Suspiria
Texto originalmente escrito para uma sessão de cineclube, dedicada ao cinema de horror italiano, realizada há mais de meia década, o que explica o tom um pouco mais didático e as generalizações que aparecem aqui e ali. De alguma maneira o texto dialoga com os outros, inéditos, publicados nesta edição da Interlúdio, daí a motivação para resgatá-lo.
No reino da imagem
Muitos contos de fada começam com era uma vez. Suspiria, de Dario Argento, parece um conto de fadas. Uma parte da cinematografia do diretor – especificamente este filme – evoca um passado (era). Não um passado Histórico. Ou político. E sim, primário. Um tempo infantil: o de ter medo do escuro, o de pressentir que o desconhecido espreita por debaixo da cama, de dentro do armário, através da cortina. Argento sempre buscou imagens que nos fizessem recordar o Bicho-Papão.
Suspiria, evidentemente, só parece um conto de fadas, mas não o é, de fato: a obra está longe de carregar, disfarçada por metáforas, um discurso, seja ele moral, satírico, crítico etc., prerrogativa a que se costuma associar tal tipo de literatura. Nas vistas criadas pelo italiano, existem questões que os amantes da psicologia adorariam – vistas que, “pintadas” de cores waltdisneyanas, nos levam de volta a infância, ao mesmo tempo em que são obscenamente provocativas, sádicas, sexuais.
O cinema de Argento não é, definitivamente, estéril. Existe um elo forte que o conecta ao espectador. Não nos moldes do cinema clássico em geral, em que a ligação se dá por meio da identificação – comumente do público com o personagem – gerada graças ao uso de uma série de estratégias que lançam mão do inventário que o cinema narrativo herdou da literatura. Aqui, a aproximação entre aquele que assiste e o que se move na tela acontece via processos puramente imagéticos e sonoros, ao invés daqueles ligados ao conteúdo.
Para além de qualquer pscicologismo, contudo – um dos poucos suportes extra-fílmicos a que se pode apoiar o analista que olha a filmografia de Argento através dos óculos de grau sem lentes que é o “conteudismo”- há o questionamento. A arte do diretor parece o resultado de uma problematização. Não é difícil imaginar a seguinte situação: o autor, sentado em algum cinema de Roma que projeta um giallo qualquer, pensando em como transgredir cada aspecto possível daquilo (a ruptura com o seu próprio passado e com o que se produzia dentro do gênero horror/suspense no país é marcante). Podemos empregar aqui a mesma estratégia: ao invés do famoso era uma vez da fábula, experimentemos uma expressão mais intrigante: e se?
E se sentir fosse mais importante que saber?
O que faz boa parte do cinema narrativo comercial? Ora, conta uma história, que geralmente se resumem em uma frase (quantas vezes ouvimos “sobre o que é o filme? ”): uma fera que ataca misteriosamente uma praia dos Estados Unidos; um agente secreto que precisa impedir um terrorista de matar toda a população do mundo usando um vírus letal; um jovem prestes a adentrar a universidade quer perder a virgindade e não sabe como. Os exemplos são inúmeros. Existe uma cultura das sinopses – veiculada nos cadernos de cultura dos jornais, nas caixas dos DVDS etc. – das frases dos cartazes de divulgação – “um homem. Uma mulher. Uma história de amor” – e das narrações presentes nos trailers – “neste verão, Jimmy terá um desafio a cumprir: salvar seu casamento” – já há muito estabelecida e familiar.
Este cenário serve apenas para contextualizar o que não é novidade alguma: o público médio, não especializado é, em geral, condicionado a olhar para o vai-e-vem da trama, acima de tudo. E dela, como no romance popular, principalmente, espera-se que seja interessante, que aconteçam coisas, que exista uma lógica mais ou menos parecida com a da “vida real”, inclusive no filme fantástico – o protagonista humano não pode derrotar o vilão transformando-se em um urso selvagem, a menos que já se tenha avisado à platéia da possibilidade de tal ato acontecer, o que se costuma chamar de lógica interna -, que o enredo não tenha “buracos”, que, como em um kit de quebra-cabeça, todas as peças possibilitem encaixe, por mais árdua que seja a tarefa (em Argento, ao contrário, ora as peças são muito maiores que as outras, ora lhes faltam pedaços, ou mesmo peças inteiras, ora se encaixam mas rapidamente se desprendem).
