Entrevista sobre Amor Louco (Dossiê Rivette)
Entrevista com Jacques Rivette sobre Amor Louco1
por Bernard Cohn
Qual é o ponto de partida do seu filme, que a mim me parece repousar sobre uma vontade de levar as situações a seus limites extremos, de tornar os personagens disponíveis ao máximo, e mesmo de quebrar certas regras do cinema dito clássico, tanto regras psicológicas quanto regras de construção?
Nós não queríamos, de início, fazer um filme etiquetado como clássico ou anti-clássico. Eu concordava com Jean-Pierre Kalfon sobre uma coisa – antes, nós havíamos conversado muito – que era tentar fazer um filme que, apesar do ponto de partida, não fosse “psicológico”. Nós pensávamos que isso não queria dizer nada, ou melhor, que queria dizer um monte de coisas que nós rejeitávamos à priori, que a noção mesmo de psicologia remete a toda uma estética do cinema burguês tradicional, que é também aquela da literatura de consumo do dia a dia. Não se tratava também de fazer um anti-psicologismo sistemático, porque isso também não quer dizer nada, não corresponde a nada e remete, no fim das contas, ao mesmo não-psicológico, ou melhor, ao a-psicológico. Contudo, foi um meio que se mostrou ainda mais presente quando nós começamos a trabalhar Racine em detalhe com os atores. É evidente que Racine se encontra radicalmente fora da ideia tradicional que se faz do psicológico: ele leva em conta puramente a linguagem e o jogo corporal através da linguagem, as “paixões” não estão presentes em sua obra no sentido psicológico burguês, mas no sentido físico e pulsional, elas atuam “nesse lado” da consciência, elas colocam em questão os aspectos mais profundos do ser. Tudo isso não tem nada a ver, evidentemente, com o jogo analítico sob o qual, geralmente, enquadra-se Racine nas análises acadêmicas ou nas representações mais tradicionais. Era sobre tudo isso que estávamos de acordo.
Você pensou logo de cara em Jean-Pierre Kalfon e Bulle Ogier?
Sim, eu comecei a procurar um roteiro, uma estrutura da qual partir, pensando em ambos desde o início. Se eles não concordassem com o princípio mesmo do filme, eu não creio que o teria feito com outros atores. Eu tinha vontade de fazer um filme com os dois desde que os vi juntos nos espetáculo de Marc’O (eu fiquei impressionado com Jean-Pierre também em alguns filmes, como em A Longa Marcha2, no qual ele era o único que efetivamente sabia marchar): porque são atores que possuem uma atuação bem mais física que a maior parte dos atores franceses. Tais atores são geralmente deformados por uma certa tradição, a do Conservatório e da análise tradicional dos personagens, e mesmo atores muito bons, por causa disso, nunca atingem uma dimensão verdadeiramente grande: eles estão presos na armadura do papel do psicológico, do papel do caráter, por todas as ideias recebidas que advém dessa tradição de análise literária dos textos e da explicação lógica das personagens. Esses são os resíduos da estética oficial do século XIX, estética que, antes de tudo, é uma estética do medo, que visa a tudo racionalizar, para justamente esconder aquilo que o “ser” realmente é. Ela prefere mostrar os fantasmas que são, em seu sistema, o caráter e os sentimentos.
Como nasceu o título do filme
O que eu queria evitar, de início, era tentar evitar o caos psicológico no qual, a todo instante, nos arriscamos em recair. Somos sempre forjados por uma certa educação e, não importa o que façamos, nunca escapamos completamente dela. Eu tentei essa escapada. Tampouco eu queria “bancar o irracional”, porque é tão ridículo quanto querer ser racional, é se definir em relação ao mesmo mito. Com esse filme, nós tentamos – veja bem, eu digo tentamos – se posicionar sob um terreno diferente – que não fosse também mais verdadeiro, porque a ideia de “verdade”, no cinema como também em outros campos, faz parte desse conjunto de ideias recebidas – mais próximo da face física dos seres. O título se fez jogando com as palavras: a ideia de loucura também deve ser colocada entre aspas, porque também se trata de uma ideia ela mesma já recebida, e que o filme não é exatamente sobre a “loucura”; eu jamais me sentiria capaz de fazer tal filme. Ao remoer esse tipo de ideias, calhou-me, por acaso, esse título, e ele me agradou muito, pela sua sonoridade e, sobretudo, por suas conotações. Claro, é um título que remete, em vários sentidos, à loucura, seja tomando-o ao pé da letra, seja analisando-se o eco que ele faz ao livro de Breton. Dito isso, eu não pretendi um segundo sequer ter feito um filme “surrealista”: gostaria de dizer que o exemplo de Breton me parece pertencer igualmente às pessoas que não se sentem prioritariamente ligadas ao surrealismo.
Numa cena da primeira parte, percebe-se, numa parede ao fundo, um texto debaixo do qual se lê as letras A.B…
Sim, ao fim do primeiro episódio, na casa de Marta. Foi pura coincidência: a cena foi filmada no apartamento de um amigo, eu nunca tinha ido à casa dele antes da filmagem; não havia inspecionado em detalhes o local, e foi durante a filmagem que descobrimos essa frase de Breton na parede. Durante a filmagem ocorreram diversas coincidências desse tipo, pequenos detalhes que não se veem todos no filme finalizado. Em relação à filmagem, a frase de Breton calhou como uma espécie de acaso objetivo. O acaso objetivo, porém, é uma coisa na qual cremos todos. Somos obrigados a crer nele, uma vez que vivemos imiscuídos no mesmo.
À medida que o filme avançava, você não se viu transportado para uma zona próxima da de Paris nos pertence? Vemos em Amor Louco algumas cenas e atmosferas opressoras que remontam ao seu primeiro filme.
