LANÇAMENTOS EM DVD
LANÇAMENTOS EM DVD – 2016
Por Sérgio Alpendre
* Com a exceção de Kwaidan, Nijinski e Todas as Manhãs do Mundo, os textos aqui presentes foram publicados inicialmente, com pequenas diferenças, no extinto Guia da Folha (livros, discos, filmes), entre fevereiro e abril de 2016, daí o espaço maior que meu habitual para as sinopses.
DESTAQUE:
Kwaidan: As Quatro Faces do Medo (Kwaidan, 1964), de Masaki Kobayashi
Nos anos 60, quem não surfava na nova onda da Nuberu Bagu fazia cinema de gênero. Dois diretores que começaram nos anos 50 e que, de certo modo, influenciaram os jovens da Nuberu Bagu fizeram os melhores filmes de terror japoneses de todos os tempos. Kaneto Shindo fez Onibaba (1964) e Kuroneko (1968), Masaki Kobayashi fez Kwaidan, fechando a trinca de obras-primas de terror japonês dos anos 60. Claro que outros filmes acompanham esses três de perto, sobretudo Jigoku (1960), de Nobuo Nakagawa, e dois filmes de Kiyoshi Kurosawa, Cure (1997) e Pulse (2000), pleiteiam um lugar nesse olimpo. O fato é que nenhum desses diretores se iguala a Kobayashi, nem mesmo Shindo e Kurosawa.
Após a impressionante trilogia Guerra e Humanidade (1959-1961), Kobayashi não precisava provar mais nada para ninguém; era mesmo um diretor do primeiro time. Fez logo em seguida um gendaigeki modesto, até onde lembro (o modesto de Kobayashi, desnecessário dizer, é altíssimo): The Inheritance (1962), que me pareceu devedor do melhor filme de Akira Kurosawa (Homem Mau Dorme Bem, de 1960), mas posso estar equivocado. Logo em seguida engata uma obra-prima absoluta: Harakiri (1962). O que mais quer esse homem? Fazer o filme de horror definitivo: Kwaidan (1964). Pronto. Depois desse, ficava impossível não considerar Kobayashi como um dos grandes cineastas de todos os tempos. Ele faria ainda mais: Rebelião (1967) e Aqui Termina o Inferno (1971), pelo menos. E ainda assim, raramente é lembrado. O relançamento de Kwaidan, com suas imponentes três horas de duração, pela Versátil, é, portanto, um evento a ser comemorado.
São quatro histórias de fantasmas baseadas em contos do escritor grego naturalizado japonês Lafcadio Hearn, cada qual com sua particularidade. De saída, podemos dizer que Kobayashi consegue algo raro: fazer com que não haja irregularidade, ou seja, todos os episódios são equidistantes na proximidade da perfeição (uma vez que não existe filme perfeito). E são episódios bem distintos entre si (Kobayashi trabalhou para isso). O primeiro é o mais tipicamente de horror B; o segundo é o mais assustador, ainda que extremamente poético; o terceiro é o maior em duração, praticamente um longa-metragem dentro de outro, e o mais lento porque mais contemplativo, e por isso também mais arriscado frente ao público de horror; e o quarto é o mais curto e direto, mais fiel ao espírito da Nuberu Bagu.
Kwaidan é o primeiro filme colorido de Kobayashi (ele voltaria a filmar em cores somente nos anos 70), que faz questão de ressaltar a importância da cor ao mostrar, logo nos créditos iniciais, cores se desmanchando num líquido misterioso. O diretor não evita os clichês do cinema moderno da época. Pelo contrário, usa-os melhor que seus pares: os enquadramentos tortos à Kinoshita e Suzuki, a coloração artificial como estado mental dos personagens, a saturação absurda das cores, os jump cuts, os falsos raccords, a música concretista, os tempos mortos, tudo é utilizado por Kobayashi como fonte pictórica ou sensorial, e o resultado é um dos filmes mais hipnotizantes e plasticamente mais belos do cinema, um degrau além do já maravilhoso Portal do Inferno, feito dez anos antes por Teinosuke Kinugasa. Uma plasticidade em nada inadequada aos relatos fantásticos, e que Fellini só iria igualar em Satyricon (1969) e Kurosawa em Kagemusha (1980).
