Ano VII

A balada do desaparecimento

segunda-feira ago 15, 2016

A balada do desaparecimento (sobre A Morte Não Manda Recado, de Sam Peckinpah)

Por Wellington Sari

Time went by and I left and I left again

Jesus loves a sinner but the highway loves a sin

Jason Isbell

A triste balada de Cable Hogue, no filme maldito de Peckinpah – não são todos eles malditos? – nos mostra que se o cinema, o grande cinema, é uma máquina do futuro responsável por velar o presente, Sam é quem produz as mais belas liturgias fúnebres, porque realizadas enquanto ainda se está vivo. Como explica Hogue: a pior coisa em morrer é não saber o que vão dizer sobre você. Se o presente fosse uma entidade, sua missa fúnebre seria conduzida por Sam Peckinpah.

Que presente era esse, o de 1970, ano de lançamento de A Morte Não Manda Recado? Era o de uma América confusa, apequenada, que, graças à Guerra do Vietnã, via a bandeira como símbolo que representa apenas os poderosos, os homens que tomam decisões com motivos escusos, e não mais como elemento a balançar no alto de um poste, fincado na terra com a intenção não só de demarca-la, mas de abençoa-la. A América da dicotomia: dividida entre a cerca e a estrada, a bala e a benção, o país nasceu do conflito, para o conflito. Quando Cable Hogue, o homem que achou água onde não havia, finca a bandeira e demarca a Cable Springs, o oásis civilizatório no meio da imensidão de rochas, areia e lagartos, ele está recontando um passado “glorioso” (e vermelho) que não ressoa mais no presente – que, na TV, pela CBS, mostrava o exército, formado por garotos do Arkansas, de Kentucky, de Omaha, sujos de lama em um território úmido e aquoso, levando a bandeira – e, junto com ela, uma ideia de “civilização” – para onde não devia. O fim do western começa e termina no Vietnã.

Sam Peckinpah é o poeta do desaparecimento. Não é por acaso que sua métrica de preferência seja a da poeira. Todos os filmes da Sam são cobertos por partículas de pó que esvoaçam junto ao solo, aderem-se à imagem. Elas grudam às roupas e ao rosto dos personagens. Logo no início de A Morte Não Manda Recado (1970), um pouco antes de Cable encontrar água, o vemos vagar pela tempestade de areia, que parece criar um manto a envolver o personagem. Ao final de Os Implacáveis (1972), McQueen/McGraw fogem na camionete caindo aos pedaços, cuja crosta bege, adquirida depois de sabe-se deus quantas mil milhas rodadas, é a capa que dá poderes ao casal fora da lei. A fuga, momentânea – tudo em Sam é passageiro – está garantida. Finalmente, em Comboio (1978), Peckinpah faz a poeira valsar, conduzida pelo grupo de caminhoneiros que, serpenteando pela estrada de terra, como grandes lagartões do deserto, fazem os policiais dançarem, permitindo o escape desses cowboys das 18 rodas. São outros tempos e se em A Morte Não Manda Recado o calhambeque era um monstrengo desengonçado, chacoalhando em Cable Springs, levantando poeira hedionda, fervendo o vapor da sede bestial do motor que precisa de galões de água para voltar a andar, em Comboio a máquina já está completamente integrada à terra. As areias do tempo, em Peckinpah, estão sempre escorrendo, lentamente, vagarosamente, mas sempre caminhando para a estrada do pó, o elemento final para onde se retorna.

 

vlcsnap-2016-07-28-19h48m09s816

 

vlcsnap-2016-07-30-12h24m10s457

Tudo o que Sam filma tem o aspecto de último registro de uma matéria já bastante roída pelo tempo: o bando de old-timers, caronas cheias de rugas, cabelos ralos, barbas espessas e olho amarelado que povoa seus filmes – mesmo Steve Mcqueen, em Dez Segundos De Perigo (1972) e Os Implacáveis tem algo de cansado – convive com um espaço fronteiriço entre o habitável e o inóspito, entre a terra de ninguém e a lei da borda, que funciona sempre à beira do abismo. Sendo assim, os bordéis são tão gastos quanto as putas, de sabor Tex-Mex, os botecos, precários, e os banhos, bem, estes são bastante raros.  Jason Robards, o Cable Hogue, é o homem de rosto perfeito para Peckinpah. O rosto que já viu muito, já cultivou muita barba e decepção, que, no entanto, ainda não está entregue ao fim. Antes de vislumbrar a morte, Robards olha para os céus, em esperança – e todos conhecemos a serenidade de Robards quando em face da morte, eternizada em Era Uma Vez No Oeste – seja no começo de A Morte Não Manda Recado, quando suplica por água, seja no final, atropelado, literalmente, pelos novos tempos que chegaram para ficar.