Eu não creio que se retomam precisamente algumas cenas. É verdade, há o teatro nos dois filmes, mas o que queríamos realmente em Amor Louco era mostrar o teatro sob um ângulo tão igualmente possível quanto diferente daquele de Paris nos pertence: primeiro, assumindo completamente o parti-pris da reportagem, e em seguida apagando totalmente os aspectos, digamos, materiais e econômicos da representação. Na época que Paris nos pertence foi escrito – e depois filmado – em 57 e 58, já era aquela atmosfera do gaullismo, ameaçadora e triunfante. Amor Louco não é aberta e conscientemente ligado à questões políticas, ele é apenas filmado no interior de um caldo geral que conduz as pessoas, possivelmente, a tomarem tais ou tais atitudes em prol de outras.
Quando começamos um filme, esperamos que ele seja diferente de tudo o que fizemos até então. Tenta-se. Nesse aqui, eu queria tentar retomar, por minha própria conta, certos métodos de fabricação de um filme. Assim, comecei a pensar, ao mesmo tempo que no tema geral, nessas questões de método: ambos estavam completamente ligados. Era a primeira vez que eu filmava improvisando bastante e em todos níveis, não apenas no que concerne à decupagem e à coordenação dos planos. Foi a primeira vez, também, que fomos estabelecendo relações igualitárias com os atores. Eu queria, sobretudo, mudar as circunstâncias materiais do meu trabalho: eu já havia lançado mão dos métodos tradicionais ao filmar A Religiosa, e isso me incomodou muito. Eu disse a mim mesmo que essa não era a melhor forma de se fazer filmes.
Quais cenas foram mais improvisadas: o teatro ou a vida do casal?
Nós improvisamos um pouco em todas, mas nunca era o mesmo tipo de improvisação: tudo dependia do momento, da cena. Há momentos em que cabe a reportagem pura e simples: os atores de Andrômaca ensaiavam continuamento de oito a dez horas por dia, e frequentemente eles não conseguiam saber se estávamos prestes a filmar ou não. Mantive no filme apenas uma pequena parte daquilo que filmamos. Eu mesmo, ao dar preferência por filmar tal ou tal momento, não sabia exatamente aquilo que seria mantido na montagem: íamos à caça. Por outro lado, as cenas do apartamento são mais premeditadas; mas não havia uma regra geral de filmagem, isso dependia única e exclusivamente daquilo que Bulle e Jean-Pierre pensavam antes de cada cena. Havia algumas cenas nas quais não exista uma vontade de se filmar tudo em um só take; em outras, pelo contrário, eles preferiam tentar improvisar completamente, contando apenas com uma pequena base, um ponto de partida, algumas observações. Quando a improvisação não rendia o resultado esperado, retomávamos a cena e a escrutinávamos de uma forma mais geral, pontuando mais detalhes, mas sempre a partir de elementos surgidos a partir das primeiras aproximações via improviso. Existem inclusive uma ou duas cenas que nós terminamos por reescrever por completo durante a filmagem, por dirigir de forma apressada e fazendo o número de tomadas necessárias: espero que não se note muito a diferença entre os momentos de improviso e aqueles que são preparados, ensaiados, filmados com tempo, com gestos precisos. Seja como for, eu nunca impus nada aos atores: é com eles que eu decidia fazer cada cena de tal ou tal maneira.
Como foi filmada a cena na qual Kalfon rasga suas roupas?
Em uma só tomada: não era uma opção repetir ou recomeçar algo desse gênero. O que havia de interessante nesse filme era o fato, justamente, de que não podíamos fazer mais que uma tomada de determinadas coisas, porque, seja materialmente, fisicamente ou psicologicamente nada nos permitia fazer outras. Isso é formidável, é muito agradável quando nos lançamos a filmar um plano sabendo que a primeira tomada tem que ser a boa. Quando nós arrebentamos a porta, por exemplo, sabíamos que seria tudo ou nada, porque não havia uma outra porta para repôr, as quantidades das coisas eram produzidas dessa forma. É por isso que ensaiávamos, na maior parte do tempo, muito pouco, fazendo apenas alguns reparos e tentando dar o máximo de si na primeira tomada: nós recomeçávamos apenas quando os atores tinham vontade de recomeçar.
Por que a construção em flashbacks?
Foi apenas um truque para que houvesse um começo e um fim, para que o filme pudesse ser iniciado e encerrado. Possivelmente, também é para indicar que estamos, na maior parte do tempo, sob o ponto de vista de Jean-Pierre e não sob o de Bulle: eu penso (mas isso não foi premeditado, é um sentimento que eu mesmo tive no decorrer da montagem, e o qual eu procurei acentuar durante tal processo) que é mais através dele que dela que nós vemos as coisas, junto com ela é sempre um pouco num segundo nível, é a ótica de Jean-Pierre em relação a ela; junto com ele é sempre num primeiro nível. Nesse sentido, trata-se mais de um olhar de um homem sobre si mesmo (com tudo que isso pode ter de complacência, de masoquismo, de culpabilidade) do que o olhar de uma mulher sobre um homem. E é, acima de tudo, muito mais a ideia que um homem faz de uma mulher do que aquela que uma mulher faz de si mesma.
Algumas cenas são cômicas – aquela do João-Bobo, por exemplo – outras começam no riso e terminam na tristeza. Qual a importância que você dá a esse tipo de desenvolvimento no interior de uma cena?