Como um verdadeiro mestre, Kobayashi provou que dominava o mundo do crime (Black River), o realismo (Guerra e Humanidade), o filme de samurai (Harakiri, Rebelião) e o horror (Kwaidan). E apesar de tudo isso, continua pouco falado e estudado, numa dessas injustiças que encobrem a história do cinema.
EXTRAS:
Nos extras, uma valiosa conversa de quinze minutos entre Kobayashi e Masahiro Shinoda (grande cineasta que, com Nagisa Oshima e Koji Yoshida formou o núcleo da Nuberu Bagu, fortalecendo fileiras na Shochiku). Kobayashi conta que ficou sem dinheiro no final das filmagens do terceiro episódio, e quem o ajudou emprestando uma boa quantia foi outro diretor, Keisuke Kinoshita.
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A ARTE DE BRIAN DE PALMA
Um dos mais importantes diretores do cinema americano nos anos 1970 (e 80, 90 00, e não mais porque a indústria não deixa), da chamada geração Nova Hollywood (ou a geração das escolas, ou Renascença hollywoodiana), Brian De Palma é representado nesta coleção com três de seus melhores filmes. Dois deles, Irmãs Diabólicas (1973) e O Fantasma do Paraíso (1974) são da fase em que ele tinha acabado de deixar os arroubos de juventude que originou filmes agradáveis mas incompletos como Greetings (1968) para se tornar um diretor de primeiro time. O terceiro, Um Tiro na Noite (1981) já é da fase em que era reconhecido mundialmente como um mestre da reflexão sobre a dimensão da imagem.
Esse reconhecimento deveria ter vindo antes, segundo o crítico francês Luc Lagier. Em 1970, De Palma filmou O Homem de Duas Vidas, com Orson Welles como um mágico veterano. Era para ser um projeto audacioso, um filme para alavancar sua carreira, mas o estúdio o impediu que terminasse o filme e o montou à sua revelia, lançando comercialmente em 1972. Tornou-se irreconhecível, segundo o próprio De Palma, que se vingou de Hollywood com O Fantasma do Paraíso da mesma forma que King Vidor se vingou de Hollywood em dois filmes de 1949, Fountainhead e Beyond the Forest, ou seja, bombardeando a indústria internamente e fazendo implodir a tirania que continuava existindo no período da Nova Hollywood. O Fantasma do Paraíso narra a história de um produtor musical que fez um pacto com o demônio e vive de usar seus contratados da forma mais mesquinha possível. Basta, no caso, substituir as gravações por filmagens e os cantores por atores para entendermos a provocação.
Um ano antes, De Palma filmou aquele que o insuspeito crítico inglês Robin Wood considerava um dos maiores libelos feministas já filmados: Irmãs Diabólicas. É o primeiro filme evidentemente hitchcokiano do diretor. Nele, vemos duas irmãs siamesas separadas por uma operação que não deu certo: uma ficou tremendamente má, e a outra, problemática, para dizer o mínimo. Brilhante investigação da neurose, do preconceito dos homens com os humores femininos e da sociedade patriarcal dos EUA.
Fechando a coleção, aquele que muitos críticos consideram a obra-prima de De Palma: Um Tiro no Escuro, em que o técnico de som vivido por John Travolta descobre, durante a captura de sons para um filme, um assassinato como parte de uma grande conspiração política. Som e imagem como partes fundamentais do cinema, mas também como elementos múltiplos e complexos, que podem conter diversos significados. O plano inicial remete a “Irmãs Diabólicas”, com o programa de TV disfarçado de abertura do longa. Vemos um filme de terror barato, uma cena clássica de vestiário feminino, mas o grito da mulher ameaçada surge tão patético que desperta a gargalhada de John Travolta, e só então vemos que é um filme dentro de um filme. Reflexão sobre a dimensão da imagem, dizíamos, em um nível muito bem realizado. É a obra-prima de uma coleção já bem inspirada.
