A Frente Fria que a Chuva Traz – texto 1
A Frente Fria que a Chuva Traz (2015), de Neville D’Almeida
A Frente Fria que a Chuva Traz é uma declaração de ódio ao Rio de Janeiro.
Neville pega o cinema diretamente do ponto em que a cena do esporro de Fulaninha, de David Neves, havia deixado. Mesma frontalidade, mesma ausência de comiseração pelos personagens e pela cidade, mesma grosseria.
Diante da economia do filme, pode-se pensar que se trata de uma obra minimalista-conceitual sobre a relação morro-asfalto: só que a laje em Neville não é conceito, mas sobretudo palco.
Em sua inclinação teatral, o filme está menos interessado em entregar um retrato sociológico nuançado de classe do que em se voltar para a dimensão performativa dos atores: apegar-se à superfície vulgar dos corpos, do texto, dos gestos, do vocabulário, dos figurinos.
O filme se sustenta inteiramente na relação entre os atores e o texto. A câmera é sempre frontal, sem subterfúgios, jamais atenuando a obscenidade dos diálogos (racismo, classismo, degeneração moral burguesa: está tudo na ponta da língua). A pancada é tanto mais forte quanto a palavra é preservada na sua integralidade.
Em certo momento, uma espécie de monólogo: Bia (Nathalia Limaverde) tenta romper com o escárnio geral e “falar sério”. Ela conta uma longa história — boate, brechó, terapia etc. etc. Mas a câmera de Neville é dura, ela mantém sempre uma distância, jamais indo no sentido da condescendência, de confortar a personagem. O “monólogo” reforça a sensação de abandono da personagem: abandono em sua futilidade, seu autocentramento mimado, seus preconceitos — tudo aflora desde que se deixe a personagem falar e falar sem socorrê-la.
É que Neville não se importa: cineasta sem reputação, não-autor, ele não tem nada a zelar, nada a preservar. Ele simplesmente não se importa. O filme mistura fascínio escatológico, humor negro e um bom punhado de desprezo pelos personagens. Não há meio-termo humanista, e é isso que é desconcertante: o lugar do filme é aquele de uma teatralização crua, apegada à exterioridade, à superfície dos personagens. Toda mediação humanista, conceitual ou sociológica é aniquilada em prol de uma performatividade vulgar.
Para que fique claro: o filme não é um “retrato simplificador” de classe, como alguns críticos certamente insistirão em qualificá-lo. Neville parte dessa simplificação para ir até níveis estratosféricos de vulgaridade. É no trabalho com essa vulgaridade, em sua exposição de maneira absolutamente frontal, que o filme encontra seu impacto e sua força.
Calac Nogueira
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