Conversa com Tonacci
CONVERSA COM ANDREA TONACCI
Chego à casa de Andrea Tonacci e ele me informa que havia colocado algumas garrafas de cerveja no refrigerador, e me acompanharia com um copo de uísque. Assim a conversa fluiu por mais de duas horas, com mais de uma hora de gravação. A maior parte do que foi gravado está aqui. Suprimi algumas perguntas e observações tolas que fiz porque não estavam dignas das observações de Tonacci. Meu único mérito foi fazer com que o interlocutor se sentisse à vontade, não um personagem, mas um homem que busca. E parte dessa busca está em Já Visto Jamais Visto, seu último filme.
(Sérgio Alpendre)
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Queria começar pelo Já Visto Jamais Visto e como este filme se insere na sua trajetória.
Ele não se insere da mesma forma que os outros filmes. De uma certa maneira, sim, pois todos têm mais a ver com o estado intuitivo, emocional, com coisas mais internas, do que com motivações externas que justifiquem uma estratégia temática. Meus trabalhos sempre foram muito mais gerados por uma motivação quase irresistível interna, uma compulsão… Eu desenhava, pintava… O traço acaba conduzindo ao que estou sentindo, assim como a caligrafia, a forma da escrita que vai se alterando conforme você quer que ela corresponda a um estado emocional muito mais do que a uma forma descritiva daquilo que você está pensando. Nunca foram coisas que eu soubesse a priori o que são, elas no processo se tornaram aquilo que eu fui descobrindo que eram.
Vendo os trabalhos anteriores, Olho por Olho nasce de uma raiva, de um momento de juventude, aquela coisa de não saber para que lado ir, no início da ditadura militar no Brasil. Blá Blá Blá obviamente corresponde a uma raiva ainda maior, uma tentativa de extravasar a retórica, a ideia das palavras como forma de dominação, etc. Bang Bang também faz parte disso, mas já entra no início de uma sexualidade intensa, e ao mesmo tempo as drogas… maconha… que era algo muito presente. Havia uma certa marginalidade nisso, ao contrário de hoje, que muitas vezes é até conveniente em festas. As drogas nunca existiram na minha vida como um barato, mas como um processo de descoberta, pela instrumentalização disso, um processo de concentração (apesar de que muita gente fala em dispersão), de atenção com o que estou fazendo. Serras da Desordem também nasce de uma coisa interior, um momento de separação de filho, esposa, perda da família, e do encontro dessa história trágica, da questão indígena: um crime, um massacre, que neste país é um método de genocídio. O Brasil é um país de apartheids, tem Faixa de Gaza no Mato Grosso, por exemplo. Quando Sydney Possuelo veio a São Paulo em 1979 procurando alguém para documentar uma expedição aos índios não contactados, fui chamado por ter feito Conversas do Maranhão, que é um filme que eu pulei nesta conversa por ter nascido de algo externo, uma denúncia, uma possibilidade de trabalhar uma questão nova para mim. Serras tem esse lado também, de busca, de investigar um sentimento que é meu, mas que no personagem Carapiru existe externamente de uma maneira muito mais violenta, e foi uma forma que encontrei de olhar pela lente para um ser que passou por isso (o genocídio). Na questão de Os Arara existia esse olhar para o outro como se isso pudesse ser algo diferente. Porque na verdade o que é diferente são as concepções, os conceitos, mas a maquininha é a mesma, o olhar, o sentido de audição, o tato… Eu achava que um olho que nunca tivesse visto um filme, uma foto, uma TV, eventualmente eu pudesse reconhecer, por meio de uma câmera, alguma coisa que eu desconhecesse desse outro olhar. Bobagem, fantasia de moleque que está lendo antropologia, coisas sobre a questão indígena. Essas expedições são uma experiência de vida, porque mudam nossa percepção, nosso conhecimento de sentidos. Quando você se mete numa mata meses seguidos, a ordem dos sentidos muda, seu metabolismo muda, sua percepção do ambiente muda, a acuidade auditiva muda, a acuidade visual também, você realmente passa a ter uma percepção do entorno, e do alcance dos sentidos.