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COLEÇÃO NOVA HOLLYWOOD
Entre meados dos anos 1960 e o final dos anos 70 ocorreu no cinema americano o que muitos historiadores consideram um hiato, dentro do qual os grandes estúdios cederam aos humores e estilos de jovens diretores. É a chamada Nova Hollywood, representada aqui numa coleção com seis filmes essenciais para entendermos o período.
Corrida Sem Fim (1971), de Monte Hellman, é obrigatório para entendermos esse momento do cinema americano. Dois aventureiros, interpretados pelos músicos Dennis Wilson (baterista dos Beach Boys que morreria afogado alguns anos depois) e James Taylor (muito antes de renascer das cinzas no Rock in Rio com “You’ve Got a Friend”), viajam por estradas americanas conquistando mulheres e apostando corridas. Encontram no caminho o genial Warren Oates, ator hellmaniano (e peckinpahniano), como GTO, um viciado em corridas. E Laurie Bird, atriz que Hellman revelou (e que com ele faria também Galo de Briga). Em 1979, ela cometeria suicídio na cobertura do cantor Art Garfunkel, então seu namorado.
Essas histórias de bastidores não eclipsam o grande valor do filme como libelo poético e como documento histórico. Monte Hellman dizia que é seu filme o verdadeiramente transgressor, porque em Easy Rider, de Dennis Hopper, os motoqueiros lidam com gente preconceituosa, rednecks e afins, enquanto os viajantes de Hellman lutam contra o sistema, a sociedade capitalista. Isso é bem verdade, ainda que Easy Rider seja admirável. Corrida Sem Fim flagra muito bem o fim das utopias sessentistas e o início de um mundo muito voltado para o individualismo, o que paradoxalmente faz as pessoas parecerem autômatas, buscando a felicidade a qualquer custo.
Igualmente obrigatório é A Outra Face da Violência (1977), de John Flynn, sobre o qual escrevi anos atrás para a FOCO. Tem roteiro de Paul Schrader e cenas violentíssimas, que ilustram bem o clima barra pesada da sociedade americana nos anos 1970 (o filme foi realizado em 1977, mas a história se passa em 1973). Os combatentes da Guerra do Vietnã não encontravam mais lugar entre os seus. Viviam num limbo da sociedade, mesmo sendo recebidos como heróis. Circunstâncias os levam a repetir, em solo caseiro, a violência que viveram nas selvas asiáticas.
Procura Insaciável (1971) é o primeiro longa americano do tcheco Milos Forman (que vinha de seu melhor filme no país natal, O Baile dos Bombeiros, de 1967). Fala do conflito de gerações na época dos hippies, de maneira semelhante, ainda que mais cômica, a de Joe (1970), o grande e violento filme de John G. Avildsen. O momento máximo de Procura Insaciável é o encontro na Sociedade dos Pais de Filhos Fugitivos, dentro do qual um usuário ensina todos os pais presentes a apreciarem um baseado.
Robert Altman já era um veterano da televisão e vinha do grande sucesso de M.A.S.H. quando realizou Voar é Com os Pássaros (1970). Neste filme insano e ambientado em Houston, cheio de reviravoltas e esquisitices, encontramos um ornitólogo que vai aos poucos se transformando num pássaro, um jovem que quer voar, uma jovem cleptomaníaca, um super detetive de São Francisco entre outros doidões. Altman já experimenta a polifonia e o zoom, elementos que aperfeiçoaria nos anos seguintes.
Procura Insaciável, Corrida Sem Fim e, principalmente, Voar é Com os Pássaros são exemplos perfeitos do que o crítico Robin Wood chamou de “textos incoerentes”. Ou seja, filmes completamente abertos e cheio de atestas, que exigem do espectador um outro comprometimento, menos passivo em relação ao que está vendo.
