Rita Azevedo Gomes
Breve introdução ao cinema de Rita Azevedo Gomes
Por Sérgio Alpendre
Se há uma cinematografia que pode nos ensinar muito neste século, esta é sem dúvida a cinematografia portuguesa. Pode nos ensinar sobretudo que é possível fazer filmes densos, carregados de literatura e teatralidade, e ainda assim repletos de cinema. Podem nos ensinar, contudo, até certo ponto. Não é da formação brasileira essa literalidade e, portanto, quando ela aparece num filme brasileiro, há o grande risco de ser falso, forçado, ridiculamente superficial. Justamente algo que nos portugueses é natural. Eles falam poeticamente, nós falamos pragmaticamente. A formação europeia, nesse caso, faz toda a diferença. Há nos grandes filmes portugueses uma sincera impostação. Tão sincera que essa sensação de impostação é uma sensação que nós, brasileiros, sentimos. Eles provavelmente não pensam assim. Lembro sempre da história do meu grande amigo José Damiano, que, ao esperar pelo início de uma peça em Portugal, com atraso de apenas 3 minutos, ouviu de um espectador atrás dele a seguinte frase: “o rigor da hora já se perdeu”. Pois bem, tal frase é natural para os portugueses. Talvez nem tanto para os mais jovens, mas o certo é que nas ruas portuguesas ouvimos muito frases assim, cheias de beleza, poesia, literatura. É justamente isso que quero dizer. Essa formação rica, literária, poética, está impressa nos grandes filmes feitos em terras lusitanas.
Os filmes de Rita Azevedo Gomes, desde o primeiro plano de seu primeiro e oliveiriano longa – a câmera se aproxima de uma janela que separa um escritório de um jardim em O Som da Terra a Tremer – são constituídos por essa riqueza de formação. Deles, por trás das camadas literárias e teatrais (no que um é decorrência do outro), pode-se reter um realismo que não se vê todos os dias, ou melhor, raramente se vê. Não se vê, sobretudo, nos neo-neorrealistas do novíssimo cinema brasileiro, que só nos dão uma parca impressão de realidade. E é irônico porque realidade parece ser tudo que buscam nossos jovens cineastas. Rita (chamá-la-ei assim, para não confundirmos os sobrenomes) não parece perseguir a realidade a todo custo. Pelo contrário: seus filmes são tomados pelo irreal, pela fantasia, pelo efeito. No entanto, quanta realidade vemos neles. Seja nas meninas que se separam deixando o cachorro imóvel e sem saber a quem seguir (Frágil Como o Mundo), na conversa filmada entre um crítico e ator e um cineasta consagrado, e na forma que a direção enquadra ora quem fala, ora quem ouve (A 15ª Pedra), na história trágica de amor adúltero contada por uma duquesa (A Vingança de uma Mulher), no interesse de um alfarrabista em uma coleção que não existe (A Colecção Invisível), ou em tantos outros momentos espalhados em seus filmes. O que acontece é que essa força da realidade torna ainda mais fortes os momentos líricos, mágicos, da mesma forma que uma canção mais simples prepara o clima e nossos ouvidos para uma mais ambiciosa, ou que um allegro ou um andante nos deixam mais vulneráveis à incrível beleza de um adágio.
Em Frágil Como o Mundo (2002), o exemplo perfeito. Após um flashback ter introduzido as cores, o filme vai se tornando cada vez mais colorido, um colorido irreal numa floresta que só pode ser encantada. Mas a sequência é interrompida pelos jovens amantes num momento prosaico. Ela lava os pés enquanto ele a observa enternecido. A câmera então faz um movimento, afastando-se deles e mostrando novamente a floresta, agora muito real, tomada de mato, de verde, com a escuridão provocada pelas copas das árvores, antes de reencontrá-los novamente, no fim do movimento, deitados e adormecidos, com os pés descalços. Tudo muito forte e muito belo, tanto quanto se pode opor um momento a outro, quando na verdade eles não são opostos, são partes do mesmo mundo, da mesma cadeia espiritual: a magia nos envolve, está ao redor. Só a criança vê os corpos desfalecidos boiando no rio. Só as crianças podem enxergar os espíritos. As crianças e nós, que os vemos nas fusões mais belas desde Murnau ou Mizoguchi. “Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo”, segundo o poema de Sophia de Mello Breyner Andresen.
