Ano VII

Mágico de Oz em 3D

domingo mar 27, 2016

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O Mágico de Oz: breves notas sobre a conversão para o 3D

Talvez só exista um pecado equivalente à colorização “por computador”, como deve ter sido anunciado na época em que esteve na moda, dos filmes em preto e branco: a conversão para o 3D. A ideia de atualizar determinada obra, para deixa-la de acordo com os padrões tecnológicos reinantes, é inconcebível em outras formas de arte que não o cinema. Edições remasterizadas de determinado álbum são lançadas a cada aniversário, e não é tão raro artistas remixarem algumas de suas músicas, mas parece impensável que algum dia tenhamos uma versão de Norwegian Wood com uma linha de baixo suplantando a cítara de George Harrisson ou uma mudança na perspectiva sonora do vocal de John Lennon.

A conversão para o 3D de filmes que não foram registrados neste formato já não é mais tão frequente. É possível, inclusive, que tenha sido erradicada, e é um fato comprovável que modelos de televisão com capacidade de reproduzir conteúdo em 3D estão sendo gradativamente deixados de lado pelas fabricantes. Não há melhor momento, então, para refletir sobre um ou dois pontos relacionados ao efeito.

De todas as artes, talvez apenas o teatro consiga percorrer o caminho entre a obra e o público sem obstáculos. A literatura enfrenta o problema da tradução (nem mesmo Machado de Assis é capaz de solucionar o problema essencial que é o espaço gigantesco existente entre “nervermore” e “nunca mais”; em inglês, uma palavra, compacta e fechada como uma lápide ou um caixão, é o bastante para a mais definitiva das afirmações, enquanto no português, são necessárias duas palavras e há, entre elas, um espaço; não pode haver brechas no definitivo), a pintura se debate com a impossibilidade da reprodução fiel (A Escola de Atenas, por exemplo, não cabe em nenhum pedaço de papel ou em um tablete) e a música popular lida com um problema técnico parecido com o do cinema (certa vez, as salas de estar eram decoradas com aparelhos de som e caixas acústicas grandes; o som, sendo uma fenômeno físico, é altamente dependente dos aparelhos escolhidos para sua reprodução; fenômeno curioso da contemporaneidade: pode se encontrar online praticamente qualquer disco pop já gravado, mas provavelmente ele será ouvido em um foninho de Ipod, no celular ou alto-falantinho do notebook; o aprofundamento na música não tem sido proporcional à oferta).

De todas as artes, nenhuma é tão maculada quanto o cinema, na transmissão entre a obra acabada e o público. Película deteriorada, riscos na imagem, frames próximos à troca de rolo faltando, projeção na janela errada, cor mal regulada, intervalos comerciais, logotipo da emissora inserido no alto do plano, dublagem, perda abissal de resolução etc. Não importa se visto no cinema ou na tv, projetado em película ou digital, quase tudo pode interferir diretamente em aspectos palpáveis de um filme. Se tal interferência é praticamente inevitável, há que se encontrar aspectos positivos na interferência. Serge Daney encontrou o coração de John Ford, quando assistiu Legião Invencível na televisão e escreveu sobre a capacidade do diretor em trazer o que interessa para o centro da tela: “(…) quando uma imagem não tem apenas bordas, mas também um coração, a tela pequena a recebe com a devida consideração”.

A conversão para o 3D é uma interferência deliberada, em tese bastante diferente daquelas citadas acima. Na essência, no entanto, permanecem iguais as duas, tanto a deliberada quanto a acidental: alteram sensivelmente a imagem. No caso da conversão de O Mágico de Oz, filme de 1939 convertido para o 3D e lançado em blu-ray em 2013, o efeito resultante é da mesma natureza da defesa de Daney: o 3D ressalta o caráter onírico e proto-psicodélico do longa-metragem. Todo o longo segmento colorido na terra de Oz, que sempre foi colorido justamente para melhor exprimir o sentimento de fantasia, tem seu aspecto de cenário ainda mais protuberante. A falsa mudança de perspectiva e sensação artificial de profundidade aproximam o plano de maneira bastante evidente ao livro pop-up, graças aos belíssimos matte paintings de estranhas montanhas arredondadas que compõem o horizonte de Oz – montanhas essas que depois foram parar no igualmente lisérgico Reino do Cogumelo de um certo encanador dos videogames. Se o efeito artificial de perspectiva, na maioria dos filmes 3D, deixa a imagem, paradoxalmente, mais plana do que o normal – são várias camadas de imagens planas, umas por cima das outras -, acentuando o contrário da suposta imersão que o 3D deveria proporcionar, no filme de Victor Flemming – ou, nesse caso, da equipe que converteu o longa – a artificialidade joga a favor da fantasia. Como em Percival, O Gaulês, de Rohmer, a veracidade da fantasia é obtida pela máxima explicitação do artifício: um mundo mágico só pode ser mesmo composto por árvores de papel celofane e castelos de isopor (Lennon é um gênio não por conseguir combinar as iniciais LSD no título de uma canção, mas por descrever Pepperland como um cenário teatral, com seus táxis de jornal). A fantasia só pode habitar a existência quando assumida como tal; o resto é tapeação, o resto é mentir (n)a realidade.

O 3D deixa o efeito de fumaça vermelha – um dos vermelhos mais bonitos já colocados na tela – que escapa da bruxa má, quando aparece e desaparece, por mágica, ainda mais onírico. A olhadela para câmera, dirigido pela mesma personagem, cuja imagem está dentro de uma bola de cristal, é ainda mais cúmplice. O verde da cidade de esmeralda, que se prolonga em camadas de falsa perspectiva, incluindo o castelo, os campos de flores que fazem dormir e os habitantes, fazem da tela ambiente profundamente rico em diversidade de efeitos impossíveis. Isso não é mais o Kansas, é Pepperland, cuja verdadeira falsa-natureza só é possível de ser vista através dos olhos de caleidoscópio que são os óculos 3D.

Wellington Sari

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