Do outro lado temos o excelente Essa Pequena é uma Parada (1972), em que Peter Bogdanovich homenageia as comédias malucas dos anos 1930 e seu maior ídolo, Howard Hawks. No balanço entre tradição e invenção que baseou a Nova Hollywood (ou melhor, toda a Hollywood), podemos dizer que o filme de Bogdanovich está mais para a tradição. Mas seria equivocado não observar o que ele tem de invenção. Em uma coleção identificada com um cinema mais autoral e ousado, essa diversão inconsequente tende a ser subestimada. Mas trata-se de um excelente modelo de uma faceta muito cara aos diretores da Nova Hollywood: o cinema que faz alusão a sua própria história.
Fechando a coleção, Comboio do Medo (1977), de William Friedkin, é a inspirada refilmagem de O Salário do Medo, clássico francês de Henri-Georges Clouzot. Roy Scheider deve atravessar uma região selvagem com um caminhão lotado de nitroglicerina. Friedkin foi sábio o suficiente para evitar os equívocos do original, acrescentando um tanto de crueza e loucura nessa aventura.
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DOSE DUPLA NATALIE WOOD
Dois filmes com a bela Natalie Wood, falecida em 1981 em uma das histórias mais mal contadas de Hollywood (a mesma Colecione Clássicos lançou também o esquecido Gypsy, de Mervyn LeRoy, que ainda não vi). Nenhum deles é essencial, mas podemos dizer que À Procura do Destino (Inside Daisy Clover), de Robert Mulligan, é muito superior a Bob, Carol, Ted e Alice, de Paul Mazursky.
À Procura do Destino, de 1965, é um retrato crítico da Hollywood dos anos 1930. Wood é Daisy Clover, adolescente descoberta por Raymond Swan (Christopher Plummer), dono de um grande estúdio. (Swan é também o nome do produtor tirano de O Fantasma do Paraíso, de Brian De Palma, comentado nesta seção). Daisy Clover vira atriz e cantora, despontando para um rápido e fabricado estrelato, tão rápido e tão fabricado que sua vida vira de ponta-cabeça, se é que podemos chamar de vida. O filme irá mostrar sua tentativa de lidar com a máquina de esmagamento humano do show business e com todos que a rodeiam – entre eles o astro rebelde interpretado por Robert Redford e um monte de bajuladores (essa praga que está longe de ser exterminada do mundo artístico). Fica nas entrelinhas que esse astro teve caso com todo mundo ao seu redor, homens e mulheres, incluindo Raymond, numa ousadia de Mulligan para a época. Filme extremamente crítico em relação a Hollywood, numa época em que a indústria de cinema americana começava a se questionar em maio às cinzas da queda de público e do colapso do sistema de estúdios.
Bob, Carol, Ted e Alice, de 1969, é uma tentativa de lidar com a contracultura e suas conquistas comportamentais. O primeiro casal do título quer experimentar novas coisas, e acaba tentando inserir o segundo casal em suas experiências. Natalie Wood, como Carol, talvez seja flagrada no auge de sua beleza, não mais a garotinha sexualizada de Clamor do Sexo (a obra-prima de Kazan), perfeita como a moderninha que procura contaminar os amigos com suas idéias libertárias. Mas o filme é muito mais careta do que se propõe (principalmente em relação ao filme de Mulligan), na representação tímida dessa liberdade sexual perseguida. Para piorar, o irregular Mazursky (que acertou em poucos filmes: Próxima Parada: Bairro Boêmio e Uma Mulher Descasada entre eles) mostra que não tem muita ideia de onde colocar a câmera.
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24 Olhos (Nijushi no Hitomi, 1954), de Keisuke Kinoshita
É mais do que certo dizer que Keisuke Kinoshita não está à altura dos grandes mestres do cinema clássico japonês (Mizoguchi, Kurosawa, Naruse, Ozu), nem dos injustiçados Masaki Kobayashi e Tomu Uchida. Se não se entende isso, não se entende muita coisa. Era um diretor irregular, capaz de filmes delicados e belos, mas também de coisas inexplicáveis como O Amor Inocente de Carmen (1952).
