As Mil e Uma Noites – Vol. 2
As Mil e Uma Noites – Vol. 2, O Desolado (2015), de Miguel Gomes
Diferente do emaranhado narrativo do filme anterior, o que temos nesta segunda parte da trilogia de Miguel Gomes são três histórias, uma muito bem separada da outra. Sem entrevistas ou brincadeiras metalinguísticas, restam estes médias bastante diretos e claros em suas críticas às políticas de autoridade adotadas, recentemente, por Portugal. Não que Gomes tenha conseguido conter sua tendência (sina?) digressiva; pelo contrário, é justamente quando a ela se entrega que este Vol. 2 torna-se digno de escárnio.
Pensemos no mais aborrecido dos três episódios, o último, intitulado “Os donos de Dixie”. Trata-se das idas e vindas de uma simpática maltipoo, ou seja, um vira-lata de grife, resultado do cruzamento entre um maltês e um poodle. A narração nos diz que, acima de tudo, essa cadela abandonada vive para amar a seus donos. Como nenhum deles a mantém por muito tempo, ela torna-se pródiga não só em venerar, mas também – e por isso – no necessário ato de esquecer. Tendo filmado nos humildes prédios residenciais de Santo António dos Cavaleiros, Gomes parece perceber a debilidade de sua história principal, e passa a pincelar curtas anedotas ocorridas naqueles edifícios. Em apenas uma delas (e existem muitas, infelizmente), na qual, durante as comemorações do ano novo, os moradores do edifício fazem do elevador uma latrina, vemos algo que serve à ilustração dos eventos: os resultados degradantes de nossos próprios comportamentos estúpidos, egoístas, desesperados. Essa inspirada sequência (por mais bem-vinda que seja) ajuda-nos a suportar o restante, mas também deixa ainda mais decepcionante todo o seu entorno, seja na demora para concluir os rumos de um velho casal pelo qual não dávamos a mínima, seja na insistência forçosa à fantasia, seja quando retoma à história central e recorre à fórmulas antes agradáveis, mas nestas ocasiões sendo meras diluições, como na utilização kitsch de algumas canções populares.
Se “Os donos de Dixie” aborrece, certamente não irrita tanto quanto aquele que o antecede, “As lágrimas da juíza”. O começo é instigante e promissor: uma bela mulher, nua, deixa seu amante na cama para ligar à mãe e relatar seu recém-ocorrido desfloramento. Os conselhos que recebe são insólitos, arcaicos e, sobretudo, absurdamente possíveis. E é com este tom burlesco que se forma, sem anúncios, um tribunal. Em plena praça pública (mais para um teatro grego), o fórum é presidido pela mãe da agora-não-mais donzela. Orgulhosa por ter tão bem encaminhado a filha, dá inicio àquele que parecia um simples caso envolvendo a venda ilegal dos móveis de um apartamento pelos seus locatários. Rapidamente, no entanto, temos um palco para revelar uma injustiça social generalizada e, amargamente, irônica. Para isso, um completo carnaval é desfilado e o que, de início, divertia, passa a tornar-se prova irrefutável da preguiça e, também, do descomedimento de Gomes: por que tentar problematizar e exibir a corrupção e os métodos pelos quais ela é julgada quando pode-se, afinal, criar um esquete com bordões e caricaturas sob a esperta desculpa da alegoria? Bem, e nem vamos entrar nas lembranças do que já nos proporcionou o cinema português ao transpor às telas peças de todo tipo, pois a decepção com este episódio já basta para o azedume. E isso até porque sua ideia poderia ter sido, não fosse suas incríveis inclinações ao exagero e à exibição, surgir interessante: assim como o começo parecera curioso, ao final, ao voltarmos à filha, constatamos, não sem alguma perversa felicidade, a armadilha que a garota também será incapaz de escapar.
“Crônica de fuga de ‘Simão Sem Tripas’” é, portanto, o único episódio ao qual se pode ver sem fazer grandes ressalvas. É nele onde, pela única vez nesses dois primeiros volumes, encontramos uma personagem com uma amplitude que, com certa generosidade, podemos chamar de mítica. No plano formal e visto isoladamente, “Crônica de fuga…” representa o momento de maior contenção de toda a filmografia de seu diretor: seu ritmo lento acompanha um idoso, solitário e silencioso, que foge da polícia em meio às vastas planícies. Conseguindo comida e alguns outros confortos nas aldeias locais, este fora da lei vai ganhando fama e, também, a estima do povo, que, carente, passa a tê-lo como herói. Em sua trilha pelos campos portugueses, além da polícia, um inesperado drone causa, naquela paisagem ancestral, o estranhamento de um OVNI. Interpretado por Chico Chapas, este homem consegue surgir folclórico e real, fabular e factual. Em suma, com ele, Gomes consegue redimensionar a iconografia e os fatos narrados, algo até então inédito nestas 1001 noites.
Bruno Cursini
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