Ano VII

Café Society

domingo out 16, 2016

cafesociety

Café Society (2016), de Woody Allen

Ao se aproximar o trigésimo minuto de projeção de Café Society, uma imagem que a princípio poderia parecer periférica – um sutil gesto de afago que Leonard, cunhado do protagonista Bobby, faz no ombro da esposa Evelyn, enquanto essa lê uma carta do irmão – resume em pouquíssimos segundos um dos pontos centrais desse 46º longa-metragem dirigido por Woody Allen. Pois, aos 80 anos de idade, Allen se permite aqui em seu novo filme justamente um gesto de afago. Que não se estende somente ao público, mas também ao cinema e principalmente a si mesmo. Com isso, ao autor chega àquele que é seu melhor e mais rico trabalho no século XXI, mais especificamente, o melhor desde Desconstruíndo Harry (1997), até então seu último indiscutivelmente grande filme.

Allen retoma aqui as pontas da melhor fase se sua carreira, e são dois filmes que podem ser considerados marcos nessa fase – Hannah e Suas Irmãs (1986) e A Era do Radio (1987) – aqueles que mais ecoam em Café Society. O primeiro na abordagem agridoce de um universo familiar, o segundo na aproximação memorialista de um passado que beira a utopia. O fato de Allen ser um cineasta centrado em seu universo particular já pode ser listado como um paradigma de sua obra. Pois bem, temos aqui que, no presente trabalho, ele consegue, sem injetar a rigor nenhuma novidade nesse universo temático, banhá-lo com um frescor digno de uma visão de mundo de quem guarda ainda uma considerável parcela de otimismo juvenil – ausente na maior parte de sua obra nas últimas décadas – aliada à experiência de quem muito viveu, e, com isso, errou e acertou.

Dentro dessa lufada de frescor que caracteriza Café Society, temos que observar que a maior contribuição para tal se dá pelo fato de que o diretor consegue fazer aqui seu filme mais essencialmente visual. Não me enquadro entre aqueles que consideram Allen um cineasta que se caracteriza como um autor de mise-en-scène pouco elaborada. Se voltarmos à já citada melhor fase de sua obra, podemos comprovar que, especialmente a partir do salto autoral com Annie Hall (1977), a mise-en-scène se impõe de forma expressiva, dentro da tradição americana da “encenação invisível”, que não chama atenção para si mesma, onde enquadramentos e movimentos de câmera virtuosísticos dão lugar a um trabalho delicado, ressaltando indiscutivelmente o universo abordado. Em seus grandes filmes, Allen conseguia realizar um trabalho de câmera rico em sutilezas, mas indiscutivelmente submisso ao texto e aos conceitos claramente demarcados em seus roteiros, que muitas vezes atingiam uma intensidade tão evidente que parecia, ao menos para os pouco atentos, restringir a expressividade das imagens. Se seus trabalhos ao longo do presente século parecem ter perdido uma identidade visual, através de uma concepção de imagem que, em alguns momentos beirou o desleixo – especialmente nos filmes da “fase inglesa” e com honrosa exceção para Igual a Tudo Na Vida (2003) – a partir de Blue Jasmine (2013) e Magia ao Luar (2014), Woody parece ter retomado o gosto pelo capricho na elaboração dos planos. Mesmo o fraco e equivocado O Homem Irracional (2015) apresenta planos bem realizados.

Dessa forma, Café Society é, após uma longa trajetória, o primeiro filme na carreira de Allen no qual a expressividade das imagens supera a palavra em sua plenitude. Observa-se que aqui temos os reconhecidamente virtuosos diálogos concebidos pelo autor agora substituídos por conversas em sua grande maioria prosaicas, ressaltando uma familiaridade com temas que lhe são caros: a fragilidade das relações amorosas, a nostalgia de tempos muitas vezes não vividos, a consistência dos laços e tradições familiares, em especial a herança judaica, que há anos não era tão explicitamente explorada em sua obra. Não dá pra contestar que Allen trabalha em seu universo de clichês decorrentes, mas aqui, em função do apuro visual, tais clichês surgem com uma natural fluidez que há muito havia praticamente desaparecido de seu cinema. Tudo isso vem a coroar o fato de Café Society ser um filme que, mesmo considerando a narração em off com a voz envelhecida do diretor, se faz entendido muito mais pelo que é visto do que por aquilo que é falado na tela.

Uma série de sequências chama a atenção pela riqueza de sua concepção e exemplificam a tese que aqui pretendemos desenvolver. A começar pelo plano hitchcockiano (que também referencia A Um Passo da Eternidade) onde a câmera observa do interior de uma gruta a chegada do casal Jesse Eisenberg-Kirsten Stewart até eles iniciarem um beijo. As aproximações e diálogos entre Eisenberg e seu tio Steve Carrel são notadamente expressivas, com destaque à sequência na qual o último se dá conta que ele e o sobrinho amam a mesma mulher: inicialmente ocupando o mesmo quadro, à medida que as tensões passam a se delinear, os dois atores deixam de aparecer no mesmo plano. Os exemplos seriam infinitos, mas o rigor da realização de Allen se impõe ainda de forma mais soberana quando Carrel, um renomado executivo de estúdios na Hollywood dos anos 30, tenta reconquistar sua amada, agora trabalhando na chapelaria de um clube noturno e tem sua conversa de cunho íntimo interrompida sucessivamente por várias intromissões que remetem a seu universo profissional.

