Julieta
Julieta (2016), de Pedro Almodóvar
Maneirismo
Ao menos na premissa, o novo Almodóvar é forte: Julieta (Emma Suárez) construiu seu presente cuidadosamente sobre um abismo que ela evita a todo custo olhar de frente. Ela vive uma relação estável com Lorenzo (Darío Grandinetti), mas oculta — dele e de si mesma — uma parte decisiva de seu passado, como uma zona recalcada sobre a qual a vida segue como experiência frágil e precária.
Esse abismo que Julieta dissimula e no qual o filme irá mergulhar de cabeça é bem aquele do flashback. Mas essa digressão ao passado, que fique claro, se dá aqui menos nos termos de uma sondagem psicanalítica, como aprofundamento psicológico, do que como melodrama.
E o mergulho vai longe: Almodóvar tem prazer em fazer do filme esta “novela da vida” em que os eventos se somam, as coisas mudam, em que o tempo passa e os personagens vivem, adoecem e morrem — cf. a amiga da família com AVC; a mãe doente que morre e que o pai “substitui“ pela cuidadora, com quem chega até mesmo a ter um novo filho.
Mas o melodrama almodovariano, nós sabemos, é um melodrama de segunda linhagem, portanto autoconsciente e maneirista: ele existe menos como resposta a uma necessidade (narrativa, dramática) do que pelo puro prazer do mestre em manipulá-lo. Em seu mundinho particular, Almodóvar se reserva até mesmo no direito de incluir uma vilã dotada de estranhamento físico (Rossy de Palma no papel da empregada)! Estamos aqui em pleno pastiche, numa espécie de “estética da frivolidade” que, em tese, tiraria sua força das superfícies (1) ou de uma autoconsciência. O que lamentamos é que essa força maneirista se revele tão pouco aqui.
Os eventos da novela apenas se somam de maneira frouxa, descoordenada, sem propriamente se acumularem. Não fica claro como o suicídio do início no trem se conecta a todo o resto: o filme solta a bomba, mas sua força não se propaga e ela morre ali. No fundo, há uma cisão dramática com a qual o filme não consegue lidar plenamente: o drama forte do filme, que descobrimos ser a culpa pela morte do pai, pertence à filha, Antia, uma personagem ausente. E o que resta então a Julieta? Um presente pálido, titubeante, e o flashback maneirista.
De resto, há algumas interessantes porém erráticas tentativas de conectar o drama da personagem à cidade (o apartamento ou cena do basquete, que retornam diretamente do passado ao presente). Um bom truque de prestidigitação (a mudança de atriz sob a toalha). E que lugar restou para o vermelho na estética almodovariana? O glacê de um bolo insípido de padaria que —ironia desencarnada — acabará direto no lixo.
Uma pena.
Calac Nogueira
(1) Lembrar que uma das distrações do filme é notar as mudanças da moda nos figurinos: o visual new wave oitentista da jovem Julieta.
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