24 Olhos é, com justiça, um de seus filmes mais celebrados. A história de uma professora de hábitos modernos que vai trabalhar numa região remota no sul do Japão conquista principalmente pela simplicidade e pelas crianças que ela deve ensinar. A direção é equilibrada, deixa que as relações de respeito e admiração cresçam naturalmente.
Esse tipo de drama singelo, que Kinoshita (um dos humanistas do pós-guerra, segundo a historiadora Audie Bock) fazia desde os anos 1940, vai influenciar, principalmente no tom, os filmes pelos quais Yoji Yamada ficaria famoso, sobretudo a longa série de longas com o personagem Tora San, que atravessou ao menos quatro décadas, desde o final dos anos 60: a simplicidade da vida e a beleza das relações e do aprendizado.
Formalmente, é um filme correto, como quase todos os de Kinoshita, que nos anos 60 experimentou mais, o que é natural da época. Comove pelo drama apresentado e por um elenco uniforme, que brilha sem apagar as nuances da narrativa.
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A Águia Pousou (The Eagle Has Landed, 1976), de John Sturges
Em 1976, A Águia Pousou, de John Sturges, parecia um dinossauro. Após o furacão do cinema moderno que invadiu Hollywood a partir do final dos anos 1960, um filme de guerra, amplamente baseado no trabalho dos atores e no romance de Jack Higgins, transformado em roteiro pelo craque Tom Mankiewicz, apesar de seus inegáveis atrativos, parecia deslocado.
Mas essa trama filmada do ponto de vista dos alemães durante a Segunda Guerra Mundial, na qual um grupo recebe a incumbência de sequestrar Winston Churchill, tem muita classe. A começar pelo grupo de atores: Michael Caine, Donald Sutherland, Robert Duvall, Donald Pleasance, Anthony Quayle, e a jovem Jenny Agutter. Com um time desses, é jogo ganho. Ainda mais que Sturges é um bom nome para administrar egos.
Há uma noção exemplar de humanidade, em que alemães e britânicos são manipulados em uma guerra cruel que, na origem, não lhes dizia respeito. Não é de fato sobre uma missão. É sobre o horror da guerra que fala o filme.
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A Garota do Adeus (The Goodbye Girl, 1977), de Herbert Ross
Herbert Ross (1927—2001) era o típico artesão. Dependia demais de bons roteiros e elenco. Em situações favoráveis, era um diretor sem estilo, mas correto. Fazia o arroz com feijão que muitos hoje não conseguem fazer. Seus melhores filmes são justamente Sonhos de um Sedutor (com texto e atuação de Woody Allen), Uma Dupla Desajustada (roteiro de Neil Simon e Walther Matthau e George Burns como a dupla do título) e este agradável A Garota do Adeus, novamente sobre roteiro de Neil Simon.
A ex-dançarina Paula (Marsha Mason) é abandonada pelo namorado ator, que ainda aluga o apartamento, sem avisá-la, para um colega de profissão, Elliot (Richard Dreyfuss). A solução proposta por este último é dividirem o apartamento. Paula tem uma filha de dez anos, a adorável Lucy (Quinn Cummings), que logo começa a gostar de Elliot. Como se trata de uma comédia romântica, claro está que Paula e Elliot irão se apaixonar um pelo outro. Nós também, por esses três personagens cativantes.
A fórmula é aquela, aperfeiçoada por Lubitsch nos anos 30 e transformada em molde em seu clássico A Loja da Esquina (1940), com Margaret Sullavan e James Stewart. Essa mesma fórmula, devemos dizer, foi atualizada três vezes: em Papai Precisa Casar (Vincente Minnelli, 1963), neste filme de Herbert Ross, e em Harry e Sally – Feitos Um para o Outro (Rob Reiner, 1989).
Texto enxuto e atores dando o máximo, com uma adorável criança como cupido (como no filme de Minnelli). Ross pode ser o diretor mais fraco entre todos os citados, mas sabia muito bem o que tinha em mãos.
