Caça-Fantasmas
Caça-Fantasmas (Ghostbusters, 2016), de Paul Feig
Muda-se o polo em que fica posicionado o orifício responsável por soltar o riso patético do comediante histérico – não se engane, estamos falando de ânus e vagina – mas o fato é que por mais válidas que sejam as discussões sobre gênero no Caça-Fantasmas de Paul Feig (existe agora um gênero de filme que é o filme de gênero) o triste artifício, o peido, continua lá, empregado com a mesma pobreza de espírito que faz a alegria do brasileiro há décadas, acostumado a gargalhar com Chaves, Leandro Hassum, Costinha e outros, que, embora não sejam usuários de fart jokes – propriedade dos EUA – praticam humor igualmente abobado. É isso, antes de tudo, que deveria provocar revolta nas massas.
Sendo uma comédia de troca de corpos – um tema recorrente nos dois filmes originais de Ivan Reitman, que figuravam vilões que possuíam outros corpos que não os originais – chega a surpreender que o longa tenha sido vendido (ou, mais precisamente, tenha sido recebido) como o equivalente a uma festa de halloween cujo tema seria o feminismo. Os motivos escusos para tal manobra publicitária todos conhecem. Ainda assim, sempre prontos para acreditarmos na mentira, caímos no golpe e fechamos os olhos para a verdade. Uns, acordam, pois sabem que o sonho (ou pesadelo) do politicamente correto é, como diz um verso de Paul Westerberg, algo já muito cansado para se tornar realidade. Outros, claro, vão continuar sonhando e enxergar em Caça-Fantasmas toda sorte de signos feministas, subversões e, auxiliados pela mão amiga das palavras-chave, vão empoleirar-se justamente em cima do filme, esse objeto que no fim das contas é meio incômodo – afinal, falar de imagens, de coisas que se está vendo, é um tanto difícil, um tanto exigente em excesso, cansa, pois, a atividade tem como requisito primeiro, bem, estar de olhos abertos.
Embora o filme se dedique a enfatizar justamente a troca de corpos, em piadas como a do balão – Melissa McCarthy e sua figura redonda voam de lá para cá, enquanto testa um equipamento – ou com os trejeitos à Rick Moranis de Kristen Wiig – piscadelas descontroladas, lábio inferior contraindo-se em momentos em que a personagem deve se mostrar constrangida – o humor resultante dessa tentativa de operação transgênero é quase sempre frágil, sem graça. É Kate McKinnon quem consegue ser melhor sucedida na incorporação de outro sexo – é ela, inclusive, quem faz a piada do peido frontal – e a aparência masculinizada lhe rende até uma sátira, possivelmente involuntária, do slow-macho-in-motion de um Zack Snyder, bastante precisa, ironicamente, como veremos abaixo, até na abstração do espaço (muitas das câmeras lentas nos filmes do diretor de 300 parecem habitar exclusivamente a interface de um programa de modelagem 3D). É ela, também, que se sai melhor no humor verbal, talvez pelo fato de a maioria das piadas ditas pela personagem serem piadas, de fato – e curtas -, ao invés do humor millennial, sempre propenso à autoanálise interminável e insegura. McKinnon, dado ao tamanho reduzido de sua personagem, é a única do quarteto a trabalhar ao fundo e no plano de reação inserido na montagem, mais ou menos como atuava Bill Murray nos longas de 1984 e 1989. O restante do grupo fixa-se no registro do óbvio, do descarado, do superficial – a grande marca que reúne todos os novos reboots e retalhos, lançados de mês em mês.
Por falar em superfície, é óbvio que a ideia para o logotipo das Caça-Fantasmas só poderia surgir de uma pichação na parede, assim como é previsível que haja manifestação de amor por meio de emoticons de coraçãozinho – curiosa inversão, apesar de coerente com um filme carente, que implora para ser amado: os dois longas de Reitman são declarações de amor à Nova Iorque, verbalizada por Zed, no alto do prédio em 1984, que grita amar a cidade; em 2016, é a cidade que precisa amar suas caça-fantasmas, manifestando-se com a linguagem infantilóide do hastag. E se os prédios de NY escrevem tweets – as frases de amor ao quarteto aparecem formadas nas janelas das construções – é justamente porque o filme se passa no mundo virtual. Esse mundo virtual da auto referência, da iconografia substituindo a dramaturgia, é espaço impalpável, sem contornos definidos. No ápice do terceiro ato, quando uma multidão de fantasmas caminha pelas ruas de NY, vemos seres luminosos ultra coloridos que se confundem com os paredões de telões publicitários que cercam os dois lados do caminho. Não é a Times Square, não é qualquer lugar da cidade: é a tela plana do anuncio luminoso, cuja preocupação única é com o valor de face. O fantasma neon é alma artificial que não tem corpo e que, para ganhar vida, tenta possuir um cadáver que não lhe pertence, resultando em figura hedionda, cuja existência é tudo menos natural.
Tão abstrato quanto espaço é a questão sexual: a troca de corpos exclui totalmente o sexo, com os macacões inteiramente fechados da equipe de caça-fantasmas servindo como perfeitos preservativos. Da total esterilidade, nada surge: nem uma engraçada comédia de troca de corpos, tampouco um interessante filme de empowermentxploitation, uma vez que não há possibilidade de posicionamento, no sentido de se colocar à frente de algo, ou de dominar certo lugar, quando o espaço é anulado em sua concepção física de volume e profundidade e substituído pela tela plana da publicidade. Se o filme é incapaz de construir um espaço, como poderia dar espaço às mulheres apropriadamente?
A relação entre a anulação completa da sexualidade com a imaterialidade do espaço é uma relação de causa e consequência que deve ser observada em diversos desses outros reboots/retalhos contemporâneos. Filmes de limbo, com corpos que já não são, a vagar por um lugar que não é outra coisa que não um inócuo meio do caminho.
Wellington Sari
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