Ano VII

007 Contra Spectre

terça-feira dez 15, 2015

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007 Contra Spectre (Spectre, 2015), de Sam Mendes

Na anatomia do James Bond de Daniel Craig, a encarnação mais física do personagem entre todos os cinco atores que passaram pela série, Skyfall é o coração e Spectre, o cérebro. Um é corpo, outro, psique.  O primeiro dos dois longas-metragens dirigidos por Sam Mendes é sobre retornos: retorno à casa de Bond e retorno ao ventre materno (ou a ideia de), personificada por M. O agente 007 mergulha em si mesmo – a sequência dos títulos, cuja riqueza simbólica é costumeiramente o medidor da habilidade do artesão a ocupar a cadeira de diretor, é estruturada em torno do mergulho à escuridão – para compreender o passado e entender seu papel como máquina antiquada de guerra, prestes a se desintegrar em ferrugem no mar da tecnologia e da condenação da velha ideia de masculinidade. (R)Encontrado o lar – home is where the heart is -  007, o teimoso bulldog, pode continuar existindo, apesar do cheiro de eminente extinção, mesmo com as mudanças climáticas que parecem anunciar aproximação do Grande Meteoro da órbita da Terra. Afinal, Bond, gradativamente, afasta-se das sensibilidades atuais e, no momento em que o personagem estabelecer relações homo afetivas ou ser admirado por ser um pegador de mulheres não biológicas, terá sido decretada, de uma vez por todas, o fim de uma era e o início de outra. Não do cinema, mas da própria humanidade. Não é necessário muito esforço para perceber que o produto da família Brocolli é um excelente sismógrafo das movimentações políticas e culturais da sociedade ocidental. E é, claro, uma ilha de conservadorismo.

Além da água, na sequência dos títulos em Skyfall, pulsa o sangue e as formas venosas, em um filme que começa quente, arenoso (Túrquia), brilhante e pulsante (China) e termina na escuridão da fazenda que dá nome ao filme, com a queda de M(other). O luto se estende ao início de Spectre, com a direito a citação sobre morte e ambientação no México durante a festa que celebra aqueles que pereceram. Se a fluidez do plano sequência do set piece inicial de Spectre pouco condiz com a natureza labiríntica e ramificada do filme, um vestígio de sua origem, A Marca da Maldade, de Welles, é suficiente para entender sobre que tipo de universo a obra de Mendes pretende retratar. O toque do mal infecta as estruturas de baixo para cima e seus tentáculos asquerosos alcançam longe. Não é assim, também, no mundo real?

Ao desmascarar a organização Spectre e apresenta-la como a verdadeira responsável pelas vilanias nos filmes anteriores de Craig, pode-se pensar, momentaneamente, que uma das características mais interessantes dos últimos três longas-metragens de Bond são “mistificados”, fazendo a série retornar ao campo da fantasia: ao invés de vilões com cicatrizes que pretendem dominar o mundo, os antagonistas anteriores da Era Craig eram banqueiros, donos de corporações multinacionais, homens mundanos. Esta, mais uma vez, aparente guinada à fantasia não é súbita. Já em Skyfall Mendes introduz a peça que prepara a suposta mudança, na concepção de um vilão “sentimental”, com agenda pessoal, que queria reconquistar o coração da mãe, no lugar de poder. Como, então, um sujeito de nome exótico, Ernst Blofeld, e cicatriz no rosto pode corresponder à realidade ao invés de um estereótipo cinematográfico? É porque, desta vez, por baixo da maquiagem de cicatriz encontra-se um espelho voltado para o mundo. No lugar de caricatura, analogia. É muito mais fácil enxergar no Blofeld ´15 a face que representa a distorção moral, carregada da teatralidade bárbara do primitivismo daqueles que praticam o terrorismo hoje do que era possível ver no Blofeld ´69 o rosto do comunismo.

Qual é o maior terror do mundo, passadas quase duas décadas do século XXI? É não saber exatamente de onde vem o mal, nem como irá se manifestar. Silva, o vilão interpretado por Javier Bardem em Skyfall, ataca de dentro para fora, fazendo infiltrar dentro de uma estrutura sólida agentes do mal e assim a implodindo, com a intenção única de provocar o desequilíbrio. É assim o terrorismo, enfim. Depois do 11 de setembro, nunca mais se pôde desassociar esta atividade nefasta da destruição de prédios e construções. Não há percepção mais acurada do que aquela dada pelo arquiteto em La Sapienza, de Eugene Green: “quando as pessoas tentam destruir alguém ou alguma coisa é porque a pessoa ou a coisa a perturbam”.  Posto em pedaços primeiramente o coração/corpo do serviço de espionagem britânico, o MI6, em Skyfall, o objetivo imediatamente seguinte e consequente só poderia ser o de destruí-lo psicologicamente.

