Um filme é um complô (Dossiê Rivette)
Um filme é um complô – Sobre Céline e Julie Vão de Barco
por Gérard Legrand
Os filmes de Jacques Rivette repousam – sem excluir até mesmo O Truque do Pastor – sobre uma obsessão ou intenção “ambígua”, quase “contraditória”: privilegiar a implicação recíproca entre espectador e espetáculo (muitas vezes, pela via do teatro) e por isso mesmo, crer na “espontaneidade” dos atores, ou seja, crer numa mensagem de segundo grau. Por outro lado – e dessa vez, sem excluir até mesmo A Religiosa, no qual a instituição estabelecida funciona como um grupo que exerce pressão – todos os seus filmes tem como “tema”, desde Paris nos pertence, a influência de uma sociedade secreta, de um complô, tema que em sua origem se mostra incompatível, vide a “distância” em relação à espontaneidade dos atores que ele pressupõe. Em Céline e Julie, a sociedade secreta talvez exista apenas na consciência das duas protagonistas: mas do estado (quase) fantasmagórico que ela assumia nos filmes precedentes, ela passa a um estado concreto (na tela) de uma família de fantasmas.
Os filmes de Rivette (sem excluir o tom de gravidade e de absoluto, que pressentido em Paris nos pertece irá amadurecer em Amor Louco) se engendram uns aos outros por lampejos e cissiparidade: Celine e Julie, através da personagem de Berto, poderia muito bem derivar – e a primeira sequência assim sugere – do desenvolvimento da cleptomaníaca mitômana interpretada pela mesma em Out One. Podemos constatar, por acaso, também a presença de Eduardo de Gregorio, o excelente roteirista de A Estratégia da Aranha (outra história de complô) junto com (e para) Bertolucci, diretor que, até hoje, todos filmes se engendram por lampejos e cissiparidade.
Em Out One mantinha-se a ideia do “complô” (porém, invertida: a conspiração era uma armação não mais de forças malignas, como em Paris nos pertence, mas de almas bondosas, simpatizantes do “terceiro-mundo”, no pós-maio de 68), elaborado precariamente por alguém que simula (fingindo-se de surdo-mudo) e que também é um falso jornalista, algo que não acontece sem um pouco de malícia. Mantinha-se também a referência ao teatro, ao “ensaio” (simulação) de Ésquilo (Racine em Amor Louco), oferecendo a possibilidade de uma descrição do trabalho preliminar com os atores. Essa descrição, contudo, não se integrava ao resto do filme, ela formava um contraponto ou dava um suporte quase anedótico às outras “intrigas” e “tramas” (o vocabulário gasto da análise fílmica reforça impecavelmente aquele da conspiração).
Céline e Julie mantém de Out One duas alusões a Lewis Carroll (Alice, e não mais o Snark) e o emprego do quadro negro para que Labourier possa tentar a sorte (tal como Léaud) de desenhar, ao acaso, o local ideal da fatalidade (em Out One, Paris “que não pertence à ninguém”, nem mesmo aos “Treze”, termina por se assemelhar à carta marinha dos caçadores do Snark: “perfeita e absolutamente branca”). Por outro lado, Céline e Julie joga exemplarmente com a incompatibilidade aparente entre “espontaneidade” e “conspiração. As duas protagonistas são prontamente definidas: uma é bibliotecária, a outra é prestidigitadora. Porém, essa é (além do mais) mitômana, aquela (além do mais) adepta da “magia para todos”. Dois modos de “se fazer notar”, reforçam cada uma (pela mitomania e pelo trabalho na biblioteca: todo livro é um fantasma).