Quase tudo o que se passa no apartamento foi filmado cronologicamente. Primeiro, nós filmamos os ensaios – o que já dava por si só um filme – depois, todas as cenas ao redor do teatro (os camarins, os bistrôs). Em seguida, o apartamento: desse momento em diante, existia um profundo sentimento de que estávamos começando um filme novo. Se filmamos em continuidade, foi primeiro por razões materiais, porque o cenário deveria evoluir, nós demolíamos, mudávamos as coisas, etc. O fato de filmarmos na ordem, nos obrigava – a nós três - a fazer um balanço ao final de cada dia. Para voltar ao seu ponto, aquela pequena cena com o João-Bobo não foi filmada em continuidade. Chegamos a conclusão de que um casal que não está com a relação muito boa não vive, contudo, numa pasmaceira ou numa tensão constantes: a cumplicidade que eles tiverem durante um determinado tempo veem a tona num momento ou em outro. O João-Bobo surgiu dessa forma. Para se sentirem à vontade no apartamento onde filmávamos, para que o cenário ficasse impregnado de suas respectivas presenças, Bulle e Jean-Pierre levaram alguns objetos pessoais, dentre eles, o tal João-Bobo, com o qual eu vi Bulle brincando entre duas cenas…Voilà! É também uma cena que eu hesitei muito em manter na montagem final: ela foi completamente improvisada, e o “jogo com a câmera” é um pouco mais evidente que no resto do filme. No fim, eu a conservei justamente por isso: porque ela denunciava justamente o parti-pris do todo da filmagem, e também pela parte “cômica” que implica, necessariamente, uma suposta verdade. É um momento no qual mostra-se um pouco ao espectador como o filme é feito, bem como os limites desse método, dessa concepção. Nessa concepção de improvisação a partir de algumas observações, Jean-Pierre é muito bom: ele é capaz, a partir de um mesmo princípio, de encontrar uma gama enorme de variáveis. Nesses casos, ele nunca queria refazer a mesma coisa de uma tomada para outra, e quando – por outras razões – éramos obrigados a recomeçar, ele voluntariamente demolia algumas ideia que eram muito boas, a fim de conservar o risco da improvisação. A cada tomada, ele mexia em algum detalhe, sempre respeitando a construção conjunta do momento: é muito agradável trabalhar com um ator tão inteligente. No que diz respeito à tristeza – que movimenta uma cena como aquela do disco – ela estava prevista desde o princípio. Era um momento que deveria começar alegre e terminar taciturno. A curva da cena estava desenhada, mas de uma forma muito abstrata: nós tínhamos os princípios, mas não os gestos nem as palavras.
E a citação a Jerry Lewis?
Essa questão do Jerry Lewis aparece duas vezes: a primeira, no café, relacionado com o programa de Labarthe e Benayoun. Jean-Pierre é fanático por Lewis: eis de onde veio a cena com o revólver, na qual ele se diverte ao fazer um pastiche de Lewis – voluntariamente sem graça, uma vez que deslocado completamente em relação à situação. Era ao mesmo tempo um truque para trazer a ideia do revólver: ele não devia simplesmente estar lá, de forma brusca, quando precisássemos dele, mas não poderíamos também simplesmente mostrá-lo em um canto para que o espectador soubesse que iríamos nos servir dele cerca de meia hora depois. Jean-Pierre queria fazer também uma grande homenagem a Laurel e Hardy, durante os dois dias nos quais eles se trancam, mas nós não tivemos tempo de filmar. Eu acho que ele os admira ainda mais que a Lewis.
Tenho a impressão que olhar depositado sobre o personagem de Labarthe é um tanto quanto irônico…
Não, não a princípio. Ele assim se tornou um pouco ao longo da filmagem, porque isso era útil à construção do filme. Como em muitas coisas nesse filme, nós partimos de um princípio completamente funcional, utilitário, e foi a filmagem que o desviou, num certo sentido, pelas reações mesmas das pessoas à aplicação desse princípio, da sua ação no interior da obra. O fato mesmo – admitido abstratamente desde o início – de que Labarthe deveria tentar provocar seus interlocutores (frequentemente acerca de seus trabalhos nos ensaios e sobre a trajetória de seus personagens no filme) fez com que as duas camadas ficassem muito próximas, o que fez com que o personagem tivesse um ar meio de Chalais, algo que tentamos explorar. Eu mantive apenas uma pequena parte dessas entrevistas no filme, as que estão mais diretamente relacionadas com a situação do conjunto ou com aquela de Sébastien, mas eu queria, agora, terminar a montagem de um filme em 16, independente do outro e consagrado unicamente aos ensaios e a tudo aquilo que nas entrevistas se relaciona diretamente à Andrômaca. Quanto às declarações de Jean-Pierre, eu mantive no filme apenas algumas frases, aquelas que chegavam como um eco, uma ressonância ao conjunto do filme, da ideia do jogo, da linguagem, etc. Eliminamos também muitas coisas dentro dessa ordem de ideias, porque o filme terminou por comentar a si mesmo muito abertamente.
Ao final do filme, ouvem-se gritos de crianças…
Sim, enquanto filmávamos esse último plano, um garoto passou correndo fora de quadro, e como filmamos tudo em som direto, acabamos por registrar esse grito. Estava fora de cogitação retirá-lo, uma vez que era o princípio mesmo do filme: além do mais, nós tivemos direito a um “acaso objetivo” muito impressionante – o qual eu jamais ousaria premeditar.
Há a impressão de que os personagens retornam à infância
Sim, com certeza. Nós pensamos em dizer isso em algum momento, mas depois, preferimos não dizer nada.
A cena na qual Buller Ogier se tranca no quarto, remete à uma cena semelhante de Repulsa ao Sexo…
Inevitavelmente acabamos por pensar nela. E em outras coisas também. É uma passagem que eu filmei de forma bem simples e de uma maneira muito estilizada, muito indicativa, porque a filmagem estava atrasada. É evidente que eu não busquei fazer “concorrência” ao Repulsa ao sexo em seu domínio: em cinco minutos, eu não conseguiria fazer o que Polanski fez em uma hora. É uma cena que seria notavelmente interessante desenvolver, mas naquele momento teria sido necessário sacrificar uma meia hora do filme para ela, além do mais, necessitaríamos de um tempo enorme para efetivamente trabalha-la, o que não era materialmente possível. Filmei, então, a cena como se ela fosse mais um signo do que a coisa propriamente dita. No fim, era apenas uma etapa do filme, e não um de seus momentos fortes: é um momento entre parênteses.
