Metrópolis Por Buñuel
Metrópolis (Metropolis, 1927), de Fritz Lang
Metrópolis não é um único filme. Metrópolis são dois filmes colados pelo ventre, mas com necessidades espirituais divergentes, de um extremo antagonismo. Aqueles que consideram o cinema como um discreto contador de histórias experimentarão uma profunda decepção com Metrópolis. Aquilo que ali nos é contado é trivial, pomposo, pedante, de um romantismo ultrapassado. Mas se à anedota preferirmos o fundo “plástico-fotogênico” do filme, então Metrópolis satisfará todos os desejos, nos maravilhará como o mais maravilhoso livro de imagens que se possa compor. O filme é feito, portanto, de dois elementos antinômicos, detentores dos mesmos signos nas zonas de nossa sensibilidade. O primeiro entre eles – o qual poderíamos denominar lírico-puro – é excelente, o outro – anedótico ou humano – chega a ser irritante. Ambos, em sua simultaneidade ou sucessão, constituem a última criação de Fritz Lang. Já não é a primeira vez que observamos um dualismo tão desconcertante nas produções de Lang. Exemplo: no inefável poema A morte cansada eram intercaladas cenas desastrosas, de um refinado mau-gosto. Se a Fritz Lang cabe o papel de cúmplice, é sua esposa, a roteirista Thea von Harbou, quem denunciamos como autora dessas ecléticas tentativas de perigoso sincretismo.
O “filme” deveria, tal como a catedral, ser anônimo. Pessoas de todas as classes, artistas de todas as ordens interviram para erguer essa monstruosa catedral do cinema moderno. Todas as indústrias, todos os técnicos, multidões, atores, roteiristas; Karl Freund, o às dos diretores de fotografia alemães, e com ele uma plêiade de colaboradores; os escultores; Ruttman, o criador do “filme” absoluto. No comando dos arquitetos figura Otto Hunte: é a ele e a Ruttman a quem verdadeiramente devemos as “visualizações” mais bem-sucedidas de Metrópolis. O cenógrafo – último vestígio herdado pelo cinema do teatro – intervém apenas aqui. Notamo-lo verdadeiramente apenas nos piores momentos de Metrópolis, naquele que foi, bem enfaticamente nomeado de “jardins eternos”, em seu barroquismo delirante, em seu mau-gosto sem precedentes. O cenógrafo será substituído doravante – e para sempre – pelo arquiteto. O cinema servirá de fiel intérprete aos mais audaciosos sonhos da arquitetura.
O pêndulo em Metrópolis não comporta mais que dez horas: são aquelas do trabalho. E nesse ritmo em dois tempos se desenvolve a vida da cidade inteira. Os homens livres de Metrópolis tiranizam os escravos, espécie de niebelungos da cidade que trabalham em um perpétuo dia elétrico, nas profundezas da terra. Falta à simples engrenagem da república apenas o coração, o sentimento capaz de unir extremos tão antagônicos. E nós veremos, no desfecho, o filho do dirigente de Metrópolis (o coração) unir em um fraternal cumprimento seu pai (o cérebro) ao contramestre geral (o braço). Misturai esses ingredientes simbólicos a uma boa dose de cenas de terror, juntai um desmesurado e teatral jogo de atores, agitai bem a mistura: tereis obtido o argumento de Metrópolis.
Mas, em compensação, que entusiasmante sinfonia do movimento! Como cantam as máquinas em meio a admiráveis transparências, transformadas em “Arcos– do–triunfo” pelas descargas elétricas! Todas as vidraças do mundo decompostas romanticamente em reflexos chegam a se imiscuir nos cânones modernos da tela. As mais vívidas cintilações dos aços, a sucessão rítmica das rodas, pistões, formas mecânicas jamais criadas, eis uma ode admirável, uma poesia toda nova para nossos olhos. A física e a química se transformam, por milagre, em rítmica. Sequer um momento estático! Até mesmo os intertítulos – que sobem e descem, giram, logo se decompõem em luzes ou se dissipam nas sombras – se fundem ao movimento geral: eles também acabam por se tornar imagem.
A nosso ver, o defeito capital do filme reside no fato de que seu autor não seguiu a ideia ilustrada por Eisenstein em seu O encouraçado Potemkin, no fato de ele ter esquecido um único ator, ainda que cheio de novidades, de possibilidades: a massa. O tema de Metrópolis se prestaria, no entanto, a tal elemento. Em troca, fomos obrigados a suportar uma série de personagens cheios de paixões vulgares e arbitrárias, carregadas de um simbolismo ao qual elas não correspondem, muito pelo contrário. Isso não significa que em Metrópolis as multidões estejam ausentes: mas elas parecem obedecer, acima de tudo, a uma necessidade decorativa; necessidade de um gigantesco “balé”. Elas pretendem mais nos encantar com suas admiráveis evoluções e equilíbrios do que nos fazer entender sua alma, sua obediência precisa a motivações mais humanas, mais objetivas. Apesar disso, há momentos – Babel, a revolução operária, a perseguição final do robô – em que admiravelmente se alcançam os dois extremos.
Otto Hunte nos abalou com a sua visão colossal da cidade dos anos 2000. Ela pode vir a ser falsa, e mesmo ultrapassada, se considerarmos as últimas teorias sobre a cidade do futuro. Mas do ponto de vista da fotogenia sua força emotiva inegavelmente persiste, sua beleza inédita e surpreendente, de uma perfeição técnica que pode ser prolongadamente examinada sem que em um instante sequer se revele a maquete.
Metrópolis custou quarenta milhões de marcos-ouro; entre atores e figurantes, cerca de 40.000 pessoas participaram do filme. A metragem atual do filme é de 5.000m, mas ele consumiu cerca de 2.000.000m. No dia da estreia, em Berlim, um lugar custava 80 marcos-ouro. Não parece desmoralizante que dispondo de tais meios a obra de Lang não venha a ser um modelo de perfeição? Ao compararmos Metrópolis e Napoleão – os dois filmes mais grandiosos criados pelo cinema moderno – a outros filmes mais modestos, mas igualmente mais perfeitos, mais puros, nasce a proveitosa lição de que o dinheiro não é o essencial da produção cinematográfica moderna. Comparem Nada além das horas – que custou não mais que 35.000 francos – a Metrópolis. Sensibilidade, antes de tudo; inteligência antes de tudo, e todo o resto – incluindo aí o dinheiro – em seguida.
Luis Buñuel
(Texto publicado originalmente em La Gaceta Literaria, Madrid, 1927, e posteriormente traduzido para o francês e republicado em Cahiers du Cinéma nº 223, agosto-setembro de 1970. Traduzido da versão francesa por Guilherme Savioli e revisado por Calac Nogueira).
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