É justamente por ficar que o pobre Hogue desaparece. Para alcançar o futuro, os homens de Sam precisam pegar a estrada, se movimentar, deslizar junto das areias que escorrem pelo funil da ampulheta que, tic tac, tem hora marcada com a morte. Hogue vive falando que há tempo de sobra, a balada do filme canta que “Tomorrow is the song I sing/Yesterday don’t mean a thing/I’ll make today my next day’s dawn”, quando, em verdade, os homens de Sam sabem que estão nas últimas. Mesmo Billy The Kid tem ciência de que a dívida com o destino será fatalmente cobrada por Pat Garret e o que se pode fazer é seguir em frente enquanto for possível – ao passo que o cansado Garret, o old-timer dos old-timers, castigado pelo relógio, não aguenta mais viver sem saber o que vai acontecer em seguida, e prefere apegar-se àquilo que lhe garante a estabilidade do presente, a lei, essa instância mantenedora do estado das coisas. Só que há uma grande questão nisso tudo: quem pega a estrada, invariavelmente esbarra no pecado. A estrada é o caminho do erro, da transgressão, ainda que seja a artéria que matém o coração batendo por mais alguns anos – quantas vezes o mártir Rubber Duck vai continuar escapando de Dirty Lyle? Os planos gerais com estradas, longas cobras no deserto, que se estendem até o horizonte, abundam na filmografia de Peckinpah e, estranhamente, as imagens parecem pertencer a um tempo primitivo, quando muitas culturas acreditavam na ideia da Terra Plana. Logo ali, no fim do horizonte das estradas de Peckinpah, não parece haver outra coisa além de um gigantesco abismo.

 vlcsnap-2016-07-30-12h22m32s016

vlcsnap-2016-07-30-12h26m03s782

 Cable Hogue poderia ter encontrado a salvação no amor de Hildy, a prostituta que, ao dar banho no personagem de Robards, conquista-lhe o coração, embora não o território: Cable, limpo da poeira da terra que lhe forma uma segunda pele, não consegue deixar o Oásis para trás e partir em jornada com aquela mulher – branca, loira – que claramente não pertence àquele espaço fronteiriço, de transição. Hogue é o mártir definitivo de Peckinpah, em um conjunto de obra repleto deles. Ele recusa a violência (ao abdicar da vingança contra aqueles que o deixaram a morrer no deserto), recusa o pecado e a salvação temporária para criar raízes, ir para debaixo da terra e alimentar o solo, por onde inevitavelmente, muito em breve, não se arrastarão mais lagartos e sim trilhos de trem (não é por acaso que, fazendo jus ao uso do cinema como máquina premonitória, Peckinpah mostra um lagarto explodindo, logo no início de A Morte Não Manda Recado).

 

vlcsnap-2016-07-28-19h46m33s897

Muito se fala da violência em Sam, o Bloody Sam, quando o que se deveria falar, antes de tudo, é da tristeza. A violência carnal do corpo em contorção, a vida se esvaindo em câmera lenta, é a violência do inevitável. E o inevitável, claro, é um conflito entre a ação e o tempo, com a vitória sempre do último. Prolongar a ação – o corpo baleado de Pat Garret caindo do cavalo pode ser uma das mortes mais tristes já filmadas – é, portanto, a única maneira de vencer o fim por pelo menos mais um segundo ou dois. Aí está mais um dos paradoxos – além daquele que é fugir para viver no pecado ou ficar para morrer no sacrifício – com os quais lida Peckinpah: é na violência carnal e na morte em que a vida tem o brilho mais intenso, ainda que muito curto. A explosão do lagarto grita: houve vida aqui. Do pó, nasce outra coisa: a pólvora, a metralhadora giratória, o petróleo, o caminhão. O sacrifício de Cable faz nascer Rubber Duck, no futuro. E a roda segue girando, pois nada é fixo em Sam, o que significa dizer que ele jamais poderia ter feito outra coisa que não filmes.

Depois de A Morte Não Manda Recado, Sam nunca mais filmou o sacrifício, apenas o viveu. Para que sua obra continuasse a captar a explosão da vida, ele mesmo teve de viver uma existência dependente da ingestão de elementos químicos que lhe provocassem momentâneos picos de vida, até que seu coração, como não poderia deixar de ser, explodiu em enfarto.

Parafraseando o sermão do reverendo Joshua para Cable, enquanto viveu, não houve um animal do deserto que Sam Peckinpah não conhecesse, um pedaço de terra em que ele não tenha pisado. Se ele nunca pisou em uma igreja, é por não precisar. O deserto era sua catedral.

© 2016 Revista Interlúdio - Todos os direitos reservados - contato@revistainterludio.com.br