Há um aspecto de voyeur no seu filme: penso em Bergman, em Hitchcock…
Sim, o aspecto voyeur é evidente. Um dos partis-pris do filme era de jamais explicar ou analisar, mas simplesmente de mostrar e olhar – tomando o cuidado de permanecer lógico, mas não tão explicitamente. Externamente, pode parecer talvez que não há lógica alguma nas ações das personagens, mas a ambição era de tentar reencontrar uma espécie de lógica escondida, uma lógica das “profundezas”. Nós podemos tomar recuo apenas através do olhar. O olhar é sempre uma testemunha, não há olhar inocente, que seja pura transparência. A câmera jamais está “com” as pessoas, ela se mantém distante, a uma certa distância: ela tenta ser muito neutra, nunca impôr uma ideia, uma ideia pré-concebida de si mesma para com aquilo que ela filma e mostra. É evidente que essa neutralidade mesma da câmera tem um significado, já que tudo, sempre, tem um significado, mesmo se o recusamos, se o negamos (ainda mais forte se cremos que o negamos)…Quanto a Bergman, eu vi Quando duas mulheres pecam alguns meses antes da filmagem, eu pensei muito nele nesse intervalo, mas na mesma medida em que eu o admirava profundamente, eu creio que tentei reagir, opor-me à toda eventual influência, no que diz essencialmente respeito aos fundamentos da realização: Bergman é muito preciso no que concerne cada detalhe de seu filme, mesmo que inevitavelmente ocorram acidentes, eles acabam por se reportar à um esquema bem premeditado. Se algumas ambições de Amor Louco eram “bergmanianas”, os métodos de trabalho se aproximavam mais dos de Renoir: isso pode parecer contraditório, mas é justamente essa contradição que nos agradava. Por outro lado, a influência de Hitchcock só nos assombrou com o processo já em andamento: Hitchcock é sem sombra de dúvida o diretor que os Cahiers melhor assimilaram, todos dentre nós – Truffaut, Godard, Rohmer, Chabrol – o conheciam e refletiram atentamente sobre sua obra. Quando lemos a coletânea de críticas de Jean-Luc, percebemos que seus artigos mais desenvolvidos, mais argumentados, são aqueles que ele escreveu sobre os filmes de Hitchcock. É bem curioso essa influência de Hitchcock: existem muitos outros cineastas que defendemos nos Cahiers, mas nenhum teve sobre nós a mesma influência. A influência de Hawks, por exemplo, é muito superficial; mesmo aquela de Rossellini não teve uma incidência direta sobre os filmes que nós fizemos. Enquanto que Hitchcock é um cineasta do qual todos nós temos a tendência – mais ou menos conscientemente – de retomar alguns truques, algumas formas de filmas e mesmos certos tiques bem particulares de escritura. Quando eu comecei a pensar no roteiro de Amor Louco, eu sabia que certas coisas poderiam remontar a Lilith ou a Repulsa ao sexo e a certos filmes de Bergman. Eu pensei em Hitchcock apenas na maneira de filmar duas ou três cenas: mas a semelhança de certos “temas” só me veio ao fim da filmagem e ao longo da montagem, antes eu não havia realmente pensado sobre. Com o recuo – e se assim o posso dizer – eu creio que o filme é muito mais verdadeiramente “hitchcockiano” do que “bergmaniano”.
Há, contudo, um aspecto físico que é bem próprio do cinema americano…
Porque é um cinema que é feito, penso eu, a partir dos atores, a partir da situação concreta, sem se preocupar muito na maneira em como se vai filma-la, nem na intenção da cena, no seu “efeito” no conjunto do filme: isso se pensa antes ou depois, nunca durante. A câmera está posicionada no local que é mais cômodo para ela, ou onde ela tem mais chances de ver aquilo que se passa, sem incomodar muito os atores. É totalmente construído sob as três dimensões do cenário e sob os deslocamentos efetivos das pessoas. Pode-se dizer que é um princípio que se intersecciona com a influência de Renoir, o qual também é, ele mesmo, uma parte integrante do cinema americano de sua época.
Você acha que se pode enxergar seu filme como um filme de aventura?
E por que não? Existe inclusive um ataque de índios. De qualquer maneira, o filme é feito pra isso: para que cada um o refaça à sua maneira. É o tipo de filme que demanda a colaboração do espectador, que não faz sentido sem ela. É um pouco como o teste de Rorschach: e na medida em que o filme tem mais de quatro horas de duração, ele oferece uma liberdade maior de escolha para tal ou tal coisa, uma margem maior, uma banda maior de um jogo não delimitado…O filme é como uma máquina, é uma espécie de engenhoca que nós construímos tentando faze-la coerente, esperando que aquilo “funcione”, como um veículo. Desejamos que as pessoas embarquem e se envolvam: se ele é bem construído, elas devem se envolver…Mesmo que seja uma máquina extremamente pesada: ela se assemelha, talvez, mais a um submarino. Eu tenho mais a sensação do mergulho que a da ascensão, com apenas uma emersão no meio: toma-se um suspiro de ar e em seguida, mergulhamos novamente. Mergulhamos até não mais voltar, penso eu.
Foi a duração do filme que o fez sentir que era hora de parar, ou você poderia continuar durante mais cinco ou seis horas (tal como a imagem da Matrioska com a qual Bulle Ogier brinca)?