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Diz-se a torto e a direita que Rivete realiza sua mise en scène na montagem (Orson Welles levou a provocação à outro nível, a ponto de dizer que isso ocorreu em todos os seus filmes depois de Cidadão Kane). Por que não se crê em Bulle Ogier? “Improvisação limitada ao interior de algumas cenas (em Amor Louco)…Trabalho de improvisação até os limites do desespero (em Out One): os atores dispõem apenas de uma semana para reconstituir os fragmentos do espelho…Em Céline e Julie Vão de Barco, Rivette reduz a parte de pura improvisação.” Minha teoria pessoal do cinema (eu não tenho meios nem tempo de ser menos egoísta) se constituí, primeiramente, na mise em scène como resultado: não importam os meios. Em Céline e Julie, o jogo de espelhos entre o espetáculo (teatro) e o não-espetáculo, como entre o complô e suas vítimas reais ou virtuais, é totalmente estraçalhado. Não existe um “por outro lado”: é quando Barbet Schroeder calmamente se aproxima diante do espelho sobre a lareira que as duas falsas enfermeiras compreendem que o fantasma não as vê (inversão de uma tradição bem estabelecida). Prontamente invocam entre elas a esquete do “fantasma”, ou seja, do espelho ausente, esquete clássica tanto no circo quanto nas telas.
Na verdade, Céline e Julie, logo de cara, nos mostra, de uma só vez, as duas faces do espelho. A primeira sequência é “perfeitamente decupada”, tanto aos nossos olhos quanto na concepção geral dos autores. A leitora do livro de magia (a qual o pé desenha no solo um sinal de conjuração) faz entrar no campo de seu desejo (quase não se nota: uma criança surge no quadro no momento em que a cena se reprisa) – campo esvaziado de seus ocupantes habituais – primeiramente, um gato (animal de bruxaria: dois gatos terminarão numa errância conjunta pelas escadarias da mansão assombrada), posteriormente, uma “criança”, ela mesma mágica. Aquela se chama – e não por acaso – profissionalmente, a Mandrágora: sabe-se que essa criatura é uma espécie de boneca vegetal, pela qual Isabelle d’Achim de Arnim, por exemplo, se afeiçoa após te-la humanizado, tal como uma verdadeira progenitora. Durante a disputa “teleférico contra escadaria”, na subida de Montmartre, é Berto quem prega uma peça, por sua vez, em Labourier. Essa (e nós a acompanhamos) verá, então, os primeiros inserts subliminares do “drama dos fantasmas”, quando do número de cabaret de Berto.
O acerto de contas – necessário para a visita à mansão assombrada – é introduzido pela personagem da bibliotecária morena, cúmplice de Labourier. Juntas elas fumam às escondidas e tiram, mutuamente, cartas: para aquela, os cartões postais que Labourier recebe de sua mãe – primeiro detalhe, “biográfico” que remete ao passado dessa. Quando da falsa separação entre as duas amigas, é ela também quem dirá que Labourier partiu para bem longe e que nunca mais voltará. Esse acerto de contas é acompanhado pela simetria entre a expulsão de “Guilou” por Berto – falsa Labourier[1] – e a intromissão de Labourier – falsa Berto – na miserável casa noturna do “Sr. Dédé”. Sendo, então, a Mandrágora substituída, será permitido à Berto a captura, assim, da criança real (Madlyn), sob sua capa “mágica”, para, ao fim, salvá-la.
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A “falsa separação” é concomitante à presença da mancha de sangue (que se revelará, contudo, removível) no ombro. A “fusão” das duas personagens, suas trocas de atribuições, resulta em uma das raras referências explícitas ao “seriado” contidas no filme: o passeio noturno das “ratas de biblioteca” (portando patins!). Ela leva também à “essa monstruosa criança a qual nós havíamos tão bem quisto” (um dos inúmeros alexandrinos que ornam os diálogos), ou seja, a criança de duas mulheres (no decorrer de uma cena que joga com o safismo em meio à grandes gargalhadas). Enfim, quando do “baile noturno” na casa dos fantasmas, as duas falsas enfermeiras podem dar-se a si mesmas em forma de um espetáculo, ao dançarem sob uma música diferente daquela que dançam os ocupantes legítimos dos lugares, os quais elas enfeitam, no fim das contas, com cartazes sarristas e com flores artificiais a fim de que se assemelhem, de fato, a verdadeiros “mortos”. A invasão do irreal (mansão assombrada) pela “realidade” teatral, avança de cena em cena nas últimas sequências, pontuadas pelos “três golpes” rituais e levando ao enigmático plano no qual uma salva de palmas (vindas de onde? De nós mesmos?) sublinha a primeira saída de cena (bem sucedida) das duas “conjuradas”.