Já Visto Jamais Visto chega num momento em que eu não conseguia mais produzir. Meus roteiros não são de filmes prontos, como pedem, são de ideias, de conceitos, possibilidades a serem desenvolvidas, como um método de conhecimento das coisas. Eu estava vivendo a percepção da perda de um monte de coisas que fui filmando ao longo de minha vida, que foram guardadas porque eram projetos que começavam com esse tipo de intuição e energia, e depois morriam porque não tinham condições de serem produzidas, a realidade mudava, os amigos iam embora, não havia então uma continuidade. Esses buracos na memória geraram o Já Visto Jamais Visto. É a tentativa de dar algum sentido a essa ausência, vivida, mas ainda assim uma ausência. Pensei que eventualmente uma imagem poderia trazer para além daquilo que ela estivesse mostrando, ela traria a possibilidade de uma memória do contorno, do momento, da época. Max Fagotti me ajudou a fazer o levantamento do material todo que sobreviveu, montou um projeto de descrição de cada material, apresentou à Cinemateca, e dois anos depois eles me procuraram e conseguimos telecinar o material em Super 8, 16mm e 35mm. Coisas que nunca tinham sido revistas, nem montadas. Assisti a essas coisas todas, uma bagunça de coisas e situações diferentes, com o compromisso de apresentar alguma coisa desse material, com a motivação de evitar a perda da memória.
Então tínhamos Paixões (1994), que era um projeto com Joel Yamaji, a tentativa de desenvolver uma história de um italiano no Brasil, um pouco a minha história, do meu pai, e tudo isso gerado pela minha descoberta de que na região de Extrema (MG) existiam vários italianos, fiz entrevista com eles, para saber como viviam, e isso acabou se ligando um pouco: como meu pai veio ao Brasil, por que, qual é a minha história… Meu filho tinha nove anos na época, e é um pouco então as perguntas que essa criança se faria a respeito de sua história. No fim, havia duas coisas: a memória, em que eu buscava elementos dentro desses materiais para recuperar parte desse passado e a possibilidade de narrar essa história a partir do ponto de vista de uma criança que se referia a um pai; e havia também a minha história, como criança vindo ao Brasil e perdendo a origem, a família, os primos, de rebuscar a história de um pai, que nunca conversou comigo sobre essas coisas, que faleceu cedo, e a percepção do que é um trajeto de afetividade, em que meu pai, eu e meu filho é como se fossem um corpo só, um ser só, que lembra, imagina, sonha, que guardou coisas, fantasias. Havia uma tentativa de se fazer uma ficção dessa história, mas junto com o levantamento de fotografias da família que fui captando em minhas viagens à Itália, visando entender o meu passado.
As coisas se encaixaram meio que automaticamente. Depois veio o trabalho da Cris (Amaral), de limpeza. Havia mais coisas que queríamos colocar, mas o contrato com o Itaú Cultural estipulava 54 minutos. Cheguei a oferecer um longa para eles, mas quem te responde é a burocracia, gente que não tem nada a ver com isso, e não entende que um longa na mão é muito melhor que um filme de 54 minutos. Mas minha finalidade não era, em princípio, fazer disso um longa, uma série, um curta, o que for, mas perceber nesse material minha existência afetiva. Tanto que a maioria das pessoas que aparecem nesse filme, afora eu, meu filho, a mãe, Joel, morreram. Mas são pessoas com as quais sempre tive ligações afetivas, que é como me ligo às pessoas, afetivamente. Não sou de patota, de grupo, de associação, de entidade, partido. Pelo contrário, fujo de tudo isso.
Em suma, Já Visto Jamais Visto se origina de tudo isso. Até mesmo o título já diz o que é, assim mesmo, sem vírgula.
Uma noção de fluxo…
É uma tentativa de anular um pouco o meu tempo, o do meu filho, do meu pai, e fazer disso o tempo de um sentimento só, uma mistura. Uma tentativa de ampliar um pouco, num momento de redução, isolamento, e de perda, respirar maior, esse corpo maior afetivo, numa descendência familiar, dentro daquilo que pudesse ser documentado.