Esse universo do cinema dos anos 30 é retratado por Allen em seu aspecto nostálgico, sem que essa nostalgia ofusque uma visão crítica, em especial no que concerne à superficialidade das relações humanas numa Los Angeles artificialmente brilhante e ensolarada que se opõe a uma Nova York de tons discretos e opacos, mas onde Bobby, assim como o próprio Woody Allen se sente natural e verdadeiro. Não é à toa que Bobby, em sua estada californiana, só consegue sentir-se à vontade com o casal novaiorquino formado pelo roteirista e sua esposa Parker Posey e com uma Vonnie a princípio tão deslocada quanto ele. Desse deslocamento, Allen não esquece de retirar a comédia, que surge de forma mais abertamente franca no frustrado encontro entre Bobby e uma prostituta judia, assim como ele.

É em Nova York, para onde a ação se transfere na segunda parte, que Café Society melhor consegue alcançar a plenitude da proposta de Allen para seu filme. Um ponto nevrálgico se dá a partir da cristalização da força das relações entre Bobby e os membros de sua família. Dos eternos clichês, que incluem a onipresente mãe judia (Jeannie Berlin, genial), o pai igualmente rabugento e simpático, o tio que abandona as tradições, a irmã voluntariosa e o cunhado intelectual, se impõe a firmeza dos laços afetivos, que se estendem incondicionalmente até mesmo ao irmão criminoso (Corey Stoll). Com isso, Allen retorna ao universo dos gângsters que lhe havia rendido o excepcional Tiros na Broadway (1994), agora de forma ainda mais leve, e por que não dizer, carinhosa. É aqui também que, com igual e surpreendente leveza, retoma de forma orgânica a temática da associação morte-culpa, que Allen, apesar de tê-la esgotado de forma pungente em Crimes e Pecados (1989), vinha trazendo de volta com recorrência, porém de forma artificial e redundante, em vários trabalhos mais recentes.

Em sua cidade-berço, Allen retoma igualmente sua concepção de Nova York como o lugar ideal para que frutifiquem velhos e novos amores. Nas cenas de Bobby, seja com sua atual esposa (Blake Lively), seja com uma Vonnie – legítima herdeira da árvore genealógica de Annie Hall e outras personagens consagradas por Diane Keaton – que ressurge agora como esposa de seu tio, o diretor visita novamente a interação entre as pessoas e a cidade, que se impõe como mais um personagem, dentro de uma sucessão de sequências que espelham, agora em cores, o espírito reinante no seminal Manhattan (1979). Chega a ser chocante a forma como Allen consegue, nesses momentos, reproduzir pela milionésima vez a imagem de um casal passeando e conversando à beira do Rio Hudson ao som da canção de Rogers & Hart igualmente intitulada “Manhattan” e impô-la aos nossos sentidos com um frescor que remete ao ineditismo. São momentos que ressaltam aquele gesto de afago ao qual nos referimos no parágrafo inicial e que fazem de Café Society um filme onde, apesar de naturais divergências entre os personagens, não há espaço para o rancor entre suas relações.

Ao se aproximar o final do filme, a presença da morte emerge e o breve momento no qual uma Jeannie Berlin, desolada, atravessa o quadro em luto recitando uma oração em hebraico, se torna uma imagem que define com o desespero decorrente da sensação da perda com inequívoca propriedade. Apesar de tudo isso, é um uma mistura de melancolia e contestável otimismo que vem a permear as últimas sequências de Café Society, que entre outras virtudes, chega a se impor como um filme que aborda com extrema delicadeza o fluxo natural das relações da vida. Retoma aqui a frase, pronunciada na primeira parte do filme e que diz: “Viva todos seus dias como o último, alguma hora esse acabará chegando”. Woody Allen parece aqui ter captado esse espírito, e fez de Café Society aquele que poderia ser considerado um belo filme testamento, sem que esse, certamente, não venha a ser o último. Desejamos a ele que ainda venham muitos, porém não dentro de um pensamento em que seu trabalho anual volte a surgir numa lógica meio “piloto automático”, como muitas vezes ocorreu nos últimos 20 anos. Nossos votos são que Allen siga o exemplo de Manuel de Oliveira que foi, até sua partida aos 106 anos, fazendo com que cada novo trabalho fosse considerado “O filme” e não somente “mais um filme”.

Gilberto Silva Jr.

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Outros Woody na Interlúdio:

Homem Irracional

Magia ao Luar

Blue Jasmine

Para Roma, Com Amor

DVD: Tiros na Broadway, Desconstruindo Harry e Poucas e Boas

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