Ano VII

Ponte dos Espiões

terça-feira dez 15, 2015

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Ponte Dos Espiões (Bridge Of Spies, 2015), de Steven Spielberg

Agora que Spielberg é o pai, pode filmar, sem pudor algum, o cansaço: em Lincoln, o mitológico presidente fuma, sentado à varanda e recebendo a brisa que agita a bandeira americana ao fundo, enquanto vê a fumaça do fim da guerra se esvaindo. Suspirando, o homem confessa que está com os ossos já muito cansados. Missão cumprida, resta a morte. Ao final de Ponte dos Espiões, o personagem de Tom Hanks, depois de voltar do frio que gera constante coriza no nariz, escorre, ainda de sapato e gravata, pela cama do lar e, após um longo suspiro, fecha os olhos. Missão cumprida.

Spielberg filmando a morte? Não. A vida e a jovialidade permanecem vibrantes na tela, em 2015, do mesmo modo que eram em 1985. Mas a nostalgia, que antes se desenhava como a saudade de um outro cinema, um cinema que talvez só tenha sido projetado na cabeça de Indiana (Spielberg) e Jones (Lucas), é agora saudade de uma outra mitologia, que só pôde existir em outro tempo. É parte do espírito romântico voltar ao passado, quando o presente é cínico, cruel e confuso. Agora, mais de que um gênero de cinema, o diretor de Jurassic Park, busca um novo mundo (o cinema!), de figuras que habitam a lenda, que exerceram papéis de responsabilidade, papéis de pais, afinal. Figuras que emanam certezas ao invés de dúvidas. A jovialidade está em não se afundar nos “velhos tempos”, mas apenas mergulhar, encontrar o tesouro e voltar para a superfície, antes da ferrugem tomar conta.

O cansaço de Lincoln e do advogado/espião Donovan são a honestidade de Spielberg, o velho, em revelação: o que vimos na tela não mais foram sonhos, como eram ET, Always, A.I; olhamos para a verdade do mito em ação; o sono/sonho é a recompensa que será lhes dada depois, quando tudo já estiver resolvido. Até lá, há uma tarefa a executar. Cobrar verossimilhança factual de Ponte dos Espiões é simplesmente não entender nada sobre a verdade do mito. Na belíssima sequência que antecede a chegada de Hanks em casa, observamos o ator sentado no metrô, iluminado pelo sol do fim de tarde. Uma passageira vê no jornal o rosto do herói, que até ajeita, com muita sutileza, os óculos, para que fique mais parecido com a fotografia no papel do periódico. O campo/contracampo estabelece um elo de ligação de silenciosa cumplicidade entre estes dois cidadãos comuns. E, da alternância de closes, conjura-se enorme sentimento de nobreza provocado pela capacidade da encenação em jamais deixar Hanks parecer envaidecido ou autoconsciente do seu papel de “salvador da pátria”, e, ao mesmo tempo, com a ajuda da música de Thomas Newman, fazer publicar, não no jornal, mas na própria tela, a imagem da lenda. O mito do pai de família comum, que precisa cruzar a ponte para voltar à família remete a outros tempos, claro (John Hughes, que tratou do mesmíssimo mito em Antes Só Do Que Mal Acompanhado veste Steve Martin e figurantes na estação de trem com chapéus, em pleno fim da década de 80), mas nunca deixou de fazer parte dos alicerces da sociedade americana (no cinema). Eis o tipo de verdade que se deve cobrar daqueles que não são sórdidos e que fazem da imagem sempre um lugar melhor: a verdade de cinema, que é a capacidade de extrair a partir da História e do mito, momentos como o do trem, em que a mise-en-scène evoca algo além do fato, e traz à tona a própria matéria-prima que dá origem ao mito. Por isso é que, cumprido o papel de condutor, a lenda é colocada para dormir, dando lugar a outra coisa, e essa outra coisa não é nada menos do que o próprio cinema.

Wellington Sari   

 

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