Ernst Blofeld, o mentor por trás de todos os ataques nos filmes da Era Craig não marca, portanto, um retorno da franquia ao personagem icônico da série, ao careca segurando um gato branco que deu origem às paródias de Mike Myers. Ele, Blofeld, e sua teatral organização Spectre, permitem analogias com o mundo real, e já deve ser possível notar o coração de qual demônio pretendo atingir com essa flecha lançada: é evidente que, na essência, a Spectre e o Estado Islâmico representam a mesma coisa. Involuntariamente, a imagem do polvo, logotipo do grupo de Blofeld (trata-se de uma empresa, afinal), com seus asquerosos braços que agem debaixo da superfície, em várias frentes globalmente, condiz com a atividade terrorista contemporânea. Mas, além da imagem do polvo, é o aspecto tenebroso do longa-metragem que mais se assemelha à realidade. Spectre é um filme bastante escuro (não só em qualidade luminosa) e, por incrível que pareça, quando se refira a qualquer produto da série 007, claustrofóbico. Tudo é cativeiro, esconderijo e sombras; tudo é dissimulação e terror psicológico: uma das grandes cenas de perseguição se desenrolam através das apertadas ruas do centro de Roma; um importante ex-vilão da Era Craig vive escondido em uma cabana escura, temeroso de ser descoberto pela Spectre, já que o castigo por ter desertado do grupo, por não concordar com seus métodos doentios são mais dolorosos do que a morte, levanto o personagem a finalmente decidir suicidar-se; na primeira aparição de Blofeld, vemos o sujeito sentado à mesa, engolido pelas sombras, a observar Bond, sem saber que foi identificado pelo vilão. “Nós estamos em todos os lugares”, diz o líder da organização. Infiltrados nos próprios alvos de ataque, atravessando fronteiras, o terrorismo não quer conquistar corações, quer destruir um tipo de moral, quer colocar em frangalhos a sapiência.

Os restos do prédio da MI6 já não se assemelham em nada com um corpo. Temos ali um labirinto enegrecido por cinzas e falta de luz, que, junto da armadilha de fios entrecruzados e emaranhados provindos da armadilha preparada por Blofeld, lembram ligações neurológicas. Estamos no cérebro. Bond, depois de ter sobrevivido à literal penetração do próprio encéfalo, proporcionada por engenhoca do vilão, está agora na mente-em-escombros do algoz, em que a falta de luz é, também, falta de sabedoria (o terrorista destrói por não entender), obrigado a tomar decisão moral. O tipo de terror de que estamos falando joga fora do campo moral, e parte de sua força está na sedução abstrata. Mas Bond, o assassino profissional, é um homem, não um polvo; suas ações são pautadas por sentimentos bastante concretos (o amor pelas mulheres? Pela pátria? Por ser um bom profissional?), claramente conservadores, e filme a filme, mais próximo de um herói Hawksiano. Morre M, entra Mallory, o pai, que repete os dizeres do filho: é preciso saber quando não apertar o gatilho – em Skyfall, é 007 quem usa o axioma.  A salvação para essa Inglaterra dividida internamente, incapaz de organizar um sistema de defesa livre de sabotagem e terrorismo, é a sabedoria da moral. Se a existência caminha para um universo automatizado, de carros que caminham sozinho e drones que fazem entregas para a Amazon, a tendência é que Bond consiga se manter na vanguarda do conservadorismo por mais alguns anos, servindo como ponto de equilíbrio e, vez ou outra, prevendo o futuro. Reacionária, a série muitas vezes reage ao mundo, negando-o ou o abraçando – em relação às tendências culturais do momento, ou mesmo dos caminhos trilhados pelos próprios filmes Bond – em um constante movimento de esquiva, que por vezes tem capacidades de adivinhação (em 1964 Bond reclamou do barulho das guitarras dos Beatles; em 1967, o quarteto lançou o brilhante Magical Mistery Tour, um disco praticamente sem nenhuma guitarra).

Daí a possibilidade de um herói britânico (pai), aproximar-se da moral norte-americana (filho), em um farol que, ao apontar para trás, pode acabar rebatendo em algo na beira da estrada e acabar iluminando o horizonte. Diante do terror, que almeja sempre contaminar uma moral, é preciso conservar alguma coisa: um valor, uma postura, uma estética. Spectre resolve-se com um herói fortalecido, de corpo e alma, de coração e cérebro. Em meio à iconografia do horrendo, da pichação e da imagem que é, acima de tudo, autodestruição (a natureza do volume de imagens que são produzidas hoje, dentro e fora do cinema, são ocupadas com a destruição, não com a construção), Spectre se coloca como uma estrutura reconhecível, que mira o passado (da própria franquia, da história do cinema, da moralidade arcaica) para projetar alguma luz sob o pântano noturno em que se encontra, à deriva, o mundo hoje.

Wellington Sari

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