Continuar a filmagem ou a montagem? Nós tínhamos cinco semanas e nós filmamos as cinco semanas. Se nós tivéssemos uma semana a mais, nós teríamos filmado uma semana a mais: material não faltava. Quando começamos a montagem, eu não tinha ideia alguma de qual seria a duração do filme: filmando, nós nunca nos colocáramos a questão daquilo que nós aproveitaríamos. Ao fim de quatro meses de montagem, quando aquilo começou a tomar uma forma, nós mostramos o filme a Truffaut: se François me dissesse que o incomodava, eu teria cortado, tentaria encurtá-lo.
É um filme bem cerrado sobre si mesmo, pela simetria dos primeiros e dos último planos, contudo, é um filme extremamente aberto…
Existe, na construção do todo, algumas coisas que eu havia previsto, mas sempre foram necessários apenas alguns pequenos acertos, de etapa em etapa, para poder organizar esse material e avançar nele adentro. Por outro lado, havia uma certa quantidade de coisas que poderiam ser movidas, que poderíamos deslocar de um lugar para outro, que nós filmamos apenas para isso, para ter essa grande margem de material mais ou menos “neutro” para o trabalho de montagem. O que tornava esse trabalho tão apaixonante é que podíamos jogar com as cenas, manipula-las ao infinito e assim mudar a entonação do conjunto. Podia-se também fazer com que uma cena fosse bem ou mal sucedida apenas mudando-a de lugar. Não posso afirmar que eu aprendi uma série de coisas, as quais eu ignorava, ao realizar tais operações, porque nunca se aprende nada: vê-se se tal coisa funciona ou não, não se pode tirar uma lei geral. Foi interessante, porém, justamente sentir tão concretamente que a película é algo que reage de forma tão imprevisível: acontece, às vezes, de cinco segundos (ou cinco imagens) que se mantém ou que se tira, darem uma iluminação completamente diferente à mesma cena. Trata-se sempre da famosa experiência de Kulechov, mas aqui ao invés de se jogar com a relação entre uma imagem “simples” e uma outra imagem simples, eram sempre cenas inteiras, fragmentos de uma realidade global que era posta em jogo. Às vezes, isso não funcionava, pois aproximávamos coisas que eram muito parecidas, e às vezes coisas muito díspares. E vice-versa: alguns efeitos tentados sem muita crença – considerados ou muito sutis ou muito chocantes – logo se mostraram evidentes, a partir do momento em que os víamos concretizados.
No limite, você poderia rodar uma continuação?
Uma continuação do mesmo filme com os mesmos personagens? Não, porque eu não sei mais sobre eles do que o que está no filme. O filme sabe mais que eu. Quando eu o revejo, há certas coisas que eu nunca enxergo da mesma maneira, outras que eu creio ter descoberto ou que eu perco de vista, que desaparecem: um filme é sempre mais sábio que o seu “realizador”. É isso que é apaixonante na duração da montagem: esquecer aquilo que sabemos, descobrir aquilo que não sabemos. Da mesma forma, uma vez que o trabalho está terminado, uma vez que você mesmo saiu fisicamente desse processo, eu não posso mais acrescentar nem retirar nada: se eu tento faze-lo, tenho 100% de certeza que estarei me equivocando.
A boneca-russa estava no roteiro?
Não, ela estava no apartamento onde filmávamos. Achamos que seria interessante fazer um plano com ela, mas isso não era de todo inocente, porque nós sabíamos que correríamos o risco de causar ressonâncias, de ter um ar de símbolo de todo o resto. Não queria também que isso fosse uma gag. Colocamos-a, então, no meio de um plano-sequência, entre duas ações: Bulle conseguiu assim fazer em meio ao movimento do plano, com muita gravidade e seriedade, sem ruptura alguma.
Onde foram filmadas as cenas do teatro?
No Palais des Sports, de Neuilly. Todo o resto foi filmado de forma normal, em apartamentos, cafés, hotéis…
Você poderia ter escolhido um outro autor, que não Racine? Um autor contemporâneo, por exemplo?
Não sei. Nunca me coloquei essa questão, para falar a verdade. Pensei, quase que imediatamente, em uma peça clássica. Um autor moderno traria, automaticamente, questões de direito autoral, e isso estava fora de cogitação. Se nós pegamos um clássico, e um clássico francês, foi, primeiramente, por causa da linguagem: isso estabelecia um nível suplementar no interior dos diferentes modos de discurso. Por quê Andrômaca: porque muitas pessoas lembram de seu esquema. Esperávamos, também, que Racine fosse uma boa caixa de ressonância, mas tentamos, acima de tudo, não sublinhar tanto as eventuais afinidades. É um pouco por isso que, na tela, a peça é fragmentada, despedaçada. Poderia ter sido interessante, também, tomar um outro autor, sem nenhuma ligação com o resto do filme: seria como se nós nos defrontássemos com um muro. Relendo-a, percebe-se que Andrômaca é uma peça fabulosa, de uma inacreditável modernidade, mas praticamente “não-encenável”, que exige atores geniais: existem, talvez, dois ou três atores que podem encenar Racine, nesse momento, na França.
Você conceberia a encenação da peça da mesma forma que Kalfon?