A Colecção Invisível (2009) é outro filme que impressiona inicialmente pela simplicidade. Tão simples que é quase invisível. Vemos um homem interessado em uma coleção que não existe. Mas o dono da coleção é tão apaixonado por ela, que é como se existisse. Sua verdade é mais forte que a do outro, preocupado apenas com o palpável, o que se pode enxergar. Simplicidade audaciosa, quebrada por um branco que nos cega, e que aos poucos dá lugar a um grande candelabro atrás do qual caminha, na direção da câmera, uma moça misteriosa, uma aparição misteriosa, fantasmagórica, que destrói a simplicidade e o realismo que antes reinavam. Um plano leitoso, com a moça a se aproximar cada vez mais da câmera, a nos olhar diretamente, a investigar nossa consciência. Um plano que ilustra a um só tempo a espiritualidade no cinema (o brilhante ensaio de Kandinski, “Do Espiritual na Arte”, aliás, parece cair muito bem à arte de Rita Azevedo Gomes) e a invenção no baixo orçamento. Filme sem dinheiro, cenário pobre, mambembe. Não é preciso mais do que isso para impressionar o espectador com olhar. Basta saber filmar. Filmar o que normalmente não se vê. E o que não se vê nem por isso deixa de existir. Então, a coleção existe, está lá, o homem cego a vê muito bem.
Esse homem, aliás, é João Bénard da Costa, grande crítico, grande programador, grande ator, falecido em 2009, a quem Rita dedicou A Vingança de uma Mulher (2012). João Bénard da Costa, supostamente, tem uma conversa com Manoel de Oliveira em A 15ª Pedra. Mas em sua humildade, qualidade que só os sábios têm, coloca-se como entrevistador, para que brilhe o pensamento de Oliveira, então com 97 anos. Um mestre entrevista outro. Isso me faz lembrar de Louis Lumière, fascinante filme da série didática de Éric Rohmer, em que este se coloca numa humilde posição de entrevistador fazendo perguntas simples para dois grandes, Henri Langlois e Jean Renoir. As perguntas de Rohmer soam mesmo ingênuas, mas o que ele faz é permitir que Langlois e Renoir brilhem em seu filme, dando as respostas que ele sabia que viriam, mas não exatamente da maneira que ele esperava (porque um sábio pode saber o que o outro sábio pensa, mas sempre se enriquece ouvindo-o).
Bénard e Oliveira são muito amigos. Bénard atuou, como Duarte de Almeida, em diversos filmes de Oliveira, incluindo O Passado e o Presente e Espelho Mágico (filmado mais ou menos na mesma época de A 15ª Pedra). Oliveira diz que ia ver Aurora, de Murnau, todos os dias, por vezes mais de uma vez por dia, enquanto esteve em cartaz. Chegando em casa após cada sessão, refazia mentalmente a decupagem do filme, conferindo depois, a cada sessão, se o que havia feito conferia com o que o filme mostrava. Era o jovem Oliveira aprendendo a filmar com um dos maiores. Quem faz isso hoje? E como aprendemos com A 15ª Pedra. É um filme didático e generoso, que nos permite mais do que aprender com dois grandes. Permite-nos entrar em suas mentes, conhecê-los melhor.