A intenção não é prolongar esta discussão, apenas apontar, fugazmente, alguns elementos que fazem parte de qualquer estrutura narrativa, cinematográfica ou não. Assim como também não é o objetivo investigar o que leva ao jogo de retroalimentação entre cinema narrativo comercial e consumidor – mais produtos com ênfase no conteúdo continuam sendo produzidos/mais o espectador fica ansiando por isso. Afinal, interessa o fato em si, não suas origens (ainda que elas precisem ser minimamente mencionadas).
E o dado concreto é que imagens são usadas para contar histórias (tudo o que se chama de clássico parte deste pressuposto). O caráter destas imagens é, em boa parte dos casos, funcional. Não é por acaso que sê leia, eventualmente, críticos proclamando que tais e tais planos funcionam e tais e tais músicas não. É como se acompanhassem a lógica dos pés de cadeira: ou sustentam o peso de quem senta (boa) ou não sustentam (ruim). Em Argento, isso raramente se aplica. Vamos tentar traduzir em palavras a primeira sequência de Suspiria: Depois de uma narração durante os créditos iniciais, informando que Suzy Banion foi de Nova Iorque à Alemanha (a cidade não é identificada), a fim de estudar balé em uma importante escola, a acompanhamos desembarcar no aeroporto. Ao andar pelo corredor, a música de suspense composta pela banda Goblin começa a tocar a cada vez que vemos a porta de saída, para onde ruma Suzy. Lá fora está chovendo. Ela tenta tomar um taxi, sem sucesso.
A narração em voz off, além de estabelecer o tom “fabulesco”, fornece uma informação importante: a protagonista é uma estranha em uma terra estranha. Partindo do fato de que a norte-americana está chegando a um lugar desconhecido, Argento potencializa a tensão se valendo de objetos banais. A porta, por exemplo, é um elemento causador de suspense. O som proveniente do mecanismo que a faz abrir – mostrado em plano detalhe – é mais alto que o “normal”. A decupagem, que consiste em um plano da moça e o contraplano da porta, e o ritmo da montagem, sugerem um susto que nunca se concretiza. Mais tarde, quando Suzy finalmente consegue pegar uma condução, repete-se o mesmo expediente: da garota de dentro do veículo corta-se para um bueiro e, adiante, para uma pequena cachoeira formada pelo grande volume de água da chuva.
Uma engrenagem de porta, um bueiro e uma cachoeira: imagens que, em termos práticos, não servem para nada. Não no sentido de ajudarem a compreender melhor sobre o que é o filme. Nem de fazer avançar a trama. O que o autor pratica é uma mudança de ênfase: da informação (do saber), da “história”, para o “clima” (para sensação estética). É recorrente a opinião de que a narrativa de Argento segue a lógica do sonho. Algo que está intimamente ligado à preferência do diretor pelas questões plásticas ao invés de, digamos, literárias. Existe, em Suspiria, um desrespeito à lógica em prol das possibilidades de combinações de cor, composição do quadro, uso do som e, conseqüentemente, da sensação que o arranjo destes pode provocar no espectador (o que gera uma narrativa repleta de lacunas, de ações que não se desenrolam até o final e de mistérios não resolvidos).
O grande exemplo é a cena em que as estudantes são obrigadas a dormirem em camas improvisadas, em um salão, onde lençóis estendidos cercam o dormitório. Banhadas por uma luz vermelha, as alunas repousam. Suzy desperta e percebe que por trás do lençol há um vulto emitindo uma respiração macabra. Ela comenta com a colega. As duas chegam à conclusão de que quem está ali é a diretora do instituto – que, por acaso, é uma bruxa de centenas de anos, cujo esconderijo, muito bem guardado, a protagonista, graças a um ato de esperteza, encontrará mais tarde. Não é do interessa das comandantes da escola que a presença da feiticeira seja revelada. Não existe, portanto, qualquer razão para que a diretora/bruxa esteja atrás ali, oculta apenas por um pedaço de pano branco. A não ser, é claro, por uma razão estética.
E se os personagens servissem como objetos de cena?