Não há uma maneira de encenar. Além do mais, Jean-Pierre mesmo mudava constantemente, antes de tudo, era isso que era interessante. Para verdadeiramente se encenar uma tragédia de Racine se exigiria, não obstante, muito mais tempo: isso não se faz em oito dias. Primeiro há um trabalho de assimilação da linguagem, que é por si só muito difícil, uma vez que é cheio de pegadinhas e armadilhas. É necessário que o ator incorpore completamente o texto (ou: se incorpore ao texto), antes de passar ao estágio de exteriorização, ao estágio da representação. De tudo aquilo que Jean-Pierre teve tempo para fazer durante a preparação, devido a certos princípios gerais, não havia nada de rigorosamente definitivo: era muito mais uma série de métodos, truques, ideias empíricas para permitir o avanço aos poucs. Para realmente “montar” Racine, seria necessário empregar os métodos do Berliner ou do Piccolo, e na França isso não é possível. Seria necessário pelo menos seis meses ou um ano para se assimilar um texto desses: é uma linguagem de uma densidade absurda, uma linguagem que é falsamente a mesma que a nossa, na qual as palavras não tem mais o mesmo sentido e a sintaxe das frases são tão precisas que parecem estar equivocadas. Para fazer com que esse texto “passe”, para transmiti-lo ao espectador, é necessário que cada palavra, cada verso, cada frase tenha um sentido pleno, senão, acaba não significando nada, é inútil. Corneille, por exemplo, ou Shakespeare, pode-se tentar passá-los através de movimentos mais amplos (mesmo que o conjunto da obra, ao pé da letra, seja extremamente apaixonante), transmiti-los de uma forma que haja alternância entre tensões e equilíbrios. Racine, se não se transmite através de um movimento geral, recai-se na Comédie Française, no T.N.P, ou seja, numa espécie de melodrama em trajes “estilosos” de época. Como dissemos: isso não é Racine, não há nenhuma relação, é exatamente o contrário.
A colocação irônica acerca de Barthes veio de você ou de Kalfon?
De Jean-Pierre. É uma colocação bem amistosa…Eu e Jean-Pierre lemos e relemos uma certa quantidade de coisas sobre Racine ou Andrômaca, e de tudo aquilo que foi escrito nesses últimos anos, de longe o livro de Barthes é o mais interessante, seguido pelo de Mauron e em seguida – a meu ver, muito mais longe – o de Goldmann. Jean-Pierre ficou, porém, chocado com uma pequena frase sobre Hermione, que Barthes escreveu aparentemente para manter a simetria do raciocínio. Na análise detalhada da peça, chamou sua atenção um verso que contradizia a fórmula contida na frase de Barthes – mas nós sabemos muito bem como temos a tendência de estabelecer falsas simetrias a fim de equilibrar um parágrafo ou de fechar um período. Ao longa da reportagem em 16, há diversos momentos nos quais Jean-Pierre fala muito bem do livro de Barthes, sobretudo acerca do texto sobre a dicção raciniana. Mesmo que seu nome não seja ali citado, a influência de Barthes é evidente em grande parte daquilo que foi montado das entrevistas de Jean-Pierre, no filme. Mantive essas duas frases mais críticas porque era o conjunto do plano que me interessava, que era tão somente uma mistura entre um cochicho próximo e uma declamação off, e eu pensava que a referência a Barthes no todo era suficientemente clara para que pudéssemos nos permitir, sem equívoco, essa homenagem “esvaziada”, como diz Butor.
Você tem a intenção de voltar ao teatro?
É sempre uma tentação. A experiência de A religiosa no Studio des Champs-Elysées foi muito difícil, primeiro porque não era uma peça de verdade, mas mais um compromisso entre o cinema e o teatro, entre um roteiro e uma verdadeira adaptação cênica. Além disso, esse espetáculo havia sido montado a torto e a direita, com atores escolhidos aqui e ali, fora minha completa inexperiência nesse tipo de trabalho. Anna Karina felizmente conseguiu – por essa espécie de genialidade que ela tem quando mergulha no abismo – dar um pouco de unidade a tudo isso. Mas eu aprendi, penso eu, uma ou duas coisas sobre a oposição natural do trabalho no teatro e no cinema: antes de tudo, o que se procura obter, o que se procura captar em um filme é aquilo que o ator realiza uma única vez, aquilo que acontece apenas uma vez. O trabalho no teatro, pelo contrário, consiste em dar ao ator um automatismo, um mecanismo que ele possa reencontrar a cada noite: trata-se, para o encenador, de toda uma outra técnica na relação com o ator. Para o cineasta, isso consiste em encarar todos esses problemas de forma invertida. É um trabalho muito estimulante, mas também muito ingrato, muito duro: estamos com o ator e com mais nenhuma pessoa, tudo é colocado em jogo todas as noites, contrói-se e destrói-se no mesmo movimento. Trata-se justamente de se dobrar a toda uma outra evolução do espírito. É uma excelente limpeza. Compreendo perfeitamente o porquê de Bergman, Visconti, Kazan e Renoir terem feito ou ainda terem a intenção de fazer teatro.
Amor Louco abre uma nova via ou você ainda tem a intenção de voltar a um tipo de cinema mais próximo daquele de A Religiosa?
Não necessariamente, ou melhor, não prontamente. Um filme como A Religiosa exige, na verdade, meios muito maiores. Não se deve tentar fazer um filme por cento e cinquenta milhões sendo que ele deveria custar trezentos. O que foi exatamente o que aconteceu em A Religiosa: passávamos quase o tempo todo fazendo acrobacias para tentar mascarar a relativa pobreza da filmagem em relação ao princípio mesmo do filme. Inversamente, nós filmamos Amor Louco por quarenta e cinco milhões: se tivéssemos um pouco a mais, poderíamos ter filmado mais uns três dias no apartamento ou, sobretudo, prolongado a duração real dos ensaios de Andrômaca, mas enfim, isso não foi um drama. Enquanto que em A Religiosa isso foi terrível (quando eu falo de A Religiosa, penso, evidentemente, na média geral dos filmes franceses, para ser modesto): os dispêndios, os custos de toda ordem, os deslocamentos, os seguros (coisas que com certeza são indispensáveis no quadro de uma produção “normal”), fazem com que não sobre nada para o filme quando se chega ao primeiro dia de filmagem. Não há um centavo sequer para alugar móveis ou comprar figurinos. Como sempre, num caso desses, o cenógrafo de A Religiosa fez esforços imensos para que parecesse que havia alguma produção mais cuidadosa, mas quando se tratava de emprestar móveis de antiquários, como não era possível deixar um cheque-calção, ele era obrigado a pegar as coisas menos bonitas em prol daquelas que realmente queríamos. Tudo era assim. E mesmo com os eternos deslocamentos e idas-vindas dos atores secundários, nunca esteve em questão a possibilidade de atrasar um dia sequer o plano de trabalho. Nesse tipo de filme, temos a impressão de sermos um chefe de estação que, bem ou mal, evita os acidentes mais graves, e isso é tudo.