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Cimarron (1960), de Anthony Mann
Cimarron é ao mesmo tempo uma despedida de Anthony Mann do faroeste e a inauguração de um tipo de drama espetacular que ele passaria a fazer desde então, e que culminaria, nos anos seguintes, com os épicos El Cid (1961) e A Queda do Império Romano (1964). Na verdade, a historiadora Jeanine Basinger tem razão. Cimarron não é bem um faroeste, mas um drama histórico que se passa em meio à conquista do oeste.
O personagem-título (Glenn Ford) vai com sua nova esposa, Sabra (Maria Schell), construir uma nova vida na colonização de um novo estado americano: Oklahoma. Dixie (Anne Baxter) é a mulher que surge como algo mal resolvido do passado. O lado idealista desse homem entra em conflito com as necessidades da família: ele recusa dinheiro de uma recompensa e usa o jornal que herdou para defender as minorias, entre outras coisas que escandalizam a sociedade da época. O gênio de Mann faz com que entendamos os dois lados da balança. A dúvida inicial consistia em saber se Maria Schell, a romântica por excelência, daria conta de personagem tão pé no chão, ou se o ótimo Ford, durão dos filmes noir (lembram de Os Corruptos?) encaixaria bem como um idealista por vezes ingênuo. Felizmente ambos passaram no teste.
Cimarron, o personagem, é avesso a conchavos, incorruptível, um grande homem. Cimarron, o filme, é o primeiro capítulo do Mann histórico, espetaculoso, mas ainda genial.
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Meias de Seda (Silk Stockings, 1957), de Rouben Mamoulian
O ator e dançarino Fred Astaire e o diretor Rouben Mamoulian tiveram seus anos de glória na década de 1930, sobretudo nos musicais. Nos anos 40, Astaire prosseguiu em alta, enquanto a carreira de Mamoulian foi injustamente definhando. Ambos se encontraram pela primeira vez em Meias de Seda (1957). Mamoulian estava afastado das telas havia quase dez anos. Astaire, por outro lado, usava sua experiência para se reinventar em A Roda da Fortuna (Vincente Minnelli, 1953), Papai Pernilongo (Jean Negulesco, 1955) e Cinderela em Paris (Stanley Donen, 1957). Completando o elenco, a grande estrela do musical nos anos 50: Cyd Charisse.
Meias de Seda é uma versão musical do clássico de Ernst Lubitsch, Ninotchka (1939), numa época em que refilmagens e versões ainda não eram vistas como sinal de desespero. Na trama, uma agente soviética fica encarregada de resgatar três agentes perdidos na boêmia de Paris. Como ela não é de ferro, apesar da aparência inicial, acaba se apaixonando por um diretor musical (Astaire), repetindo assim o casal de A Roda da Fortuna.
O último filme de Mamoulian, que, como o penúltimo, tem produção de Arthur Freed para a MGM, não pode ser desprezado por ser uma refilmagem, ou uma versão musical de uma comédia. Se Mamoulian claramente não se sente tão à vontade com o formato cinemascope, ainda mostra sua leveza nos números musicais, com canções compostas por Cole Porter, e seu domínio do ritmo continua intacto.
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Nijinski: Uma História Real (Nijinski, 1980), de Herbert Ross
Em Momento de Decisão, de 1977, Herbert Ross explorou o mundo do balé, com elenco de peso formado por Anne Bancroft, Shirley McLaine e o bailarino soviético Mikhail Baryshnikov. Era um filme correto, mas anêmico, sem força para além de uma primeira visão. Em 1980, ele volta a explorar o balé num drama histórico muito superior: Nijinski: Uma História Real, uma cinebiografia parcial do grande bailarino Vaslav Nijinski, muito famoso na década de 1910. Com Sonhos de um Sedutor (1972) e A Garota do Adeus (1977 – resenhado mais acima), é seu melhor filme.
Sua direção incorpora alguns maneirismos da época em seu classicismo elegante, o que se revela plenamente adequado ao artista representado, que vivia rodeado de luxo e nobreza por onde quer que levasse sua arte. A fotografia ainda reverbera o aspecto sedoso dos filmes históricos dos anos 70, numa espécie de revival do apogeu do soft focus dos anos 30. O elenco está OK, mas como se podia esperar, Alan Bates rouba o filme para si (com um único rival, ainda sem peso para lhe fazer frente: Jeremy Irons).
