Afrofuturismo
Black to the future: cinema e Afrofuturismo [1]
por Heitor Augusto
I Afrofuturismo não é um conceito que delimita, explica ou valida uma obra à priori. Pelo contrário: sua adoção exemplifica como a mudança não esteve nas obras, não houve um “antes olhavam o mundo sob um certo ponto de vista, mas que ao longo da história foi se alterando”. Elas estiveram lá “do mesmo jeito”: o que mudou foi o discurso acerca delas, o ferramental teórico para compreendê-las e a dimensão do sensível para experenciá-las.
A ascensão de um termo/ferramental teórico apenas vinte anos depois da existência desses trabalhos (“Afrofuturismo” surge de forma propositiva em meados dos anos 1990) só reforça como o discurso crítico não existe num espaço imaterial e estéril, descolado de qualquer traço de sociedade. Reconhecer, em 2015, se tal obra é afrofuturista constitui menos um delimitador da experiência e mais um disparador de percepções.
À frente das expressões afrofuturistas estão a literatura, especialmente os livros de ficção-científica negrocêntricos de Octavia Butler (Parable series) e Samuel R. Delany (Dhalgren), e a música, como as viagens sonoro-intergaláticas de George Clinton e o Parliament-Funkadelic (o Prelúdio do álbum The Clones of Dr. Funkenstein insere seu apreciador imediatamente num mundo paralelo de seres clonados pela epítome do funk, o doutor Funkenstein) ou as conexões cósmico-sonoras de Sun Ra e sua Arkestra.
II
O cinema é um coadjuvante de luxo dentro do guarda-chuva afroturista e a mostra Afrofuturismo – Cinema e Música em uma Diáspora Intergaláctica ilustra como cabe muita coisa sob sua guarida e que são muitos os caminhos explorados. Um elogio à curadoria sólida de Kênia Freitas, que tirou das sombras filmes pouco conhecidos até mesmo para quem estuda cinema negro/negros que fazem cinema/negros no cinema e também propôs que outros de maior circulação fossem vistos nesse contexto afrofuturista, acompanhado de outros irmãos de diáspora, criando intertextualidades.
O que esse conjunto de filmes traz vai muito além da demanda por reparação na participação severamente deficitária de negros em filmes ou por uma gama de papeis que sejam mais complexos que o do magical negro ou menos racistas que os do ideal de branqueamento. Ao delirar o presente[2] muitos desses filmes afrofuturistas inventam “amanhãs” tão diversos que carregam características que escapam à retórica terráquea-política do nosso presente. Na confeção de devir(es) não se pensa em incluir mais negros: o que se imagina são outros mundos nos quais o paradigma será a mulher e o homem negro. Mundos onde o futuro/finalidade/caminho/destino/desaguamento natural da civilização não é no branco. Nesse devir, o universal é o negro.
Dizer que a força desses filmes é trazer imagens positivas denota uma compreensão insuficiente do deslocamento de olhar que eles provocam – até porque “conteúdo positivo” não é muito o campo simbólico onde se filiam, por exemplo, Crumbs (2015) ou Pumzi (2009). Uma vez mais, seria ater-se em demasia a uma retórica terráquea-política de grande narrativa para observar obras que estão longes dos cânones e que (muitas delas) se utilizam de um gênero “menor”, a ficção científica.
Deslocamento agressivo do olhar: é isso que os filmes mais potentes da mostra provocam. Falarei apenas sobre alguns, não necessariamente os melhores, mas os que mais fazem sentido para o caminho que este texto está tomando.
III
Assistir a Space is the Place (1974) em película e tela grande – mesmo que na problemática sala 4 do Cine Belas Artes – foi o evento mais forte da mostra. Ver as trucagens e gambiarras de efeitos especiais na sala de cinema recuperou o mesmo sentimento revigorante que tive ao ver Dark Star no CCBB, longa que Carpenter lançou também em 74. Quando a nave vinda da futura colônia pousa na Terra, compondo uma imagem que faria sangrar os olhos dos pregadores do ultrarrealismo, me sinto mais e mais próximo do filme.
Afora o fetiche por uma tecnologia que aos olhos do contemporâneo parece ter sido feita há mais de um século, Space is the Place tem uma estrutura de montagem que usa muito bem dos cortes repentinos e das elipses. Começa com uma voz enigmática, viajando pelo espaço, proclamando algo como “chegamos ao fim do mundo, você não sabe disso ainda?”. É o reconhecimento desse estado de finitude da organização da vida na Terra nos moldes que conhecemos que permitirá ao filme dar diversos saltos temporais e trabalhar na produção de devires.
Esse “fim do mundo” não se refere a toda humanidade. Por trás do enredo de aventura e perseguição e dos números musicais absurdamente fascinantes está a dureza do argumento do filme: o reconhecimento tácito de que, para um(a) negro(a), do jeito que está não dá mais. É preciso começar de novo, inventar um lugar físico e simbólico em que não exista o racismo estrutural, em que o negro seja o universal, para, só então, curar todas as feridas da subtração forçada dos nossos passados, das nossas culturas. Das subjetividades.
Sun Ra, num tom quase messiânico, é quem, por meio da música sensibiliza e transporta as almas para esse lugar outro de refundação, enfrentando a desconfiança de alguns negros, a malícia dos que sobrevivem nesse status quo e a própria perseguição do Estado – nesse aspecto, Space is the Place e Branco Sai, Preto Fica, filmes separados por 40 anos e milhares de quilômetros de distância, se encontram com tanta evidência.