Como o “realismo” de Renoir, que em A Regra do Jogo englobava o célebre plano do piano que tocava sozinho “A Dansa Macabra”, esse que, devido às circunstâncias, nós nomearemos – apesar de tudo – o estilo e/ou o trabalho de Rivette, funda-se sobre um senso da mais profunda credibilidade. Ele é exercido sobre os aspectos mais artificiais (“artifciosos”) da existência: formas moribundas e auto-preservadoras do “espetáculo”, que são a prestidigitação, o strip-tease…e o filme de terror. Se são decantados seus artifícios paródicos (raios e trovões, etc…), a revelação da existência da mansão maldita se faz como na forma de um sonho, a campainha tocada na visita que cada uma delas faz à casa funciona como se fosse um lembrete para elas (há uma hora específica para se adentrar) e para nós (tal paisagem está inserida nos subúrbios parisienses, como assinala também o episódio – possivelmente uma falsa explicação – de Poupie). Esse estilo/trabalho se exerce, contudo, também em benefício da improvisação (espontaneidade) das atrizes, naquilo que elas tem de menos “ordinário”: o físico e os acessórios “excêntricos” de Berto, lapsos e intonações particulares de Labourier. Não interpretando atrizes, mas sim seres um pouco “à margem”, seus aspectos “espetaculares” se inserem mais naturalmente na mistura entre o real e o irreal.
Um punhado de planos muito fortes articulam a flexibilidade desse filme charmoso e engraçado”: a “descida” (com toda a elegância) de Labourier ao jardim do “7 bis, rua do Nadir-aux-Pommes”, o telefone que toca no sopé da imagem da casa assombrada, os vividos travellings laterais sobre a boneca favorita de Berto. Muitas coisas se passaram desde os filmes de Cocteau (os quais sabemos que Rivette reivindica): jamais Céline e Julie se entrega ao “conto de fadas”, evocado, porém, pelo relato grotesco que Pisier faz, aos risos, do maravilhoso O Pássaro Azul (não o de Materlinck, mas sim o de Madame D’Aulnoy): isso se dá apenas no penúltimo episódio. Dois barcos se cruzam sob um lago no Bois de Boulogne, onde a calmaria da água anula as diferenças entre a vida e a morte, entre a memória e a amnésia. “Mas na manhã seguinte….”…é Berto sonolenta quem vê passar Labourier – que perde seu livro de magia – e grita para essa: “Senhorita, seu esquilo!” (tal como uma roda de exercício para roedores, que gira sem fim sobre seu próprio eixo = o fim prestes à recomeçar).
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“É sempre o mesmo truque”. Essa reflexão de Labourier que assiste ao mesmo filme que nós (o melodrama mundano “que se repete”, que interpreta “eternamente” os fantasmas em um estilo recheado de reminiscências hollywoodianas, mas também muito francesas, de Marcel L’Herbier a Delannoy, passando pelo pior Duvivier), Rivette corrige imediatamente com um prazer malicioso, ao introduzir a “segunda versão” de um plano entre Ogier e Pisier, no qual um olho já treinado identifica, prontamente, que ele é filmado de outra forma (o perfil de Pisier não bloqueia completamente, como na primeira vez o fazia uma pintura de estilo pequeno-burguês pendurada na parede). Rapidamente, Céline e Julie são “levadas pelo barco”, alegres e resignadas (e nós com elas), por alguém, mas por quem? Resposta: pela única pessoa que poderia ter-lhes dado os misteriosos bombons hipnóticos, ou seja, a pequena garota, “autora” do filme, pivô da conspiração.
(Positif nº 162, outubro de 1974, pp. 14-16. Traduzido do francês por Guilherme Savioli)
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[1] É de se notar nesse indescritível episódio a gama de transeuntes que passam filmados ao mesmo tempo que as duas personagens sob o coreto. Sadismo de Rivette, que nos joga na cara nossos próprios reflexos. Sabedoria de Rivette, que separa o cinema (nós rimos) da vida (ou ficamos extremamente perplexos).
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