A importância de ser arte
A importância de ser arte
Por Rodrigo Cássio Oliveira
Pode o filme ser arte? Outro dia estava em uma palestra no Media Lab da UFG, e uma pessoa do público questionou se a arte digital deveria mesmo ser chamada assim, ou se ela seria alguma coisa diferente de arte, e por isso esse status não se aplicaria. Imediatamente me lembrei da pergunta acima.
Há algum tempo (pelo menos uns cinco anos) apresentei um trabalho em um colóquio de filosofia com um título idêntico. Pode o filme ser arte? Na época eu era um leitor entusiasmado da obra de Theodor Adorno, o que me levava a colocar uma série de ressalvas na minha resposta.
A ideia de que as mercadorias culturais são uma arte falseada para o consumo das massas me parecia uma verdade incontornável. De fato, não era difícil dar razão a Adorno quando eu observava os produtos típicos da indústria cultural, e os comparava com as formas de experiência que as obras “menos mercadológicas” ofereciam.
Para o Adorno mais teimoso e obstinado, o da Minima Moralia ou o da Dialética do Esclarecimento, o cinema não poderia ser considerado arte. A sua centralidade na indústria cultural, baseada na afirmação da realidade pelo registro mecânico da câmera, condenava os filmes a serem o “carro-chefe” das mercadorias da cultura.
Já para o Adorno mais nuançado, que escreveu o ensaio Filmtransparente em 1967, havia uma tensão fundamental entre as pretensões artísticas e as meramente capitalistas no cinema. Sob certas condições, e gerando certos resultados, um filme até poderia ser arte.
Isso fica bem evidente quando Adorno compara, neste texto mais maduro, a relação da visão com a pintura, da audição com a música e das imagens com o filme. Embora a origem tecnológica do cinema o comprometesse com o realismo embusteiro da indústria cultural, a “estética do filme” se acomodaria melhor na busca pela recuperação de uma experiência subjetiva não realista, aproximada do sonho ou do devaneio.
É aí que Adorno sentencia: “Kunst wäre der Film als objektivierende Wiederherstellung dieser Weise von Erfahrung” (O filme pode vir a ser arte como uma forma de recriação objetivadora dessa forma de experiência).
O filme-peça Antithese, do compositor Mauricio Kagel, seria para Adorno um exemplo de arte no cinema.
Os graus de artisticidade
Não deixei de apreciar a sensibilidade estética de Adorno, e sobretudo o elitismo das suas posições sobre a arte. A recusa adorniana de que a qualidade artística é relativa aos contextos de recepção fez com que ele fosse rejeitado, quando não “pacificado” pelos pesquisadores relativistas dos novos estudos culturais. Este Adorno ainda é muito importante. No entanto, as suas ideias sobre o cinema me parecem, hoje, prescritivas demais.
Um dos motivos que me fazem concluir assim é o grande apego de Adorno à ideia de que certas características formais são capazes de definir os filmes como menos artísticos ou mais artísticos. Avaliando com rigor o argumento de Filmtransparente sobre o resgate de uma experiência estética “mais subjetiva” no cinema, o grau de artisticidade dos filmes variaria entre as formas narrativas e realistas (menos artísticas) e as formas subjetivistas (mais artísticas).
Não acredito mais que um argumento assim seja defensável.
Essa conversa sobre Adorno me lembra de outro episódio que vivi recentemente na UFG. Estava assistindo a uma banca de mestrado sobre narrativas seriadas da televisão, e a pergunta sobre o status artístico do cinema veio à tona mais uma vez. Será que os filmes são arte?
Inesperadamente, um professor da banca transferiu essa pergunta para mim, pedindo uma opinião. Minha resposta foi muito diferente do que eu diria na época em que era leitor assíduo de Adorno: “Ora, se até o mictório de Duchamp pode ser considerado arte, por que um filme não poderia?”.
De fato, deveria haver um contrassenso muito maior em considerar que um simples urinol é arte do que em admitir que as séries de TV o são. No entanto, a legitimidade que a arte contemporânea conquistou no meio acadêmico faz com que raras vezes a sua condição de arte seja questionada com a mesma ênfase crítica e polêmica usada contra o cinema ou as séries de TV.
Ainda há, aqui, muito adornianismo, uma vez que esta regra geral se aplica sobretudo contra os produtos mais mercadológicos e massivos, como o cinema de Hollywood, os filmes produzidos pela Rede Globo ou as séries de TV como um todo – afinal, é da essência da televisão ser mercadológica e massiva.
As práticas recentes de valoração
A relação mal resolvida dos intelectuais com a cultura de massa é um ponto-chave nessa disputa acadêmica sobre cultura e mercado.
Contra Adorno, os estudos culturais mais recentes se afastaram do formalismo e militantizaram o discurso sobre a arte até um estado sufocante. Estes culturalistas defendem que o valor das obras não tem a ver propriamente com o seu status artístico, mas sim com o resultado de processos de valoração externos a elas. Desse modo, eles corroboram as “comunidades valorativas” de sua preferência, diminuindo ou anulando a importância dos aspectos formais no debate.
Por este caminho, as obras passaram a ser apreciadas pelo que têm a dizer sobre minorias (negros, mulheres, gays etc.) ou sobre a política partidária no seu nível mais superficial e imediato. Uma tendência atualíssima do cinema brasileiro, por exemplo, é celebrar os cineastas que adotam a postura correta em relação ao impeachment de Dilma Rousseff, denunciando o “golpe” e criando representações negativas dos hábitos de vida e da visão de mundo de uma classe média alienada e “golpista”.