Tenho 25 horas de material filmado, uma intimidade, não sexual, necessariamente, mas algo muito próximo. Estou tentando recuperar esse material nos Estados Unidos. O que faz sentido porque a história deles é a história roubada do mundo, é tudo tirado de outros lugares para inventar uma história para si como império, potência. Eles guardam tudo, filmam tudo, fotografam tudo. A memória não interessa, pelo contrário, o que interessa é desmontar a memória para ter uma versão atual mais conveniente. Não que preservar sirva para preservar uma verdade entre aspas, pelo contrário, você pode manipular até mais, mas o fato de você dominá-la… esse é o poder. Aqui o poder é muito imediatista. O oportunismo é imediato. Tanto que os acervos brasileiros são absolutamente reduzidos. Você vê acervos de pessoas que falecem, e as famílias acabam vendendo tudo a quilo para sebos. O cara tem uma biblioteca inteira e desmancha. Gente, o que é isso? Aquilo é um raciocínio, tem uma composição de pensamento, que compõe a ordem dessas coisas.
Já Visto Jamais Visto nasce desse tipo de sentimento. E eu ainda estou nesse processo. Só que agora trabalhando dois lados, um talvez mais íntimo, porque o vídeo permitia o registro de qualquer momento, era mais imediato, você pode assistir até mesmo ao mesmo tempo, e uma outra parte, mais indígena, mais estritamente político sobre o uso da tecnologia como um instrumento, uma forma de eles seguirem sua própria história. Tem depoimentos dizendo como era a luta deles (os índios), as dificuldades que enfrentaram, como os inimigos se comportavam, para levar a experiência de uns para outros. Tudo isso é pretensão. Talvez haja por trás disso uma grande vaidade. Mas procuro tratar isso numa dimensão humana comum. Não faço disso uma identidade minha ou algo especial. Tem gente que faz coisas muito mais importantes e muito maiores.
Não dá para ver como vaidade… é uma procura…
É uma busca do teu encontro contigo, uma forma de autoconhecimento. Quando eu falo da pretensão é porque você quer contar uma história. Mas se você pega essas culturas, as histórias são só mitos, porque o dia a dia é igual, é uma continuidade, não existe muito a minha história, existe o mito da nossa história. O “eu” é mais “nós” do que “eu”.
Mas se você pega os admiradores do seu trabalho, tem muita gente que amou Serras da Desordem, por exemplo. Ou Bang Bang. E foram atrás daqueles que não ficaram tão conhecidos. Você não acha que essas pessoas teriam um interesse natural e especial tanto pelo Já Visto Jamais Visto quanto por todo esse documento a se recuperar?
Eu me comporto diferentemente do que uma pessoa que descobre um filme meu e gosta. Eu também descubro coisas que me deixam absurdamente surpreso. Sei o tamanho do que eu faço, mas eu aprendo um pouco do que eu tenho feito e que eventualmente me ajuda a entender esse trajeto de autoconhecimento por meio do que os outros falam. Porque se eu sei, digamos, progressivamente (isso durante um período, depois a coisa se desgasta) o que o filme aparenta ao outro, eu descubro quando exibo o filme e tenho a oportunidade de conversar. Não é pela bilheteria. Nem pelo eventual sucesso (quando o filme estoura e fica em vários cinemas…). Apesar de que para chegar a esse ponto é preciso investimento, principalmente em propaganda. Você vende qualquer coisa e torna ela necessária. Essa coisa pode custar um centavo, mas se você gastar 1 milhão para vendê-la, ela passa a valer muito mais, e todo mundo vai atrás.
Falando, então, especificamente do Já Visto, me parece que foi organizando o filme em torno do Paixões que você conseguiu um norte para o filme.
