Ano VII

A Vizinhança do Tigre

sábado mar 26, 2016

tigre

A Vizinhança do Tigre (2014), de Affonso Uchoa

Depois de mais de dois anos circulando em festivais A Vizinhança do Tigre finalmente estreia comercialmente, e o que há ainda para se dizer sobre o filme? Pode-se, mais uma vez, elogiar a espontaneidade dos atores e a generosidade da direção, que faz deles a medida exata do filme. Mencionar as armadilhas evitadas, o tom correto (nem fatalista/miserabilista, nem afetivamente alienado). Falar do processo colaborativo, do fato de que este é um filme construído junto com os atores, e que isso não apenas se sabe, mas se vê, se sente enquanto se assiste. E o que mais?

O filme de Affonso Uchoa nos atira num limbo: apesar do título, das locações reais e concretas, não é tanto um lugar (o “Bairro Nacional, em Contagem”) que o filme nos apresenta. As locações são de uma indiferença brutal: o interior de duas ou três casas, um matagal, um morro. Não há fetiche em mostrar, em articular um espaço inteligível para o espectador. Uma vez que o que importa para o filme é conviver com os personagens, o próprio espaço cênico aqui parece ser moldado em função deles.

O limbo em que o filme nos atira é aquele da adolescência, ou da juventude. Este período um pouco doloroso da vida, composto de um misto de tédio, algumas fantasias e muita energia pra gastar — e, no caso dos personagens em questão, pouca expectativa para o futuro. Mas, sobretudo, de tédio. Nunca entendi por que a adolescência é sempre retratada como um período essencialmente agitado: para muitos de nós ela foi um grande tédio, este lapso em que se aguarda que algo aconteça, em que se espera algo que está por vir.

O filme se concentra nesses intervalos ociosos em que os personagens basicamente matam o tempo, matam o tédio, em que jogam energia fora: zoando, brincando, num skate ou na roda de um show (atenção, cineastas: é possível fazer um filme que fale do tédio sem que ele seja tedioso e modorrento). A escola, o trabalho, o passado e o futuro aparecem apenas vez ou outra como notações pontuais. Eventualmente, essas responsabilidades se insinuam, ameaçam rigidamente romper a flacidez do tédio presente. As cenas com os  personagens um pouco mais velhos encarnam justamente este drama do crescimento, a ideia de que aquela ociosidade está em vias de se desaparecer. Essas cenas carregam o filme com um ar um tanto melancólico que paira sobre as sequências em que os personagens encontram-se mais à vontade, em que eles simplesmente dispendem energia, num processo típico de uma adolescência masculina.

Falamos masculina: onde estão as mulheres no filme? Suas aparições são precisas. Durante o filme inteiro, apena duas mulheres entram em cena, e a elas cabem dois papeis básicos: o de esposa e o de mãe. A esposa aparece de fato apenas na cena casamento e, antes disso, num diálogo em que o filme deliberadamente deixa seu rosto fora de campo, enquadrando apenas o marido. As aparições da mãe são mais decisivas. Particularmente emocionante é a cena em que ela estende um copo d’água benta ao filho: uma cena de uma retidão, uma frontalidade e uma dureza cortantes — sua importância e sua precisão ali se justificam ao impedir que o filme embarque numa afetividade eufórica e vazia. Há sempre qualquer coisa de trágico, de um desencontro irremediável na relação entre pais e filhos, e que é sintetizado ali de maneira tão direta, tão frontal, que é difícil não se sentir tocado.

A esta altura já arriscamos a ler demais o filme, mais do que vê-lo. Paramos por aqui. Pois no fundo o que importa em A Vizinhança do Tigre é algo que passa ao largo deste texto e que se ancora na experiência do particular. Uma vida, um brilho que emana diretamente dos atores (pouco importa se as cenas são encenadas ou não) e que o filme felizmente não tenta soterrar, mediar com um olhar ou um dispositivo (cinematográfico ou sociológico) mais pesado. Uma leveza irredutível que — é inevitável dizer — deriva da pura convivência com aqueles personagens, do fato de estarmos ali, transportados, rindo com eles.

Calac Nogueira

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