Ano VII

Mãe Só Há Uma

segunda-feira ago 15, 2016

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Mãe Só Há Uma (2016), de Anna Muylaert

A primeira surpresa com relação a Mãe Só Há Uma, quinto longa de Anna Muylaert, é a percepção (que pode ser enganosa) de que a diretora soube ler críticas. Não as minhas, até porque foram curtas e insuficientes, mas principalmente as do Inácio Araujo, que reclamou do maniqueísmo de Que Horas Ela Volta?, que chamou de “novelismo” (pobres bons, ricos ruins, basicamente). É curioso que o próprio Inácio não tenha gostado deste novo filme, que evita como pode, e talvez até inconscientemente, esse chamado novelismo e com isso se aproxima um pouco da máxima de Jean Renoir (“o diabo deste mundo é que todos têm sua razão” – está em A Regra do Jogo, de 1939, um filme, aliás, muito mais novo do que quase tudo que se passa por novo hoje em dia). Os mais afobados podem me chamar de herege ao invocar Renoir aqui, mas não se trata de comparar cineastas tão diferentes. Refiro-me apenas à tentativa de aproximação da ideia entre parêntesis, o que por si só é um mérito, mesmo que tenha sido sem querer.

Pierre (Naomi Nero) é um adolescente como outro qualquer. Muito mais permissivo que um adolescente das gerações anteriores em relação ao sexo, muito mais aberto a outras experiências, mas tão perdido quanto qualquer adolescente de qualquer época. Em certo dia, descobre que foi roubado na maternidade. De uma vez só, vê a mãe que o criou durante 17 anos sendo levada para a delegacia, algemada, e conhece a mãe biológica, de uma família bem estabelecida, moradora de um condomínio de classe média alta. Situação difícil, não? Sim, mas para todos os envolvidos.

Não entendo por que o filme está sendo acusado de retratar a classe média como uma caricatura. Admito que talvez até tenha sido essa a intenção da diretora (o título do filme é um indício dessa intenção). Mas a intenção no caso não me importa, pois não vi essa caricatura no filme. Conheci várias mães como aquela, e não havia nada que impedisse que elas fossem pessoas adoráveis. Mães protetoras, que não sabem o que fazer para manter o filho sob suas asas. Imaginem se esse pessoal tivesse visto o novo (e bom) filme de Ugo Giorgetti. Esse sim, faz caricatura da classe média o tempo todo. O que tiro dessa história? É que depois da blindagem besta em torno de Que Horas Ela Volta?, quando quem odiou o filme não se manifestou publicamente por precaução (a não ser, claro, alguns outsiders), dando uma falsa impressão de que o filme se aproximava da unanimidade (muitos até falaram em unanimidade), Mãe Só Há Uma tem sofrido um pouco do contrário: críticas de lupa, o que não incomoda em outros filmes incomoda no de Muylaert. Sei muito bem, e defendo isso já há algum tempo, que adequação é tudo em cinema, e que é comum algo funcionar em um filme e não funcionar em outro. Mas a percepção é de que há uma certa compensação em jogo, e um filme esteja pagando um pouco alto pela blindagem do outro, ou de outros. Muitos olham para filmes brasileiros com condescendência e bom mocismo, outros olham com mais severidade do que para filmes internacionais, o que é igualmente equivocado.

A mãe ladra, que depois descobriremos ter roubado também a irmã mais nova de Pierre, é o mais perto que temos de uma personagem negativa, sobretudo quando trata a tia dos filhos de maneira grosseira (o que é até compreensível no contexto, já que a polícia está prestes a separá-la dos filhos que roubou para si). Mas mesmo ela, vê-se claramente, deu muito carinho às crianças, e não esperava ser capturada algum dia. Ela inspira compaixão, assim como a mãe biológica de Pierre (ou melhor, Felipe), que claramente não sabe como exercer o papel de mãe novamente, apesar de ter tido um outro filho depois de Pierre/Felipe. Age como se o filho reencontrado fosse um bebê. As duas mães são interpretadas pela mesma atriz, Dani Nefussi.