Isso. Eu começo a rodar Paixões, que é antes de me preocupar com materiais de acervo, porque é um projeto que quer buscar uma memória, uma identidade desconhecida, não lembrada, não percebida, não documentada. Consegui recuperar todas as cartas trocadas entre meu pai e minha mãe durante a guerra. Meu pai estava fora da Itália. Peguei uma delas e fui reler. Falei: “não vou olhar para isso, pois são cartas de pessoas normais, apaixonadas, de um cara em guerra, sentindo falta da esposa”. Não era por aí. Prefiro meus mitos, minhas fantasias, meus sonhos, meus medos, pois são muito mais construtivos para essa identidade entre aspas… Você entende que estou falando de uma transitoriedade, de um trajeto no qual você tem um sentimento que se aproxima disso. Não vai chegar a nenhuma definição. Pelo contrário: é a prova da indefinição, da transitoriedade.
Identidade tem um pouco disso também…
A identidade é essa transitoriedade. Essa coisa de identidade fixa é de pessoa que tem de ser escrava, funcionária… (pensativo). Você entende, né?
Então, em Extrema (MG), nasceu a vontade de documentar os vários italianos que tinham por lá, mas dessa vontade surgiu, novamente, a necessidade de entender a minha história, eu próprio um italiano que veio ao Brasil muito cedo. Uma necessidade interna, que pega carona em algo externo. Falei com o Joel (Yamaji) e ele topou. Achei um velho uniforme militar do meu pai num baú e pensei: o que será que eu vou sentir se vestir esse uniforme. E eu resolvi vestir e filmar isso. E foi assim que aquelas cenas que você viu surgiram. A continuidade da história eu não sei te dizer.
Por que não foi adiante essa história?
Talvez eu não soubesse mais como avançar, talvez eu não tivesse dinheiro para avançar. Não sei te dizer.
Por que aquela bíblia? Por que aquela imagem de Cristo, que aparece em um outro momento, de um outro filme bem anterior (cerca de vinte anos antes de Paixões), numa parede?
O Cristo é o mesmo, exatamente. Num tempo anterior. Por que algumas imagens se fixam na memória e retornam? Não sei te dizer. É como nos sonhos. Eu guardei aquele objeto. Era uma placa de rua com o Cristo em cima. Depois as pernas do Cristo se perderam… Tem a história de ser criado no catolicismo, tem a história da dessacralização das coisas, que era um pouco minha reação contra esse poder da igreja. Tudo se baseia no desespero das pessoas, na ignorância, na necessidade de ter algo a se apegar quando a vida fica insuportável. Mas não sei racionalizar sobre isso. Não entendo o porquê usei a imagem de Cristo, mas o que isso provoca, as consequências disso é que são muito mais interessantes. Se eu tiver explicações para isso ou aquilo é igual eu tentar traduzir o que os índios dizem em Serras da Desordem, quando o importante é nossa intuição do que está sendo dito. Aquela imagem te permitir você projetar o teu sentimento, você tem uma relação com aquilo. Se eu te explico, você não tem participação nenhuma e acabou. Então o mistério, a fantasia, o sonho, são coisas que aprecio mais do que o conhecimento concreto, que explica.
Hoje em dia tudo precisa de explicações, de uma bula. Você precisa entender as coisas senão não tem como acessá-las. Isso estraga um pouco a experiência. Se você não tem um entendimento formado, ou você até tem esse entendimento, mas não sabe se é o certo, as coisas ficam mais interessantes.
Tudo ficou funcional. Mesmo a compreensão (“ah, então eu sei o que é isso”). Eu vejo no cinema. Hoje, revendo clássicos do cinema, eu vejo filmes novos. Eu mudo, a pessoa muda. De um dia para outro você é outro. Se aquilo ficou fixo e você o olha novamente, aquilo assume outro sentido, outra história. Isso também é fantástico. É muito mais rico do que algo determinado. Tenho a impressão que a riqueza da vida é justamente essa: o desconhecimento, e a tentativa, que é talvez de nossa materialidade, de fixar alguma coisa, e ao mesmo tempo ter a consciência de que é uma bobagem fazer isso, uma estupidez. É preferível viver esse fluxo do que procurar defini-lo.