O sucesso de crítica de um filme apenas razoável (e isso já é elogio) como Que Horas ela Volta?, de Anna Muylaert, só se explica como a chegada ao auge de um cinema político paternalista que Glauber Rocha criticou duramente na concepção do Cinema Novo. O Cinema Novo, aliás, pode ser apontado como exemplo de um movimento artístico que não precisou abdicar do formalismo, muito embora tenha sido essencialmente político. A representação maniqueísta e melodramática das classes sociais em Que Horas ela Volta? lembra muito as estruturas binárias de Cinco Vezes Favela, filme que Glauber Rocha criticou como um modelo a ser evitado no Cinema Novo, justamente pela fragilidade formal das suas representações.
Os novos teóricos e críticos do cinema, porém, não parecem mais preocupados com o vigor formal das representações do que com o sentido moral delas. Sobre as ruínas do formalismo, o politicamente correto é a chancela de muitas das valorações críticas no presente.
Essa via não formalista tem sido o ponto de contato quase único entre uma teoria geral da arte contemporânea e uma crítica da cultura de massas no Brasil. Mesmo a popularização de um autor provocativo como Arthur Danto não foi o bastante para que uma crítica formalista da arte de massa fosse repensada, superando o legado adorniano e propondo alternativas mais promissoras para o estudo das obras.
Sinal disso é que Danto seja reconhecido como um crítico ferino do formalismo (especialmente o de Clement Greenberg), mas ignorado como crítico do relativismo culturalista. Vejam, por exemplo, o esforço retórico deste artigo para rejeitar os argumentos de Danto contra os relativistas[1]. Essa “limpeza” do discurso de Danto para adaptá-lo à hegemonia do culturalismo indica o quanto a recepção de autores estrangeiros celebrados na universidade brasileira pode ser parcial e problemática. Trabalhos atuais não relativistas sobre a cultura de massas, como o de Noël Carroll (A Philosophy of Mass Art), ainda aguardam tradução por aqui. A obra inteira de um crítico greenbergiano como Hilton Kramer, cujo legado é um contraponto importante à teoria do fim da arte reconhecido pelo próprio Danto, permanece não somente inédita no Brasil, como também é ignorada no debate acadêmico.
Refazendo a pergunta (ou abandonando-a de vez)
Seja contra a arte digital ou contra o cinema e as séries de TV, penso que a suspeita de que estes produtos “não são arte” tem origem em uma linha de reflexão sobre os objetos culturais que deveríamos revisar, ou, simplesmente, abandonar.
Pode isto ser arte? A abrangência filosófica dessa outra pergunta – que substitui com o pronome “isto” uma infinidade de nomes possíveis – foi desde sempre muito menos fundamental para o debate sobre conteúdo e forma do que parece à primeira vista.
Desde Duchamp e Andy Warhol a arte foi liberada de se justificar como arte, podendo assumir formas tão distintas como a de um mictório ou uma caixa de sabão em pó. Por mais que o impacto dessa revolução seja grandioso, não vejo razões para acreditar que a dificuldade de definição da arte tenha sido a consequência mais importante dessa liberação.
Pode isto ser arte? É inegável que o grande interesse que essa pergunta ainda suscita (como nas duas ocasiões recentes em que me deparei com ela na universidade) acena para uma inquietação que permanece viva, mesmo depois de tantas décadas de oficialização da arte contemporânea e consolidação da cultura de massas.
Todavia, esse sentimento de inquietude está sempre ligado a uma reação às formas das obras, seja quando ela começa no espanto diante de um mictório transformado em arte, seja quando ela começa na constatação de que, na prática, o mundo da arte e a cultura de massas são distintos e separados (os seus consumidores que o digam). O chamado formalismo não seria, ainda, uma alternativa viável e até mesmo urgente para teóricos e críticos?
Por certo, a liberação de significado promovida pelos artistas levou a uma supervalorização da pergunta “o que é a arte?” na teoria e na crítica contemporâneas. Esse processo curiosamente refreou o desenvolvimento de um dos efeitos mais positivos da liberação, que seria a obsolescência de teorias prescritivistas como a de Adorno sobre o cinema. Enquanto todos se preocupavam com a definição daquilo que se mostrava arisco a definições, o formalismo é que efetivamente foi lançado no abismo do esquecimento.
Hoje, a formação culturalista conduz os novos críticos à ignorância sobre o verdadeiro significado do formalismo, confundindo-o com prescritivismo. Apesar disso, os próprios culturalistas são descaradamente prescritivos quando arbitram sobre as representações mais adequadas para os movimentos sociais ou partidos políticos adulados pela teoria. O intenso diálogo de Danto com Greenberg em After the End of Art é um momento de rara dignidade e erudição na antessala da situação que vivemos. Mas o simples fato de reconhecer em Greenberg qualidades que os seus contemporâneos já não possuem leva Danto a ser revisado pelos seus pares.
Pode isto ser arte? Muito mais importante que essa pergunta é uma outra, que deveria vir logo a seguir. Pode a boa arte resistir ao afã interminável de tentar defini-la?
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[1] “Na minha opinião, é extremamente curioso o fato de Greenberg e Danto coincidirem num ponto tão controverso quanto o da possibilidade de crítica objetiva da arte: ambos concordam que deve haver critérios de qualidade (talvez por serem ambos críticos de arte?). Mas esses critérios nunca são colocados em palavras. A pergunta que me faço é a seguinte: por que devem existir critérios de qualidade?” (FOSCOLO, Guilherme. Greenberg, Danto e a crítica: problemas de um triângulo. Viso – Cadernos de Estética Aplicada, n. 4, jan./jun. 2008)
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