Rita revela o que aprendeu com Oliveira e o traduz para sua forte poética em O Som da Terra a Tremer (1990), poesia filmada que também me faz lembrar de Trinta Anos Esta Noite e de Providence. Quando o protagonista Alberto (José Maria Branco) vai à casa de Isabel (Manuela de Freitas), por exemplo, esta surge com um candelabro, envolta em mistério, por trás de umas cortinas vermelhas. Surge da escuridão, como as mulheres de Francisca, para adentrar num cômodo semelhante a outros vistos nos filmes de Oliveira. Seu aparecimento é tão forte que até assusta Alberto, que perde por alguns segundos sua pose de escritor. Cômodos são vistos em filmes com frequência, e também nos portugueses, mas raramente filmados dessa maneira, como grandes tumbas que encerram personagens aprisionados por suas condições (o escritor em crise, a mulher solitária), e ao mesmo tempo como capsulas que permitem a esses mesmos personagens, por meio do amor e da imaginação, procurar uma maneira diferente de viver a vida. E que quadro enigmático é aquele que vemos por trás de Isabel, e que Rita faz questão de manter enquadrado durante grande parte desse primeiro encontro do protagonista? Um rosto de mulher com umas garras de gato. Escapa-me o autor e a procedência, mas não me surpreenderia que esse quadro estivesse ali como um comentário da situação. Falei em quadro, e é pela excelência do quadro filmado que Rita se mostra, já nesse sublime filme de estreia, uma legítima herdeira de Manoel de Oliveira (condição da qual ela saberá sair já no segundo longa). Sua câmera é mais leve, movimenta-se mais pelas locações (às vezes, movimenta-se bastante e bruscamente, como se procurasse algo – o som da terra a tremer?). Claro, seu estilo é próprio, sua assinatura é evidente, e a beleza de seus filmes reverbera a sua consciência do estar no mundo. Mas o rigor de seus enquadramentos tendem a reforçar a literatura e o teatro presentes em seus filmes, e assim acontece também nos filmes de Manoel de Oliveira, mesmo nos mais soltos. Para um brasileiro, a semelhança é maior. Quanto mais se conhece o cinema português é que se percebe a riqueza do estilo de Rita e sua pessoalidade. E que plano magistral aquele em que um marinheiro segura uma maçã enquanto ouvimos elucubrações de Alberto a respeito da vida. Vemos apenas a mão do jovem (o jovem Alberto? Tudo indica que sim), saída da manga de seu uniforme branco e apoiada numa grade de um navio, enquanto o movimento das águas passa como abstração, como se não fosse o barco a se movimentar, mas o fundo da imagem. Poesia da mais nobre estirpe, como raras vezes vimos no cinema contemporâneo. Rita, então com 31 ou 32 anos, já nos ensinava a filmar o abstrato, a dor da alma, a incerteza da juventude e do envelhecimento. Pena que não aprendemos com seus filmes. Foram, e ainda são, lamentavelmente pouco ou nada vistos por aqui. Talvez seu último filme, Correspondências, a que assisti numa exibição para convidados em Portugal, apareça por aqui por ter sido selecionado para Locarno. Aguardemos.
E quem filma assim hoje? É sempre incompleto um texto (qualquer texto) sobre um(a) grande cineasta. Porque tudo o que dissermos é somente uma entre tantas outras coisas, e muitas dessas coisas nos escapam. Mas o trabalho é justamente esse: tentar aproximações, maneiras de racionalizar o que resiste a ser racionalizado. E talvez seja necessário voltar ao melhor de Andrei Tarkovski para encontrar um paralelo possível com o cinema de Rita Azevedo Gomes, e Tarkovski não é o que se pode chamar de hoje. Porque a arte de Rita é espiritual e terrena ao mesmo tempo. Como a do cineasta russo, é uma arte que nos mostra as rochas, a umidade, o corpo humano por vezes dilacerado (o coração na mão da duquesa é uma imagem que ecoa por muito tempo depois do fim de A Vingança de uma Mulher), a natureza sempre se transformando. São ambas artes espirituais, ainda que sejam levadas para lados diferentes: em Tarkovski, o amor parece impossível, tão distante quanto o oceano que materializa medos e desejos ou o outro lado da longa piscina para onde vai o homem que segura uma vela cuidando para que ela não se apague. Nos filmes de Rita, entre muitas outras coisas intangíveis, o amor move os personagens, é o começo e o fim de tudo. E no meio disso há um mundo a ser desvendado.
Obrigado, Rita, por permitir que vislumbremos esse mundo.
© 2016 Revista Interlúdio - Todos os direitos reservados - contato@revistainterludio.com.br