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Perdidos na Noite (Midnight Cowboy, 1969), de John Schlesinger
O inglês John Schlesinger foi um dos diretores mais importantes do Free Cinema, movimento de cinema moderno britânico dos anos 1960. No final dessa década, foi para os EUA, e seu primeiro filme americano é Perdidos na Noite, totalmente sintonizado com o espírito da Nova Hollywood, ou seja, o cinema moderno atingindo o mainstream do cinema nos EUA.
Incorporando uma série de trejeitos de diretores modernos e diversos como Richard Lester, Jean-Luc Godard, Ingmar Bergman e François Truffaut, tais como a montagem que privilegia os fluxos de memória e os delírios, a alinearidade da narrativa e o realismo da câmera nas ruas, Schlesinger construiu uma fábula em que um texano chamado Joe Buck (Jon Voight) vai a Nova York tentar a vida e acaba se envolvendo com o vigarista Ratso (Dustin Hoffman).
O que mais me espanta nesse filme é sua irremediável tristeza, que domina o terço final de tal maneira que é difícil acreditar que tenha feito tanto sucesso. Mostra como a época era muito mais politizada e propícia para filmes críticos e pessimistas.
Vencedor do Oscar de melhor filme num tempo em que era mais frequente o prêmio máximo ir para grandes obras, Perdidos na Noite abriu definitivamente as portas de Hollywood para Schlesinger (que ganhou o Oscar de melhor diretor), além de confirmar o talento de Voight e Hoffman.
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Phoenix (2014), de Christian Petzold
Christian Petzold tem uma carreira irregular, mas com grandes achados dramáticos. Em seus melhores momentos, Gespenster (2005) e Yella (2007), desenvolve dramas pesados em uma estrutura bem rígida, mas que comporta alguns voos audaciosos, facilitados pela base sólida dos roteiros que constroi com Harun Farocki e por um bom trabalho com os atores.
Em Phoenix, Petzold mostra sua musa, Nina Hoss, como Nelly, uma sobrevivente dos campos de concentração que teve o rosto todo desfigurado e foi tida como morta. Numa espécie de milagre chamado cirurgia plástica, tem o rosto todo reconstruído. Ela volta à sociedade, numa Berlin em ruínas, e procura retomar sua vida e reencontrar Johnny, o escroque com quem se casou.
Com fortes toques de Hitchcock (Um Corpo Que Cai é uma clara referência) e do cinema alemão do pós-guerra, o filme tem lá seus exageros, mas se beneficia de um clima de estranheza muito bem construído e suficientemente forte para garantir nosso interesse até o final acachapante.
Vale lembrar que eu já tinha escrito um texto sobre o filme, aqui mesmo na Interlúdio. Quando revi para escrever no Guia da Folha, gostei um pouco mais.
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O Sacrifício (Offret, 1986), de Andrei Tarkovski
Andrei Tarkovski, um cineasta russo, é perseguido pelo governo da União Soviética e obrigado a sair de seu pais, deixando para trás uma parte de sua alma. Seus dois filmes de exílio, contudo, reverberam essa dor de uma forma tão bela que é muito difícil não nos sentirmos tocados.
Primeiro, na Itália, dirige Nostalgia (1983), filme esverdeado que já fala em sacrifício. Depois, na Suécia, realiza sua obra final, O Sacrifício (1986), tendo a seu lado o ator (Erland Josephson) e o diretor de fotografia (Sven Nikvist) preferidos de um de seus grandes ídolos, Ingmar Bergman.
Josephson interpreta Alexander, ator, escritor, professor e filósofo que recebe alguns familiares em sua casa isolada para comemorar seu aniversário. Com a chegada da III Guerra Mundial, toda a harmonia bucólica se desfaz dando lugar a tristezas e loucuras.