Pensa que é possível, no cinema francês atual, fazer um longa-metragem em 16mm?
Com certeza: podemos chegar lá, e muitos já o fizeram. O verdadeiro problema, contudo, não vem da questão do 16 ou do 35, mas sim das questões de difusão e, paralelamente, de recuperação do dinheiro utilizado, o que acaba por colocar problemas mais frequentes para os pequenos orçamentos do que para os de grandes divisas. Os problemas de produção são os mesmos: é preciso ser paciente, muito obstinado, substituir os meios pelo tempo e aceitar interpretar – mais ou menos conscientemente – o papel do explorador e do canalha face aos atores, às pessoas de sua equipe e aos companheiros que aceitaram embarcar com você nessa empreitada. Foi isso o que eu fiz em Paris nos pertence, sem saber ao certo, de início, naquilo que eu estava me lançando – mas eu jamais recomeçaria esse tipo de experiência. Por outro lado, a parte agradável desse tipo de filmagem é que, se as pessoas estão de bom humor, podemos ficar completamente livres quanto aos horários. Pessoalmente, eu gosto de filmar no movimento, numa certa continuidade das coisas. É irritante filmar não mais que oito horas por dia: é muito mais agradável filmar doze ou treze em continuidade. Eu compreendo perfeitamente os italianos, que frequentemente filmam quinze horas sem parar: evidentemente, é muito difícil para os técnicos, mas de um ponto de vista egoísta do diretor, é apaixonante (mesmo que não se filme nada nos dois dias seguintes). Isso permite um mergulho profundo na filmagem e também a feitura de coisas que não poderiam se dar – uma vez que não se tem as ideias – quando filmamos das 12h às 19h30, como funcionários. Dito isso, Amor Louco foi filmado em horários bem normais, bem regulares – excetuando-se os ensaios, nos quais Becker frequentemente filmava sem uma “grande equipe” e os dois últimos dias no apartamento, nos quais estávamos atrasados e, por isso mesmo, trabalhamos numa pressa tremenda (acho que isso é um pouco visível no filme). Se isso foi bom ou ruim, não sei: acabou que foi desse jeito.
Como você trabalhou com os seus dois diretores de fotografia – tanto no 16 quanto no 35?
No 16, Etienne Becker tinha quase que total liberdade para fazer aquilo que ele bem entendesse. Ele é, certamente, hoje em dia na França, um dos melhores – senão o melhor (eu não conheço todos) – na utilização da Coutant3, tanto na reportagem quanto no filme “encenado”: o trabalho que ele fez no segmento de Rouch em Paris vous par é magnífico. Ao chamá-lo para trabalhar no filme, eu lhe disse que o queria como um co-realizador. Tenho vontade de montar de forma independente tudo aquilo que ele filmou (quase seis horas de copião), a meu ver, muito mais interessante em sua continuidade do que em flashs mais ou menos manipulados para se integrarem ao corpo do filme. Quando filmávamos com duas câmeras havia, evidentemente, algumas instruções mais precisas: por exemplo, no início da primeira cena, a câmera 35 está em Jean-Pierre, nesse momento, Etienne segue Bulle e a cena se faz de uma só vez com as duas câmeras rodando – mesmo que tenhamos uma série de campos e contra-campos, e a cena pareça decupada na montagem final, ela foi filmada de uma só vez e em continuidade. Mas na maior parte do tempo, Etienne só filmava quando ele tinha vontade de filmar, quando ele pensava que iriam acontecer coisas interessantes. Por outro lado, Levent estava mais ligado ao meu próprio ponto de vista. Desde o início, nós nos colocamos de acordo acerca de alguns princípios, no qual o principal era de filmar tudo com a 4-X (até coisas como o apartamento, que poderíamos ter filmado com a duplo-x), mesmo que, em seguida, “contradisséssemos” essa emulsão, tirando os positivos no gama máximo – o que acabamos por fazer. Os diretores de fotografia não são pessoas com as quais nós temos (falo por mim) longas discussões: entramos num acordo acerca dos princípios básicos e vamos na confiança ao longo do caminho. Tem outra coisa: eu acho que cometemos uma grande injustiça quando falamos de um filme e não falamos do técnico de som. Quando se trata de um filme digno de ser assim chamado, ele é tão importante quanto o operador e o diretor de fotografia (que agora, cada vez mais, são a mesma pessoa, o que é muito positivo, porque induz à simplificação dos métodos e à uma tendência ao essencial). Bonfanti é, por exemplo, tão importante quanto Coutard: mas tudo acontece como se os críticos ou os que se dizem amantes do cinema fossem surdos. O fato de que um filme deve ser visto e ouvido da mesma maneira, com a mesma atenção e a mesma liberdade, não é nenhuma novidade – basta rever alguns filmes do início do cinema falado nos quais a invenção sonora era impressionante – mas é um fato no qual a prática parece progredir apenas muito lentamente. O mais comum é que sempre se diga: o diretor de fotografia faz o seu trabalho e uma vez as luzes postas, o som se vira como pode para poder captar a cena. Eu tive a sorte de ter aqui um jovem técnico de som formidável (Bernard Auboury): ele havia feito Papai Noel tem olhos azuis4. Amor Louco era seu primeiro longa-metragem e ele já fez vários outros desde então (isso é natural quando se tem alguém muito bom). É preciso confessar que nós nunca facilitamos seu trabalho, seja nos ensaios, nos camarins, nos bistrôs. Todo mundo, com um pouco de experiência, pode captar o som, mas o verdadeiro técnico de som é aquele que sabe escolher, ao rodarmos em espaços reais com um entorno razoavelmente barulhento, os pontos fortes e os pontos fracos; aquele que sabe, ao longo do registro