Claro que tanto ela quanto o pai biológico vêm de uma criação conservadora, familiar, não muito acostumada às mudanças dos tempos. Mas interpretar isso como um pecado é tão fascista quanto interpretar como o jeito certo de ser e de educar os filhos. O que o filme nos ensina é que o tempo pode curar as feridas, e coisas que são muito difícil de serem ditas, podem ser sentidas, e esse sentimento pode ser compartilhado (como fica evidente no plano final com os dois irmãos de sangue).

O mérito foi deixar bem claro que não há santos ou demônios na história. Ninguém é demonizado, nem mesmo o pai biológico (Matheus Nachtergaele), que tem uma reação homofóbica, dentro de um contexto de decepção e ansiedade, mas nada indica que ele seja, de fato, homofóbico. Passado o susto, é bem possível que ele aceite numa boa algo que é de gerações posteriores a sua.

Num mundo perfeito, Pierre seria também Felipe, abusando do carinho de duas mães, que entenderiam perfeitamente a situação de uma criança que foi roubada duas vezes (como ele mesmo diz). Teria uma irmã e um irmão, a quem poderia ensinar coisas, inclusive a não ser preconceituoso, mostrar músicas, fazer o que irmãos mais velhos fazem. O mundo, claro, não é perfeito, e é bom que o filme apenas acene uma possível conciliação, deixando abertura o suficiente para antevermos as múltiplas reações e consequências que essa nova vida de Pierre/Felipe irá causar nele e em todos à sua volta.

Formalmente, é um filme afobado, com uma câmera na mão nem sempre bem manejada, mas no geral satisfatória (ao contrário do que pensam, não é fácil filmar com a câmera na mão, é uma opção que requer um ótimo operador e muitos cuidados). O desleixo é parte integrante de seu estilo (ia falar em poética, mas achei exagero). Não chega a ser totalmente mal filmado, a não ser em poucas cenas de indecisão, mas é certo que poderíamos exigir mais nesse sentido. É um desleixo em adequação com toda a incerteza da vida dos personagens, a inconstância da adolescência e da drástica mudança que veio sem que ele estivesse preparado. Mas é afobado, dizia, com uma cena, já no final, demonstrando mais claramente o ritmo que contamina toda a narrativa: quando os pais biológicos da menina vão buscá-la, cheios de promessas, jamais demonizados, mas inseguros, tensos, com enorme pressa para sair logo daquela situação de desconforto, tirar logo aquela filha que lhes escapou de um lar postiço (postiço na cabela deles – na cabeça dela é o verdadeiro lar). Tudo é muito rápido, mesmo com a necessidade de uma providencial ajuda da assistente social, instância mediadora de conflitos, apaziguadora de tensões. Vemos os pais chegando, tentando levar a menina, a assistente social agindo, a menina saindo com eles. Cena apressada. Seria interessante ficar mais tempo ali, dar tempo aos personagens, deixar que eles se acostumem. O desafio maior seria para a pequena atriz, mas ela já tinha demonstrado que poderia dar conta do recado. No mais, que se critique o filme pela afobação ou pelo desleixo formal, não por fazer caricatura da classe média (o que não faz, exceto na cena em que Felipe é observado como num circo). Além de que esse tipo de caricatura, em adequação ou não ao registro escolhido, existe em diversos filmes, bons, muito bons, até obras-primas, como também em filmes ruins.

