A Bruxa
A Bruxa (The Witch, 2015), de Robert Eggers
A maior qualidade de A Bruxa é a ausência de cinismo: o primeiro filme de Robert Eggers possui uma retidão e uma literaridade raros não apenas no terror contemporâneo, mas no cinema como um todo. Não há truques, sacadas ou artimanhas aqui. Começando pelo título, e até a última cena, o filme nos dá aquilo que anuncia. A bruxaria e o sobrenatural não são território do duvidoso, do engano, do será?. Eles são um fato consumado, que será responsável pela danação dos personagens.
O grande risco era transformar o microcosmo familiar num laboratório ateu e se assistir a sua derrocada com ar de superioridade. No entanto, há um interesse genuíno de Eggers em seguir a lógica dos personagens e fazer a narrativa funcionar em função dela. Empatizamos com as preocupações de Caleb com o futuro de seu irmão não batizado, por exemplo. Essa empatia é sustentada mesmo quando se aponta para a hipocrisia ou a malícia no comportamento dos personagens, seja nas mentiras do pai, seja em Thomasin, que joga a culpa nos irmãos mais novos. Fica claro que eles não são tão imaculados quanto se pretendem ou gostariam de ser, mas seus erros são expostos sobretudo como fraquezas morais, como imperfeições que os torna mais humanos — não há condenação por parte do filme, que nunca se coloca numa posição de superioridade moral. Essas fraquezas morais expostas pela hipocrisia e por uma certa malícia, por outro lado, são precisamente o que cria as fendas naquele microcosmo por onde a danação se instaura.
A família encarna o mito do Mayflower: o movimento dos peregrinos para o Novo Mundo não apenas em busca da terra prometida, mas como fuga de uma Europa já degradada. É esse mesmo movimento que nas primeiras cenas leva a família a romper com os colonos locais e ir para limites ainda mais distantes. Mas essa força da fé e do mito que anima os personagens se verá amalgamada, no filme, com forças de um outro sobrenatural (este, maligno) já no travelling que começa na prece familiar (foto) e termina no olhar da câmera para o paredão da floresta, mirando o desconhecido. Outro momento de “amálgama” é a cena em que Caleb, moribundo, tem o corpo retorcido pelo feitiço antes de cair tranquilamente nos braços da morte (de Deus?). A fé nos mistérios divinos é tão certa, aqui, quanto a existência de sua contraparte malévola.
De alguma forma, no entanto, a encenação de A Bruxa parece dividida entre a crença no sobrenatural e uma consciência (um pouco desencantada) de que só é possível filmar o mundo físico, literalmente. A bruxa existe, o filme nos dá provas dela desde o roubo do bebê, vemos até mesmo alguns de seus rituais. Esse literalismo é reforçado pela cena final (mais bonita do que amedrontadora), porém se manifesta em toda a condução racional da derrocada familiar, numa espécie de mise en scène materialista, muito clara. Não é que essas escolhas sejam as erradas, mas da mesma forma que proporcionam lisura moral ao filme (a bruxaria e o sobrenatural são um fato, portanto a danação tem razão de ser), elas não deixam de apontar os próprios limites desta mesma encenação. É nesse sentido que podemos chamar A Bruxa de um filme possível. Um belo filme possível a respeito do sobrenatural.
Calac Nogueira
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