E temos de ter consciência de que seremos sempre ignorantes de muitas coisas…
E cada vez mais. Quanto mais você aprende mais tem a dimensão daquilo que não conhece. Por isso é desagradável perceber, aos setenta anos, que os filmes existem, mas ao mesmo tempo passaram a te atribuir uma autoria, você passa a ser um cineasta, você passa a ser um personagem que é visto de fora. Só os outros te dizem quem é esse personagem, não é você que vai valorizar isso. Então você acaba se repetindo, porque te chamam para falar do filme porque você é o autor. Cada vez mais esse autor, pra mim… O ego é um trouxa. O “eu” acha que faz. Não é. É mais uma intuição. Um estado de atenção de um determinado momento e você age e aquilo se materializa em alguma coisa. Você não faz um filme sozinho. Você faz com pessoas, com equipamento, com história, com o momento emocional do mundo, com a situação econômica. Tudo isso é uma interferência, e esse processo e vai determinar a forma do filme. Então as pessoas falam em estilo. Que estilo? Estilo é uma tentativa de amarrar mercadologicamente alguma coisa. Bang Bang, com os planos sequências… tudo é consequência de necessidades de produção. O roteiro original era todo decupado…
(Cristina Amaral, montadora de Serras da Desordem, Já Visto Jamais Visto, entre outros, entra na conversa, timidamente).
É isso… a montagem entra assim no processo. É um exemplo perfeito. O rumo vai um pouco da forma que o mundo se apresenta. Se você estiver atento a isso. Se você estiver assim, só enxergando normas, você vai virar religioso, fanático… ou cineasta.
Por que você pulou Jouez Encore Payez Encore (1975) na breve retrospectiva de sua carreira feita no começo da conversa?
Pensei nele, mas pulei porque no fluxo de filmes feitos a partir de necessidades internas talvez ele não se encaixe. Foi algo proposto, mas na primeira conversa eu falei para a Ruth Escobar que não estava viajando para documentar ela e Victor Garcia viajando ao Irã para apresentar a peça de Calderón de la Barca, eu iria fazer um trabalho sobre o que visse, sobre as relações humanas no teatro. Tanto que eu filmo muito mais os bastidores. Tem um minuto de peça, no máximo. Tinha atores importantes ali (Ruth Escobar, Victor Garcia, Sérgio Britto, Dionízio Azevedo…). Talvez eu não tenha falado desse filme porque ele não foi visto. A Ruth Escobar se arrependeu da liberdade que me deu e não quis que o filme saísse. Só depois de vinte anos ele circulou mais, com alguns cortes impostos por ela. Daí o tempo passou, ela me devolveu os negativos dizendo que se eu não colocasse novamente as cenas que ela tinha “cortado”, me processaria novamente.
Cristina, fale um pouco do processo em Já Visto Jamais Visto.
Cristina: Ah, Sérgio (inicialmente relutante)… Foi tão intenso que é difícil verbalizar. Foi essa coisa de ter de trabalhar com imagens muito pessoais e transformar num filme que vá além da história pessoal, que construa uma coisa além disso. Nunca foi uma coisa autobiográfica, sempre foi uma coisa de trazer um sentido à tona.
Foi um trabalho harmônico entre vocês dois, no sentido de um chegar a soluções que o outro estava procurando? (Menciono o filme de Pedro Costa, Onde Jaz o Teu Sorriso?, sobre o trabalho de montagem do filme Sicília, de Jean Marie Straub e Danièle Huillet, e as risadas são imediatas, sugerindo, a meu ver, alguma similaridade entre os processos).
Cristina: Foi, sim. Mas é complexo, porque tem instantes em que você pensa que não vai conseguir, tem muitos momentos de insatisfação no processo. Mas sempre tem a busca de um caminho.
Andrea: Mas tinha hora que ela me expulsava da sala. Falava: “me deixa em paz que depois te mostro”.
Cristina: É que ele fica nervoso, principalmente com a coisa do digital, com um monte de processos no meio. Chega uma hora que ele acha que não vai acontecer. Tem que ter paciência para ficar testando coisas. Naquela hora da sobreposição dos peixes, que ficou linda, eu tive de experimentar um monte de coisas, e tive de expulsá-lo da sala, porque ele ficava impaciente, queria tirar fora esse momento do filme.
Aquilo é em Extrema, certo? E os peixes são de onde?
Cristina: de um aquário gigante nos Estados Unidos.
