Ano VII

A frente fria – Texto 2

segunda-feira ago 15, 2016

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A Frente Fria que a Chuva Traz (2015), de Neville D’Almeida

Por Guilherme Savioli

Tanto em Copacabana Mon Amour [1970] quanto em Sem essa, Aranha! [1970], Rogério Sganzerla filmou a cidade do Rio de Janeiro como um verdadeiro vulcão prestes a entrar em erupção. Nessa paisagem, Sganzerla foi mestre em captar, principalmente, as forças mais submersas, mais primordiais, que se agitavam nas profundezas e ensejavam a caótica cidade que nos era jogada na tela. Em Abismu ele iria ainda mais longe em sua prospecção: filmar o Brasil era filmar a gênese da civilização egípcia, a separação mesma dos continentes e vice-e-versa.

Para dar conta desse fenômeno de proporções épicas, foram necessários dois pilares, dois sustentáculos que compõem o olhar sganzerliano por excelência. O primeiro é a subida aos morros cariocas: o olhar do alto das favelas rumo ao asfalto (Copacabana) e os turbulentos planos-sequências que captam o movimento de descida do chão de terra às ruas asfaltadas (Aranha), sintetizam toda a história brasileira, ou seja, dão conta de todos os aspectos de sua época, compreendem-na num gesto brusco, mas são, ao mesmo tempo um recorte vertical que apontam para a sua origem. O segundo pilar é o entrecruzamento de referências, o amálgama cultural encarnado por seus personagens: novamente, das referências mais diretas aos tipos (das forças mágicas da umbanda ao banqueiro salafrário que comanda a economia nacional), o objetivo é apreender o caos a partir de um ponto originário, sintético.

Se Sganzerla foi o cineasta das profundezas cariocas, Neville D’Almeida foi o cineasta das superfícies. Seu primeiro filme, Jardim de Guerra [1968], começa com o personagem de Joel Barcellos sendo fichado e sua identificação sendo feita, portanto, através da extração de suas digitais (a forma mais direta, mais superficial – apesar de certeira – de se identificar alguém). Logo em seguida, vê-se o mesmo ator imitando Hitler e tendo um outdoor da Coca-Cola, ao fundo. Ao captar a polarização ideológica, o clima repressivo e as forças e atores sociais que caracterizam a época, Neville parte dos discursos mais diretos, mais óbvios, que identificam os mesmos, ele se atém à superfície. Se há um cineasta que soube utilizar-se do tão falado – mas muito mal compreendido – esvaziamento, esse cineasta foi Neville D’Almeida, em especial nesse filme. Isso porque não se trata, para ele, de simplesmente contemplar o vazio niilista ou o clichê condenatório, a partir desse esvaziamento, mas sim tencioná-lo, abruptamente, a partir da própria torção desse vazio sobre si mesmo: é o efeito das cenas de tortura, sobrepostas aos jargões mais clássicos das forças repressoras da época. Rompe-se essa superfície e a consequência é verbalizada pela personagem da cineasta (que faz um filme dentro do filme), ao final, quando se espanta que tudo aquilo que está retratando em sua obra (a vida, a morte) pesa existencialmente, de fato.

A cartografia específica da cidade do Rio de Janeiro acontece, de forma mais precisa na obra de Neville, em Rio Babilônia [1982]. Uma trama político-policialesca que dá conta da desgraça nacional (se o banqueiro/testa-de-ferro internacional de Sganzerla é sintético, o de Neville é genérico), um protagonista flâneur (novamente Barcellos) que procura atualizar a figura do malandro e costurando tudo isso, o que realmente interessa ao filme: as situações – arraigadas pelos tipos sociais mais marcados possíveis – nas quais se revelam todas as entranhas de uma época. É nesses momentos – uma festa de réveillon invadida por assaltantes, um ménage à trois na zona sul, uma fracassada subida ao morro para buscar cocaína, uma apresentação (para gringo) de escola de samba que termina em discussão – que se forma a ossatura do filme, não no desenrolar da trama propriamente dita (diferença fundamental desse trabalho para as adaptações que Neville fez de Nelson Rodrigues e de Plínio Marcos, por exemplo).

A Frente Fria que a Chuva Traz [2015] – novo filme do diretor, após um hiato de dezoito anos em longas-metragens – parece retomar o mesmo tipo de situação e foco que havia em Rio Babilônia. Trata-se de uma tentativa de cartografia do Rio de Janeiro – agora dos anos 2010 – partindo da mesma atenção extrema à superfície. A sensação é, contudo, de que algo se passou com aqueles personagens-tipos do filme de 1982. Se antes havia uma espécie de energia, uma espécie de euforia que costurava a trama e empurrava os personagens para frente, sempre para a próxima situação, para o próximo dia (não à toa, o intervalo de uma semana no qual se passa Rio Babilônia é contado diariamente, com inscrições na imagem), 33 anos depois, esses mesmos personagens parecem estar extremamente cansados. Mais do que amá-los (filmando com compaixão os excluídos) ou detestá-los (expondo a face mais ridícula dos playboys que organizam uma festa na laje, no Morro do Vidigal) o que interessa é registrar esse cansaço, os últimos suspiros (o filme imprime o ritmo de um último passo antes da convalescência total) e os choques que sempre advêm das situações terminais.

Isso se nota, principalmente, na figura de Amsterdan (Bruna Linzmayer), a outsider do grupo, a que sempre topa fazer um último programa para conseguir a última dose e a que despreza, totalmente, não só aquelas pessoas, mas a própria existência da cidade do Rio de Janeiro. É dela o momento crucial do filme, no qual se rompe (assim como as cenas de tortura e a fala da cineasta em Jardim de Guerra, ou as caminhadas e assertivas de Joel Barcellos em Rio Babilônia) o esvaziamento construído ao longo de toda a sua duração: quando, ao final, para além de qualquer ironia, ela expõe, com crueza, a dinâmica social que rege não só aquela festa, mas a própria cidade, como um todo. Ao contrário dos outros filmes, porém, aqui tudo se recompõe e, como um condenado em seu último suspiro, retoma-se a festinha (há promessas de que essa será a última).

Falávamos do esvaziamento que, nesse filme em especial, parece sugar a energia vital das personagens. Há uma dureza na construção do andamento dramático que reflete muito bem isso. Tudo se passa quase que num único local e num período de tempo curto e contínuo (o roteiro é baseado numa peça teatral), os personagens transitam muito pouco pela cidade e a história se desenrola, basicamente, a partir dos preparativos para uma festa e da banalidade dos diálogos travados nessa situação. A vista privilegiada do Vidigal abriga o desenrolar de tudo e é captada em planos que remetem, diretamente, à maquiagem borrada (ironizada pelas outras personagens) de Amsterdan: é um colorido de um saturado sem sentido, que não abriga nenhuma promessa (como as forças subterrâneas, primordiais e ancestrais que habitavam o cinemascope de Copacabana Mon Amour e ameaçavam, a todo momento, emergir em meio ao caos), esvazia a beleza, borra a separação entre morro, asfalto e mar. Aquilo, no fundo, poderia ser um deserto e não à toa, também, o clímax do filme, com Amsterdan berrando que odeia a cidade, se passa à noite, com a paisagem de fundo já invisível, ou melhor, indiferenciada.

Neville D’Almeida refaz o gesto, outrora capitaneado por Hélio Oiticica (de quem foi parceiro nas Cosmococas), da subida aos morros, mas sob uma atmosfera completamente desencantada. Mantém-se, porém, fiel às superfícies e nisso nos concede o único retrato possível do Rio de Janeiro hoje.

Guilherme Savioli

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