Olhando em retrospectiva, coragem também do filme de propor uma viagem para além num momento em que a retórica terráquea-política tinha força simbólica (os Panteras Negras existiam como voz radical, mesmo que já bastante machucados, entre outros fatores, pelo desmantelamento do FBI). Visto sob esse ângulo, os planos fechados de June Tyson, a cantora que se tornou a primeira integrante mulher da banda de Sun Ra, intransponível por trás dos óculos escuros, paramentada como uma deusa vinda de uma terra muito distante, ressaltam a sensação de que ela é uma alienígena de sabedoria inalcançável. Quando um fragmento da Terra espatifa-se e flutua rumo ao nada, a voz de June em looping cantando “o espaço é o lugar”, não há como não se deixar fascinar por esse devir.
IV
Se no mundo real são raras as frestas para enxergar outros amanhãs para as populações negras, resta então ganhar a guerra ao menos na narrativa, no campo do simbólico. É o que silenciosamente afirma o bombardeio cartunesco de Branco Sai, Preto Fica – sobre o qual não falarei mais, já que esse texto dá conta do filme. E é o que escancara Rapsódia para o Homem Negro. Num momento em que a porção mais prestigiada do cinema brasileiro de festivais parece tomar como pecaminoso qualquer tipo de asserção mais firme sobre o real, o curta de Gabriel Martins não teme ser um óvni por dizer: ali está o real e é pra lá que eu vou.
Cada plano do filme revela uma consciência de passado e ancestralidade, uma elaboração sobre o lugar de fala e uma preocupação constante com o real, sem perder tempo com as afeições, com a bolha do sensível que atenua conflitos. Não: o conflito está lá, é preciso viver com ele, mexer nele, reconhecê-lo, nem que seja para admitir que sua resolução não será nada harmoniosa. O que é o gesto quixotesco de Odé de combater as armas de fogo dos homens de bem com flechas de Oxóssi senão um reconhecimento de que “eles levam na vida de carne e osso, mas ao menos na fantasia a gente ganha”?
Experiência interessante a de rever tanto Rapsódia para o Homem Negro quanto Quintal, de André Novaes, no contexto da mostra. Explora-se campo de dimensão de compreensão desses curtas, mas também do conjunto da obra de ambos: de que ali estão homens negros fazendo cinema, informação que, tenho a sensação, até pouco tempo era tida como acessória. Já não me soa mais possível tratá-la assim.
V
Crumbs (2015) e Drylongso (1998), dois longas com fruição quase oposta, mas ainda assim fortes. Primeiro o de Miguel Llansó: 70 minutos de desconforto, de paisagens esvaziadas, de símbolos palpáveis de cultura pop atirados num filme completamente desterritorializado. Se em muitos filmes da mostra o efeito provocado foi de uma surpresa agradável, da ordem do “E pode ser assim? É mesmo?”, o de Llansó provoca uma confusão por ter, ao mesmo tempo, elementos classificáveis como ficção científica mas, por outro, praticamente abolir delimitações de espaço (estamos na Etiópia, mas num cenário pós-apolaptíco) e tempo (Candy, o “herói” que faz a “jornada”, não parece pertencer a um tempo do hoje, sendo um depositário ambulante de imagens, memórias de um passado transcivilizacional lutando para embarcar na nave que o levará para o além).
Do lado oposto, o longa de Cauleen Smith, filme muito terráqueo, com apenas um elemento marcadamente metafórico: como a população de homens negros jovens está em extinção, a jovem Pica, aspirante a fotógrafa, decide registrar os rostos dos rapazes de sua comunidade com sua Polaroide, fazendo a passagem do que é transitório (a vida e um momento) para a forma permanente (o registro em imagem física que comprova a existência daquela pessoa, mesmo após seu assassinato).
Apesar de feito no final da década, Drylongso carrega a aura de dramaturgia que se assemelha mais ao começo dos anos 1990 – o tom dos atores, os diálogos, e os conflitos dos personagens me remetem diretamente a Poetic Justice (1993), longa que John Singleton dirigiu imediatamente após ao hit Boyz n the Hood (1991). Cauleen, porém, é mulher, e isso dá uma outra dimensão ao encontro de Pica com outra adolescente, Tobi. O filme pendula de tema a tema, todos relacionados de alguma forma à identidade da mulher negra. Quando Pica e Tobi se encontram, isso surge de maneira frontal: Tobi vive um relacionamento abusivo.
Para se proteger e despistar o ex, passa a se vestir de homem. “Que história é essa dessas suas roupas?”, pergunta Pica. E Tobi, de forma muito direta, como se o conteúdo da conversa fosse trivial, explica: “Bem, desde que eu comecei a me vestir de homem ninguém mais me chamou de vagabunda e, veja, eu não tenho saudade alguma de ser chamada de vagabunda na rua por um estranho. Então vou continuar me vestindo assim”.
Se para um homem será sempre impossível entender, de fato, o que é ser atravessado diariamente pela violência do machismo, Drylongso foi possivelmente o primeiro filme que realmente me fez sentir medo de seus efeitos. Não uma compreensão racional, intelectual e de empatia: medo mesmo.
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[1] adoraria que tivesse sido eu o autor desse trocadilho maravilhoso com Back to the Future, ou De Volta para o Futuro. Que o crédito seja dado: Mark Derey, em 1994, intitilou de Black to the Future seu artigo que dava conta de observar uma série de manifestações estéticas sob o chapéu do Afrofuturismo.
[2] Termo roubado do artigo “Octavia Butler, Afrofuturismo e a Necessidade de Criar Novos Mundos”, de Carlos Calenti, publicado no catálogo da mostra.
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