Ano VII

Visita ou Memórias e…

segunda-feira mar 28, 2016

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Visita ou Memórias e Confissões (1982), de Manoel de Oliveira

“É um filme de Manoel de Oliveira sobre Manoel de Oliveira, a propósito de uma casa. É um filme meu, sobre mim próprio. Talvez não devesse fazer um filme assim. Mas… está feito.”

Assim começa Visita ou Memórias e Confissões, o filme que Manoel de Oliveira fez em 1982 para ser exibido só após sua morte. Sua voz anuncia a equipe como em Soberba, de Orson Welles. É depois substituida pela voz de Diogo Dória (ator de vários filmes de Oliveira) e Teresa Madruga (de Silvestre, de João Cesar Monteiro; Francisca, Meu Caso e O Dia do Desespero, todos de Oliveira; e Sapatos Pretos e Ganhar a Vida, ambos de João Canijo). Esses visitantes invisíveis andam pelo jardim da casa, dizendo palavras escritas por Agustina Bessa Luiz. Enfim, chegam a uma porta muito simples, que não parece pertencer àquele lugar, uma porta que os leva ao interior da casa. E assim a conhecemos, conforme eles a visitam.

Após 40 anos tendo-a como um lar, as dívidas obrigam-no a vendê-la. Ele expõe a situação, com o único pudor de torná-la visível apenas postumamente. Mas uma coisa incrível não nos escapa: em 1982,  o diretor que havia acabado de filmar a obra-prima Francisca (1981), e na década anterior tinha realizado filmes supremos como Benilde ou a Virgem Mãe (1975) e Amor de Perdição (1979), estava endividado. Essa é a aristocracia conservadora do Porto que João Cesar Monteiro apontou em entrevista. Aristocracia endividada. O maior diretor de Portugal atolado em dívidas. Por aqui, no mesmo período, Glauber Rocha morria sendo considerado um louco, apesar de sua incrível lucidez. Lá como cá…

Voltemos a essa visita. Os passeios da câmera pelo interior da casa, como já deve ter ficado claro, são a visão subjetiva dos visitantes (representariam os futuros moradores ou simplesmente eles mesmos, atores com quem Oliveira já tinha trabalhado e só a eles confiava essa intimidade invasiva?). Após um tempo de passeio, esses visitantes encontram o próprio Oliveira, explicitando o caráter pessoal de seu filme. Eles terminam o que tinham de falar e dão a vez ao mestre, que parece só ver a câmera, porque, afinal, é ela quem faz a ronda pela casa. Além de expor a situação que o obrigou a vender a casa (“representativa da arquitetura dos anos 30″), Oliveira discorre, com sua voz calma, lentamente, por vezes engolindo seco, sobre várias outras coisas: o sacrifício que fazia para realizar seus filmes (mal sabia que anos mais tarde faria uma média de um filme por ano), o que significava aquela casa para sua família, a esposa Maria Isabel, os filhos e seus casamentos, os netos (o diretor já tinha netos e a maior parte de sua carreira ainda estava por vir), sua criação desde o princípio, o sofrimento físico que é pior que a morte… Conforme segue o filme, suas falas começam a ser profundas, filosóficas (“a ficção é a verdadeira realidade do cinema”), como quando ele fala da mulher, de seu poder, do que simboliza. Fala de sua grande estima por Paulo Rocha, realizador de Verdes Anos e outros belos filmes, da verdade que há na artificialidade do estúdio cinematográfico (lembrei do que Resnais dizia em entrevistas, sobre o maior controle que podia ter no estúdio), do roteiro que está escrevendo (de Non ou a Vã Glória de Mandar, que seria filmado oito anos – e três longas – depois). Fala também da Tetralogia dos Amores Frustrados (série de filmes composta por O Passado e o Presente, Benilde ou a Virgem Mãe, Amor de Perdição e Francisca, todos, segundo disseram e ele próprio admitiu, sobre uma certa “sedução pela virgindade” – em O Passado e o Presente? Mesmo?). Passa alguns filmes da infância num projetor.

