Ano VII

As mil e uma noites – VOL.1

terça-feira out 27, 2015

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As Mil e Uma Noites – Volume 1, O Inquieto (2015), de Miguel Gomes

Bom, como este é possivelmente o filme-evento desta Mostra e esta é apenas a primeira parte de uma trilogia, seguem apenas algumas observações gerais sobre o diretor e esse Volume 1:

1. Miguel Gomes tornou-se, com Tabu, um destes cineastas que, se não chega a atingir o público médio do circuito dos cinemas dito de arte (pensemos em Michael Haneke, nos irmãos Dardenne, em Lars von Trier), já conseguiu fazer de seu nome uma grife em festivais mundo afora. Junto a Apichatpong Weerasethakul (de quem emprestou o diretor de fotografia, Sayombhu Mukdeeprom), o português é possivelmente o mais badalado realizador abaixo dos cinquenta anos e, salvo engano, foi esse mesmo o título que ganhou em uma votação da revista Cinema Scope, há algum tempo. Ao ver seus filmes, pode-se deduzir que tais láureas devem deixá-lo bastante envaidecido, talvez nunca antes tão claramente quanto neste prólogo, que leva algo como a primeira meia hora, ou mais, de As Mil e Uma Noites – Volume 1, O Inquieto. Interpretando a si mesmo, ele expõe (não sem gracejo e, acredito, alguma verdade) as perturbações de ser um artista querendo abarcar, simultaneamente, todos os tormentos e belezas do mundo. Se antes, em Aquele Querido Mês de Agosto (ainda, de longe, seu melhor trabalho, no qual o frescor do fazer cinematográfico parece realmente legítimo), as angústias de seu personagem tinham um objetivo concreto, a conclusão de um filme, aqui o diretor/artista coloca-se em uma posição infinitamente superior, tomando para si uma obrigatoriedade em elucidar o estado das coisas. É claro que isso é problematizado de maneira bem-humorada, o que nos leva à segunda destas observações;

2. Um talento inequívoco de Miguel Gomes é sua escrita, também nos diálogos, mas sobretudo na utilização do voice over. Voltemos a Tabu, um filme dividido em duas partes bastante diferentes (sem contarmos o prólogo): enquanto na primeira parte temos uma narrativa bastante pobre em imagens e eventos, a segunda surge com uma beleza efetiva, justificando parcialmente sua aclamação. Podemos (e talvez tenha sido mesmo esta a intenção do diretor) acreditar que tal descompasso sirva para explicitar as aventuras de um passado romântico contraposto a um presente sem graça, vazio. Mas também podemos acreditar que o que este segundo momento tem de tão sedutor são, sobretudo, as palavras, as frases narradas, que foram escritas, segundo o próprio Gomes em entrevista à Interlúdio, durante a montagem. O que fica do filme, portanto, é menos aquilo que fora mostrado do que aquilo em off, as coisas que jamais podemos ver.

3. Para além das palavras, existe novamente a questão da montagem, pois a segunda coisa que se pode notar (e admirar, variando de filme a filme) em sua filmografia é o senso de uma obra em construção, pela qual o espectador vai conhecendo e explorando aquilo que vê (ou escuta) à medida em que o próprio realizador a cria. Esse caminho sinuoso pode surgir ora encantador, por sua bagunça articulada, ora mera e falsamente aleatório, com uma autoconsciência difícil de ser negada. Ao se propor um trabalho que ultrapassa as seis horas, possivelmente Gomes nos dará momentos de ambos mas, neste primeiro volume, ficamos majoritariamente com o segundo caso, a começar pela sua própria declaração de princípios: fazer algo maravilhoso mas sem ignorar as atribulações do presente. Em todos os casos, o diretor se sai amplamente melhor quando fica nos problemas sociais e políticos sob um viés mais dado ao documental e ensaístico do que quando pende ao deslumbramento, à magia, ou, poderíamos dizer?, ao cinema. Voltamos, assim, a uma questão próxima àquela de Tabu: além de algumas ideias e depoimentos, de fato, interessantes e comoventes, passado apenas um dia de sua exibição, quais destas imagens ainda temos em mente? Se antes pensávamos em algum crocodilo ou em alguma galinha, apesar do zoológico aqui exposto, é difícil termos qualquer coisa para se agarrar.

4. O terceiro elemento de interesse (após a narração e a montagem) no cinema de Gomes são, sem dúvida, os relatos. Esse primeiro As Mil e Uma Noites aproxima-se mais de Aquele Querido Mês de Agosto do que de Tabu e A Cara que Mereces em parte (mas não somente) por causa deles. Seus capítulos (são três, certo?) têm como ponto de partida eventos que aconteceram em Portugal durante cerca de em ano. O procedimento de Gomes é, grosso modo, ir ao local, filmar à distância, entrevistar e reencenar o ocorrido com os locais e/ou com atores. As encenações (ou as ficções por elas influenciadas) estão próximas das famigeradas “simulações” televisivas de pequenos crimes ou, pior, dos canais de humor do YouTube. O desleixo com que estas anedotas são mostradas parece ser ignorado pelo absurdo de suas situações: em uma reunião à mesa de um restaurante, um grupo de poderosos é mediado por um tradutor. As piadas com os sotaques e suas traduções simultâneas levam os enquadramentos precários da cena a serem, aparentemente, nem perdoados, mas completamente ignorados pelo público. Felizmente, nas suas camadas mais cruas, clandestinas, Gomes se sai muito melhor, usualmente filmando suas entrevistas com sutileza e habilidade admiráveis. Pensemos no último – e melhor – segmento, aquele do banho dos magníficos: um professor de natação teme não conseguir gente suficiente para o tal banho de Ano Novo, que supostamente traz renovação e esperança àqueles que a ele se sujeitam. São dois os problemas: a meteorologia desfavorável e a desolação dos habitantes locais, muitos deles recém-desempregados. No primeiro destes testemunhos, a câmera vai vagarosamente aproximando-se do rosto do entrevistado. A comoção da cena é inegável e sua elegância surpreende, afinal, estamos já há quase duas horas de projeção e, ereções intermináveis e zombarias metalinguísticas à parte, eis o primeiro momento em que um real desconforto nos assombra. E, se o que Gomes declaradamente almejava era simultaneamente emocionar e confrontar, aqui vai o dissabor e a beleza necessários a isso. E o fato de não haver dromedário algum em quadro só pode significar alguma coisa.

Bruno Cursini

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