direto, dosar os valores, dar mais importância em seguir o ambiente ou em seguir a cena, optar pela voz de tal ator ao invés daquele outro. Resumindo: é aquele que realiza, já durante a tomada de uma reportagem, trabalhando com dois, três ou quatro microfones (nos ensaios, haviam quatro microfones suspenso fixos, mais o microfone da vara – sem contar o som do 16, que era completamente independente) e sob uma pequena banda sonora, uma primeira mixagem espontânea, quase definitiva, na qual serão necessários apenas alguns retoques. Uma captação na qual os diferentes elementos sonoros já estão distribuídos ao longo da “profundidade” auditiva, tal como os elementos visuais na profundidade de campo: um complexo de sons que é uma matéria tão rica e tão estimulante para o cineasta, ao longo da montagem, quanto os copiões de imagem. Não é só o som nem só a imagem que comandam o filme, mas sim o seu “produto”, com todas as formas e variações que suas operações podem tomar e suscitar. É um campo do qual apenas começamos a pressentir seu escopo (ou melhor, a redescobri-lo, lançando um novo olhar sobre cineastas como Eisenstein, Vertov, Dovjenko, mas também Griffith, Gance, Sternberg e muitos outros). É esse campo que foi reaberto tanto por Resnais quanto por Godard, tanto por Cassavetes quanto por Rouch, tanto por Perrault quanto por Chytilova, Pollet, Straub, Skolimowski… Não posso citar todos, a questão não é essa, não quero fazer uma lista de laureados. Trata-se, simplesmente, de procurar indicar uma direção: um certo modo de repensar o cinema, para tentar retomá-lo desde sua origem, de retomar essa origem e prolongá-la.
CONCLUINDO
Ao fim de duas semanas de exclusividade em quatro salas da rive gauche, a versão curta de Amor Louco saíra de cartaz enquanto que a versão de quatro horas continuava a ser exibida em uma única sala. Hoje, a evolução do público é tamanha que os distribuidores – montados em sua incapacidade de julgar o cinema e tomando tal público por uma criança incapaz – se encontram atrasados uns dez anos em relação ao mesmo, fazendo, assim, o papel de verdadeiros bobos da corte – o quem minimamente, nos regozija. Há, definitivamente, uma questão extremamente moral nisso tudo. Sem dúvida, trata-se de uma experiência extremamente limitada, uma vez que o filme foi lançado naquilo que comumente chamamos de circuito de salas de filmes ensaísticos e de arte. Permitiremos nos questionar o que significa, em matéria de cinema, “ensaístico” e “de arte” e se um cineasta que tem seu filme exibido no Logos merece mais ser ouvido do que um cineasta que passa no Colisée. O julgamento de salas assim denominadas – se assim houver – deverá, primeiramente, passar pelo escrutínio da exploração dos filmes na França. Jamais salientaremos o suficiente a falta de culhões e a desonestidade de um dos mandatários de uma dessas salas, localizada no Quartier Latin, na qual se estampa na fachada do cinema “Versão integral de Amou Louco”, sendo que se tratava da versão encurtada. Ele tinha alguma razão: o filme, remontado por Jacques Rivette, obtivera seu visto de censura, logo – em termos plenamente legais – era a versão integral que se apresentava. Jacques Rivette provavelmente errou ao assinar a versão de duas horas. Sem ela, contudo, a versão de quatro horas corria o risco de nunca ver a luz do dia, de jamais ser mostrada ao público. Há aí uma espécie de chantagem e os conchavos entre produtores e distribuidores não nos interessam. Em todo caso, no momento em que essas linhas são escritas, não se sabe se o público de Bordeaux, do Canadá, de Toulouse, de Roma ou da Suécia verão uma versão de duas ou de quatro horas. De qualquer forma, a existência de duas versões hipoteca uma futura exportação do filme. É desejável que no estrangeiro, bem como nas províncias, seja exibida a versão de quatro horas, para que, assim, o público pare de ser tratado como um imbecil; para que seja, ou possa ser, reconhecida, senão, primeiramente a liberdade, ao menos a responsabilidade do realizador. O exemplo de Amor Louco leva, por outros meandros, a fazer com que tais exigências sejam cumpridas.
(Positif nº 104, abril de 1969, pp. 27-38. Traduzido do francês por Guilherme Savioli)
[i] Gostaríamos, mesmo que brevemente, de destacar dois pontos fundamentais da entrevista de Rivette. Dois pontos que, em sua conexão profunda, acabam por dizer algo acerca do estado geral do cinema hoje, quando Rivette nos deixa. O primeiro é a concepção de moderno, advinda de um autor clássico – no caso, Racine – e ancorada no movimento dramático interno à obra; forjado eminentemente a partir de seus elementos mais concretos e materiais, tais como a linguagem, o corpo do ator, sua entonação, sua dicção, o cenário que o envolve e os objetos e figurinos que ele porta, O segundo é a busca de Rivette por uma estrutura de produção que comportasse suas ambições artísticas, rompendo com certas formas consagradas e automatizadas de se realizar um filme. Por fim, vale ressaltar a conclusão final, redigida pelo entrevistador Bernard Cohn, salientando a importância de uma distribuição e de uma exibição justa e correta das obras, em meio a um circuito de salas completamente rendido, no qual o gênero “filme de arte” se estabelece como mais uma mera etiqueta de consumo e domesticação das obras. Nada muito diferente dos anos 10, seja do século XX, seja do XXI [N.T]
[i] La Longue Marche (1966), de Alexandre Astruc
[i] Câmera 16mm produzida pela Éclair
[i] Le Père Noël a les yeux bleus (1966), de Jean Eustache
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