Ano VII

Ao Longo dos Anos

sábado out 31, 2015

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Ao Longo dos Anos (Über Die Jahre, 2015), de Nikolaus Geyrhalter

Estranho que Nikolaus Geyrhalter, este mais impiedoso dos documentaristas, tenha conseguido realizar algo tão comovente quanto Ao Longo dos Anos. Estranho porque seu olhar imperturbável tem como principal característica fazer, de enquadramentos precisos, moldes impecáveis das coisas por eles expostas, entregando, ao espectador, uma espécie de laudo, um documento do absurdo inerente ao banal. 

Não que o diretor tenha, durante sua carreira, se furtado das convenções mais usualmente ligadas aos documentários, haja vista as múltiplas entrevistas encontradas em 7915 KM. Ainda assim, o que tornava aquele um documentário singular, continuava sendo a precisão cirúrgica de sua decupagem: o exato retrato topográfico da rota do Rally Dakar deixava em segundo plano os relatos dos habitantes que ali moravam. Era como se seu talento pictórico prescindisse das entrevistas para revelar o grande nada que um evento daquela proporção deixa às populações pobres pelas quais passa. Em Ao Longo dos Anos, também interessa ao diretor deter-se mais nas consequências do que no evento em si; no caso, a falência de uma pequena fábrica têxtil, no interior da Áustria, em 2004. Sua ambição, no entanto, é muito maior, e cada pessoa em cena torna-se uma personagem dotada de completa subjetividade – mas não se engane: será ingrato tentar encontrar aqui atalhos à empatia ou ao sentimentalismo.  

A ideia é, por uma década, reunir-se uma vez ao ano com os poucos funcionários que trabalhavam nos últimos dias desta fábrica, inaugurada em 1850. Se durante muito tempo sua produção fora relevante à economia da cidade de Waldviertel, seu abandono é a ilustração absoluta do perverso efeito da globalização à vida nas pequenas comunidades. Entre colinas, a tristeza esmagadora de sua presença parece ligada à situação de seus antigos trabalhadores, que agora veem-se, em alguns casos pela primeira vez em suas vidas, tendo de procurar emprego, e isso em meio à crise financeira pela qual a Europa ainda passa. 

Após um início típico, no qual Geyrhalter exibirá sua reconhecida habilidade observacional ao mostrar quase que institucionalmente os meios de produção da confecção e a rotina dos empregados, uma sucessão de entrevistas passa a se desenrolar. Nelas, a timidez e a relutância iniciais vão, lentamente, cedendo. Tal procedimento, sabemos, não é novo, e tem como exemplo mais conhecido a The Up Series, iniciada por Michael Apted em 1964. Mas o que poderia tornar-se uma muleta narrativa – afinal, um experimento desta sorte poderia facilmente causar interesse, independente da pessoa ou do grupo a ele submetido -, com Geyrhalter estamos distastes da sedução pura e simples do dispositivo. Pelo contrário, não sabemos o nome dessas pessoas e, entre uma entrevista e outra, entre determinado ano e o próximo, vêm e voltam aflições, medos e conquistas temporárias que, registradas à maneira do diretor, só aos poucos passam a ter alguma linearidade (e esta, quase sempre, revela-se fatalmente fragmentária). 

Em um momento do filme, uma mulher que antes demonstrara plena satisfação como a contadora da fábrica, encontra-se vendendo produtos variados de porta em porta. Ela viaja às cidades vizinhas e, durante o percurso, há uma observação do diretor sobre o quanto ela mudou: antes reservada, agora fala sem parar. Sua questão é se ela acredita na possibilidade de que nossa personalidade seja formatada pelo nosso ofício. A resposta é afirmativa e, sempre que ela volta em cena, a vemos com a mesma disposição, a mesma empolgação naquilo em que está envolvida, mesmo todas elas provando-se, ano após ano, provisórias. Se ela de fato acredita em sua resposta, a efemeridade das possibilidades atuais impõem uma desoladora realidade. No outro polo, temos um homem a quem somos apresentados fazendo um elogio à solidão de seu posto na fábrica. Tímido, invariavelmente com os olhos cerrados, vive com a mãe e nunca pensara em ter de encontrar outro serviço. Dez anos depois, nunca, de fato, o terá tido, passando os seus dias arrancando, por vontade própria, as raízes de árvores destruídas por uma tempestade. Não seria esta uma certeira analogia sobre essas pessoas e a esse país, cujos rumos há pouco pareciam sólidos, perenes, imperturbáveis? 

Nada disso é dito. Não poderia ser. E é entre essa severa condução formal e a ternura que dela, às vezes, emana, que estão a surpresa e a grandeza de Ao Longo dos Anos.   

Bruno Cursini

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