Andrea: Mas a sensação que eu tenho, estando no alto daquela serra (de 1.700 metros de altura)… A gente costuma falar no fundo do mar. Só que ali é o fundo do ar. Então era um pouco o sonho da criança, o fundo do ar, então vem os peixes… cabem.
Em Benzedeiras de Minas (2008) também tem muitas imagens sobrepostas.
Cristina: É que às vezes temos de trabalhar com tantas camadas de informação, que isso vem naturalmente. Não é uma proposta, foi surgindo como uma necessidade narrativa.
Andrea: Mas é a percepção dessas camadas de transitoriedade de sentidos. É quando você percebe que tem um trânsito de um sentimento para outro, e é mais esse trânsito que interessa do que o efeito em si. O efeito não é nada. Faz sentido ali porque a tecnologia permite ter três estados ao mesmo tempo. Tem um momento do Já Visto que tem quatro ou cinco imagens ao mesmo tempo.
Não é pela beleza visual, mas pela sensação.
Andrea: Isso. É o que chega mais perto de um sentimento, de uma intuição. É uma busca da manifestação desse sentido. Não sei se na pintura, no desenho, as camadas das cores também tinham essa função. Em Da Vinci, suas técnicas de pintura, entendemos o esforço de visualização que existe nas camadas que você consegue dar a uma determinada coisa.
Cristina: Fora o trabalho que não fica visível. Lembrei das imagens do documentário sobre o Iberê Camargo, em que ele pinta, passa a espátula e tira tudo, depois pinta de novo, e tira.
Andrea: Isso que você fala é importante, porque você pode não ver mais aquela imagem, mas ela já fez parte da imagem que você está vendo.
Cristina: Eu monto muita coisa sabendo que vou tirar, porque na verdade está construindo o corpo de uma imagem. Coisas que não estarão visíveis, mas fazem parte daquela imagem. É um labirinto mesmo. Porque ele (Andrea) não explica. Ele professa a dúvida no trabalho dele, o tempo inteiro. A primeira solução que você apresenta ele questiona. É ótimo isso, porque você vai além do que seria um primeiro movimento. É árduo esse processo, de entender e conseguir chegar no que o filme está propondo. Mas é muito rico.
Andrea, de onde vem aquelas imagens dos galos de briga?
Aquilo vem do documentário que eu queria fazer sobre os italianos (na origem da filmagem de Paixões). Um velho que eu conheci que criava galos de briga clandestinamente. A ideia é mostrar o conflito. Uma criança diante de um mundo que se revela, e o mundo é um conflito. Tanto que aquelas imagens, a fusão final, volta para uma igreja, o Monte Santo, na Bahia.
Lembro que os galos brigando chegam em um momento em que uma sombra chega trazendo os galos e acentua o mistério.
Isso, é o desconhecimento. São as imagens que permitem a fantasia. Permitem que quem possa ver essas imagens projete sua interioridade.
A briga dos galos chega depois daqueles guerrilheiros, filmados bem anteriormente, durante a ditadura.
Sim, se pensar bem, é um conflito. Aquela coisa do cara armado, dentro de um apartamento, pertencia a uma série de imagens que nunca foram montadas. Filmamos perto da represa, em Santo Amaro (bairro de São Paulo). Mas é outra coisa que parou, morreu ali. E também tinham a pretensão de eventualmente se tornarem um filme, mas não têm a dimensão de um filme mesmo, em que você sabe o que vai acontecer, para onde vai. Tem uma sequência de sequestro, filmada no Rio de Janeiro, que eu perdi, mas estaria no filme se eu tivesse achado. Então Já Visto Jamais Visto é sobre buracos, ausências, espaços entre as imagens.
É isso que faz a gente querer voltar ao filme mais vezes. Vi quatro ou cinco vezes e para mim continua sendo um enigma.
Mas é isso mesmo. O enigma é o que permite a fantasia, o sonho, o encontro.
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Conversa realizada em janeiro de 2015, para o jornal dos Encontros Cinematográficos, evento que ocorreu em março de 2015, na cidade de Fundão, Portugal.
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