Num filme tão dependente do naturalismo (“o naturalismo está matando o cinema brasileiro”, disse Joel Yamaji, provavelmente a pessoa mais preocupada com o cinema brasileiro que eu conheço), mais que o anterior, é de se estranhar uma cena como a que os irmãos repartem um ovo frito. Pierre dá um pedaço da clara para sua irmã, e esta o come como se estivesse em um banquete de gente fina, com enorme cuidado na maneira de segurar o garfo e a faca. Parece pequeno, mas se estamos atentos percebemos um desequilíbrio na fruição, um descompasso desnaturalizante que se transforma em um ruído a lembrar (aos que estão envolvidos com a história) que vemos apenas atores num filme. Esse mesmo desconforto desnaturalizante é perceptível no jantar de encontro de Pierre/Felipe com sua nova família, mas bem discretamente, quase passa em branco. Desnecessário dizer que essas cenas só estão deslocadas porque o registro escolhido é naturalista.

Finalmente, penso que é um filme mais naturalmente feminino que o anterior. A feminilidade brota mais forte em Pierre quando ele está pressionado. É um pouco provocação, sim, ele botar vestido e deixar de lado as camisas de homem que os pais novos queriam lhe dar. O pai Nachtergaele percebe a provocação, e por isso também não se pode acusá-lo de homofobia (ele não permitiria Felipe em casa, fosse homofóbico de verdade). Mas essa vontade de se vestir de mulher é também uma saída do casulo, tornada possível pela sensação de perda. A vontade de provocar se juntou ao desejo de sair do casulo. Quando se perde algo, ganha-se a liberdade de mudar de hábitos, mudar radicalmente por vezes. Pierre/Felipe não tinha pai antes, agora terá um, assim como terá um irmãozinho. Mas é com as mães que ele terá uma possibilidade de se acertar na nova vida. É aceitando a nova mãe sem romper com a antiga que ele poderá encontrar uma nova paz e exercer sua liberdade sexual do jeito que ele bem entende, contando até com a aprovação do pai e do irmão biológicos.

Há clichês, claro. Mas clichês, no cinema ou na crítica, podem ser bem usados. Mesmo uma cena meio besta como a da tia incentivando Pierre e jogar os pratos contra a parede se encaixa naturalmente dentro da ideia geral de inadequação do adolescente, de uma vida que jamais poderá ser plena porque sempre existirá uma divisão entre uma família e outra, atenuada por uma outra divisão, mais saudável, entre o homem e a mulher que convivem mais ou menos harmoniosamente dentro de Pierre. Outra cena que se tornou clichê no cinema atual: uma criança vendo TV, filmada lateralmente, com a TV do lado esquerdo, quase saindo do enquadramento, e a menina do lado direito (pode ser o contrário também). Diagonal negada, é o mesmo procedimento que aparece em um monte de filmes brasileiros atuais.

Mãe Só Há Uma se arrisca bastante em uma direção bem menos controlada que no filme anterior, e talvez por isso os erros surjam também com maior naturalidade, ao contrário do outro filme, em que os erros (falso pedido de casamento, reencontro de Jessica com a mãe no final, invasão de Regina Casé para berrar que a filha passou no vestibular, planos toscos de reação dos ricos) surgem como gritos, amplificados pela inadequação formal. Melhor errar pelo risco do que pelo cálculo, penso. Uma vez que é muito raro um filme não errar num momento ou outro, melhor abraçar um estilo que seja adequado a uma ideia do que forçar o estilo evitando contracampos necessários (planos de reação de Jéssica, uma vez que Camila Márdila é uma grande atriz e poderia nos emocionar) e inventando contracampos desnecessários (os planos de reação dos patrões, para mostrá-los de forma obviamente grotesca). Tudo depende do tom e do registro em que se trabalha, e desta vez não dá para dizer que houve inadequação entre um e outro. Até porque os atores estão todos bem, contribuem para nos sensibilizarmos com o drama, e a direção soube permitir que os atores nos conduzam à emoção. Os problemas que existem em Mãe Só Há Uma poderiam ser contornados, mas são menos graves, afetam menos nossa experiência. É um simpático filme torto.

Sérgio Alpendre

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Digerindo o Cinema Ilusório de Anna Muylaert – por Joana Lorenzetti

Que Horas Ela Volta

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