizada que frequenta salas de cinema fora de shopping centers. Mas cuidado com o entusiasmo para não tomar a parte pelo todo: nem tudo o que aparece na sua linha do tempo corresponde ao que pensam fora da bolha. Debater se Aquarius representa ou não o Brasil no contexto do Oscar é meio que procurar pêlo em ovo. Teríamos que antes nos perguntar o que a cerimônia do Oscar representa. Aquarius já deu um baile de direção de fotografia, e de quebra sambou na cara do establishment ao coincidir com o roteiro da vida que imita a arte. Nada como uma analogia acerca da colônia de cupins que corrói a frágil mobília democrática. Vem a calhar! Foi um filme que deu certo. Mas porque um filme sobre a velhice, e uma certa nostalgia que resiste aos gananciosos empreiteiros serviria para o prêmio perfumaria de Hollywood? Por que raios se cogita que a Academia de Cinema teria algum interesse nisso? Não se enganem: a premiação ritualiza uma política interna, que não tem tanto a ver com a qualidade cinematográfica, mas antes com o valor comercial de um filme. Aquarius é um filme de autor, mas passa longe de um sucesso mundial de bilheteira. O protesto que rolou em Cannes consagrou o filme entre os cinéfilos que lotaram as salas de cinema do lado B. Isso por si só já é um grande mérito. Mas segue sendo um filme underground.
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