Sabor da Vida
Sabor da Vida (An, 2015), de Naomi Kawase
Não entendo porque alguns cineastas saem de moda. Quando isso acontece, primeiramente deixam de ser procurados por alguns críticos mais antenados com as últimas tendências (esses são geralmente mal antenados, por sinal). Depois, os filmes da vítima param de gerar filas, não são mais tão procurados e, eventualmente, nem são mais programados pelos festivais.
Naomi Kawase ainda está no primeiro nível, mas há o risco de passar logo para o segundo, o que seria prematuro demais. A ideia de que alguém deixa de ser interessante por perder o bonde estético cinematográfico me parece estapafúrdia, por um simples motivo (existem outros motivos, mas para encurtar o papo vou mencionar apenas um): o que seria esse bonde estético? Num momento, é a câmera-pernilongo dos Dardenne, no outro, a câmera-cachorro de Brillante Mendoza, no meio disso, a frieza mal enquadrada dos romenos ou o cuidado formal dos últimos dois filmes de Nuri Bilge Ceylan. Nada se pensa sobre a adequação entre a escolha formal e o material que se quer filmar, e isso, devemos dizer, diz respeito à grande parte do sucesso ou fracasso do filme.
E Kawase, onde fica nisso? Ela fez parte do cinema oriental que despontou no início do século, mais precisamente entre 2000 e 2006, que procurava uma ideia de fluxo, uma continuação do que perseguia Claire Denis nos anos 1990, que por sua vez é uma continuação de Pasolini e de grande parte do cinema dos anos 60, que por sua vez… (deu para seguir o raciocínio, né?).
Esse cinema baseado na câmera na mão e num trabalho nem sempre cuidadoso (melhor dizer: quase nunca cuidadoso) com lentes longas e objetos e cenários desfocados encontra em Kawase uma de suas melhores traduções. Ela consegue exigir o máximo de seus operadores e diretores de fotografia para que os planos não fiquem demasiadamente soltos. Ou seja, somente ela e alguns poucos diretores conseguem fazer com que essa proposta estética, que quase sempre me incomoda porque tem gerado muitos filmes ruins, não atrapalhe. Em seus melhores trabalhos, ela promove até um feliz casamento entre estilo e narrativa. É o caso deste belo Sabor da Vida.
O que temos, afinal, é um caso de transmissão de sensibilidade para a vida, de uma senhora com cerca de 70 anos (que representa a tradição, o apreço aos valores espirituais, às conversas com o feijão e com os animais) para uma adolescente (que poderia representar a sociedade em transformação, o abandono da alma, a tendência ao supérfluo e ao americanizado). E a transmissão atinge em cheio o homem que proporcionou esse encontro, Sentaro, gerente de uma pequena loja de dorayakis, pequenas panquecas recheadas com pasta doce de feijão. Digo poderia, no entre parêntesis acima, porque quem melhor representa essa sociedade em transformação é o sobrinho da dona da lojinha gerenciada por Sentaro, personagem de aparição relâmpago, mas catalisadora de uma mudança definitiva na postura de Sentaro.
Os ingredientes (do filme, não do doce) são perigosos: Tokue, a velha senhora, tem lepra, e por isso tem também a saúde muito fragilizada. Sentaro trabalha na lojinha porque o dono pagou uma dívida que ele tinha. Ou seja, ele é obrigado a trabalhar com o que não gosta (doces). Tokue faz uma deliciosa pasta de feijão, mas quando os clientes descobrem que ela tem lepra, deixam de consumir os saborosos dorayakis. Ela se toca e deixa de ir ao trabalho. Quando Sentaro e a adolescente vão visitar Tokue, que vive em um lugar reservado aos leprosos, o risco de passar o limite do piegas é grande. Mas Kawase se sai dignamente bem. Nos momentos mais fortes, ela não usa música. Deixa apenas que o tom de voz dos atores e suas expressões ou o trágico e esperado acontecimento conduzam a emoção. No ápice da tristeza, o silêncio. Quando usa aquele velho pianinho meloso típico do cinema japonês, o faz com parcimônia, muito distante da sacarose que Spielberg promove em Ponte dos Espiões. E no momento A Felicidade Não se Compra, tela escura, começo dos créditos.
Sentaro finalmente aprende o essencial. Aprende a ver e ouvir as maravilhas do mundo: o vento nas árvores, os pássaros, as belas flores das cerejeiras, as crianças brincando… Muitos podem achar melodramático, como se isso fosse pecado. Sabor da Vida é, na verdade, um primor em contenção.
Sérgio Alpendre
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