Argento, claramente, utiliza os corpos como matéria-prima que, organizada dentro de um espaço delimitado, junto com uma série de outros artefatos, cores, texturas e luzes, formam o quadro. Para o autor, o enquadramento não serve como prolongamento do ser humano, em que a escala dos planos está de acordo com as emoções do homem e sim, parafraseando uma conhecida frase de Hitchcock, como um espaço a ser preenchido. Há pouquíssimo interesse em todas as dicas que os manuais de roteiro prescrevem no capítulo intitulado “personagens”: profundidade, coerência, bi-dimensionalidade. Não há qualquer esforço para que sintamos empatia por aquelas figuras (com Suzy, talvez, o caso não seja tão extremo), como fica comprovado na seqüência posterior a do desembarque no aeroporto e a do taxi: uma das bailarinas foge da escola e procura abrigo em um prédio – cuja arquitetura do interior, com sua estranha construção “espelhada”, irreal, e apreço pela geometria, remete ao trabalho de Escher – e lá encontra uma mulher (as duas aparentemente se conhecem) que lhe oferece um quarto. Sozinha, a jovem é brutalmente atacada por um assassino que a esfaqueia e, em seguida, a arremessa através de uma vidraça, com uma corda amarrada ao pescoço (ninguém morre de maneira simples em Argento). Os estilhaços e uma parte da estrutura de ferro do vidro atingem e matam a anfitriã.
Não existe nenhuma relação entre estes dois personagens e nós. Não torcemos para que elas se safem do vilão. Nem que o vençam (afinal, mal as vimos na tela e já foram extintas). É o terror que experimentamos, misturado com o prazer estético. E basta olharmos o plano que começa na estudante enforcada, sangrando cor, e não elemento vital, em que a câmera passeia por suas pernas pintadas de vermelho, até chegar ao chão branco, onde a tinta escorrida formou um desenho abstrato, e continuar até mostrar a anfitriã, cuja face está dividida por um vidro e o pescoço penetrado por uma estaca de metal, para perceber o quanto a mistura pode ser perturbadora. Provocar medo (ou repulsa) e deleite ao expor a morte faz do cineasta um ser abjeto? Ora, a arte, quando desnuda de discursos de qualquer natureza, não é, de maneira alguma, condenável (o que significa que toda arte carregada de discurso é passível de condenação.
A imagem seguinte à descrita logo antes poderia ser a síntese de toda a discussão proposta neste tópico, pela crueldade e beleza plástica: nela, vemos a anfitriã estendida no chão, com cacos de vidro coloridos minuciosamente arranjados ao seu redor, o corpo posicionado de maneira estilizada, o vermelho viscoso em contraste com o piso de azulejos preto e branco.
E se… ?
Há outros questionamentos, relativos ao uso da cor e da luz, que suscitariam pontos interessantes. Entretanto, para não nos estendermos, mas, principalmente, por justiça, uma vez que ambas mereceriam uma análise extensa voltadas só a elas, arrisquemos uma última pincelada sobre o assunto: poucos cineastas fizeram uso tão “livre” (resisto para não escrever “abstrato”) da fotografia – feita por Luciano Tovoli -, no filme narrativo. Nem mesmo Mario Bava, grande influência para Argento, ousou tanto. Ainda que, neste caso, cor e luz tenham “função narrativa” em alguns momentos, suplantando a decupagem na tarefa de guiar os olhos do espectador para “informações” importantes da cena. Como quando Suzy, semi-acordada, está na cama, e, em primeiro plano, iluminado por um vermelho vivo, vê-se uma bandeja com louças. Para sugerir que havia veneno na comida, o cineasta não mostra um plano da jovem e corta para outro das peças, mas contrasta as cores pálidas do segundo plano com a coloração intensa sobre os utensílios mais próximos à câmera. No entanto, é mais comum que a fotografia não tenha qualquer justificativa para pintar de verde, azul e vermelho um rosto, uma parede, ou chão de um corredor. Definitivamente, Tovoli não segue as convenções fotográficas, que são totalmente baseadas no “realismo” (até mesmo o mais estilizado filme noir não arriscaria provocar sombras sem que houvesse fontes de luz relativamente visíveis para justificá-las). Ou alguém consegue dizer de onde vêm as luzes que rebatem na face de Suzy enquanto ela ruma a um reino muito distante, no banco de trás de um táxi?
Suspiria além de questionar o cinema narrativo comercial, estimula perguntas que ultrapassam os limites do longa-metragem. A obra incita uma maneira diferente de ver cinema. Faz, a todo momento, o olhar se voltar para tudo aquilo ligado diretamente à visão – luz, cor, movimento, composição – e que não poderia ser apreendido por uma sinopse. Recusando o discurso, faz com que todas as atenções se voltem à tela. Só resta nos perguntarmos, frente a este ou qualquer cinema: E se olhássemos para o filme, e não por meio do filme?
Wellington Sari
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