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Num dos momentos mais tocantes, vemos sua esposa, Maria Isabel (“a realidade sem subterfúgios”), no meio de um monte de flores. Ela confessa que nos últimos anos  ficou sobrecarregada, cuidando sozinha de problemas materiais e familiares para que Manoel de Oliveira pudesse realizar seus filmes. Não lamenta o que sacrificou. Nem mesmo reclama. Uma vida “de abnegação e compreensão, porque não se pode separar o artista do homem”. Graças a ela, à sua abnegação heróica, tivemos os filmes todos de Manoel de Oliveira. O que pensar então dessa mulher, de fala igualmente mansa? Nós só temos de agradecê-la, e ao mesmo tempo sentimos um travo na garganta pela sua dedicação à casa e à família, deixando de lado seus próprios desejos, seu amor pela pintura. Seria um erro, no mínimo um anacronismo, acusar Oliveira de machismo ou mesmo egoísmo. Eram outros tempos, outra criação, outra ideia de como se perseguir os desejos. E também não sabemos como funcionava a dinâmica do casal. É sob os olhos e a sensibilidade de hoje que sentimos esse travo incômodo, mas eles viveram muito bem até que a morte os separou.

Quem admira o cineasta, na época com 73 anos, sente-se ao mesmo tempo emocionado e envergonhado com a invasão de sua intimidade. Ele próprio facilita e ao mesmo tempo dificulta essa invasão. Coloca fotos de Maria Isabel quando jovem na frente da cena que mostra o cuidado que ela, no presente do filme, tem com as flores. É um álbum de fotos intrusivo, que se cola na frente do que estamos vendo.

Digressão: a arquitetura segundo Manoel de Oliveira

Oliveira fala sobre outra de suas paixões, a arquitetura. E aí lembrei-me de uma entrevista concedida a João Bénard da Costa e José Neves, publicada no delicioso livro O Lugar dos Ricos e dos Pobres no Cinema e na Arquitectura em Portugal (Dafne editora). Nessa entrevista de 2008, a respeito de seu filme O Passado e o Presente (1972), ele diz simplesmente, para desespero de seu interlocutores e do público que assistia à conversa (em sua maioria, estudantes de arquitetura), que, para ele, arquitetura não é arte. Em suas palavras:

“A arquitectura não é uma arte porque entendo que a arte em si não tem uma finalidade útil. A arquitectura tem uma finalidade útil. A arquitectura, o princípio da arquitectura, foi tirar o homem da caverna, que não fazia arquitectura nenhuma e estava num buraco. A arquitectura baseia-se num programa. Pode fazer um hospital, uma universidade, um casino, uma sala de cinema, enfim… mil coisas. E tem de respeitar esse programa, não pode desfazer esse programa.”

E, mais tarde, após uma breve discussão com José Neves:

“Ouça, a arquitectura não filma. O problema está em nem tudo ser arte – e, claro, definir arte é muito difícil. Hoje, na pintura, em qualquer coisa, até na arquitectura… A arquitectura hoje, por exemplo, vê-se bem nos grandes aeroportos, em que há mais engenharia que arquitectura. Aquilo é tudo ferro, aço e vidro. A arquitectura perdeu-se um bocado.”

E de fato, o filme que mais se assemelha com Visita na carreira de Manoel de Oliveira é justamente O Passado e o Presente, um de seus filmes mais buñuelianos, no qual uma casa, mais burguesa e sinistra que a de Oliveira em Visita, é também uma personagem, testemunha da queda daqueles que amam Vanda, dos andares esquisitos dos homens que pela casa andam, e da falência moral daqueles que a visitam. Entre um e outro, três longas responsáveis por Oliveira ter se tornado grande, um dos maiores.

Epílogo

No final, o diretor diz “sumo-me”, numa incrível coerência com o destino desde sempre testamentário do filme.

Apesar de um ou outro momento de mise en scène vistosa, e de um travelling fassbinderiano no início da cena com Maria Isabel entre as flores, Visita ou Memórias e Confissões é de uma simplicidade tocante, e tem curiosa relação com o filme mais recente de Andrea Tonacci, Já Visto Jamais Visto. Ambos pensam na memória como forma de entender coisas acontecidas e superá-las, ou simplesmente aceitá-las como acontecidas; ambos buscam novos sentidos para imagens anteriormente registradas; ambos falam diretamente ao coração.

Sérgio Alpendre

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