O que é incrível e frequente em seu cinema (pois trata-se mesmo de um “autor”, numa das vezes em que o termo mais se aplica) é que mesmo com ator e fotógrafo suecos e com as conversas filosóficas dos personagens, o filme não tem tanto a cara de Bergman. Tem a cara de Tarkovski. Seus movimentos de câmera muito lentos, a atenção à natureza, o humor peculiar e as cenas poéticas em câmera lenta são procedimentos muito imitados hoje em dia, até banalizados. Mas nos filmes de Tarkovski, essas marcas de estilo encontram correspondência na procura por uma espécie de ascese, uma espiritualidade que só o dinamarquês Carl Th. Dreyer conseguia alcançar.
O perfeccionismo de Tarkovski era enorme. Em uma cena importante, na qual Alexander bota fogo numa casa, houve um problema incontornável: o filme emperrou na câmera. Teriam de filmá-la novamente (ou filmá-la para valer, já que antes tinha dado xabu), mas a casa já não existia mais. Estava em cinzas. Sugeriram que se utilizasse uma maquete, já disponível para a equipe e utilizada num delírio de Alexander. Mas Tarkovski recusou, achando que isso iria abalar a veracidade da cena, e ela perderia força. Resultado, construíram novamente uma casa para ser queimada em seguida.
Ninguém, vendo o filme, seria capaz de dizer que tal sacrifício foi em vão. Esse é o tipo de comprometimento com o cinema que tinha Tarkovski, que já sofria com um câncer terminal durante as filmagens. A última imagem deste seu testamento é muito semelhante à primeira imagem de seu primeiro longa, A Infância de Ivan (1962): a câmera numa grua filmando uma árvore. Em sete longas, uma visão muito particular de cinema que inicia e termina com incrível coerência.
De brinde, no DVD duplo, o bom documentário “Dirigido por Andrej Tarkovski”, de Michal Leszczylowski.
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Todas as Manhãs do Mundo (Tous le Matins du Monde, 1991), de Alain Corneau
Corneau era diretor de bons policiais nos anos 70 (Police Python 357, de 1976, sendo o mais notável), mas aventurou-se também por outros gêneros, como o drama histórico (Fort Saganne, 1984) ou o drama exótico (Noturno Indiano, 1989). Era, contudo, um diretor irregular. Seu último filme, Crime D’Amour (2010), teve o grande mérito de inspirar uma refilmagem superior, Passion (2012), de Brian De Palma.
Em Todas as Manhãs do Mundo, talvez seu melhor filme, adota uma mise en scène rigorosa para combinar com o rigor do músico barroco Sainte Colombe (Jean-Pierre Marielle em uma interpretação antológica), que preferia viver isolado e com simplicidade ao lado das duas filhas do que ser músico da corte. Para ele, a música era um dom espiritual que permitia que ele se conectasse com sua falecida esposa.
Certo dia ele aceita dar aulas a um jovem talentoso chamado Marin Marais (pela dor que sentiu em sua voz, não por sua habilidade). E aí temos um duelo injusto, uma vez que Marais é interpretado por Guillaume Depardieu, canastrão de primeira. Ele contra Marielle, não dá nem para o cheiro. Pode parecer uma comparação estapafúrdia, mas o que Corneau faz se assemelha ao que Scorsese havia feito em A Cor do Dinheiro: mostrar uma relação em que a canastrice de Tom Cruise servisse ao filme e não desmoronasse perto do talento de Paul Newman. A relação mestre-aluno rebelde permite que um seja capacho do outro em matéria de atuação e não prejudique o filme.
Mais tarde, Marin não será mais Guillaume, mas seu pai, Gérard Depardieu. Era ele, afinal, que nos narrava a história de Sainte Colombe. Quando o pai Depardieu e Marielle se encontram, ocorre uma verdadeira combustão, e fica muito difícil segurar as lágrimas. O filme continua sóbrio, rigoroso e intensamente musical. Mas nós já fomos arrebatados pelo belíssimo elogio de Corneau à espiritualidade da arte.
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