O Apóstata
O Apóstata (El Apóstata, 2015), de Federico Veiroj
Terceiro longa de Federico Veiroj, O Apóstata é uma lição em matéria de desconcerto. Desde o início, é difícil prever como será o próximo plano, a próxima cena ou sequência. Isto porque Veiroj aposta na confusão dos registros, entre o real e o imaginário, assim como, já na primeira sequência, provoca um pequeno distúrbio na sequência dos eventos (a engenhosidade é que esse distúrbio não atrapalhará em nada o desenvolvimento do relato, e talvez seja logo esquecido). Estamos diante de um pequeno filme incomum.
Após a descoberta do amor com Acne e a melancólica despedida cinefílica de A Vida Útil, Veiroj vai a Madri mostrar um jovem – Gonzalo Tamayo – que procura se tornar apóstata, ou seja, procura retirar dos registros o seu batismo na igreja católica. Isso num país extremamente católico como a Espanha. Desconectar-se dessa maneira de uma das instituições mais sagradas do país é mais do que apostasia, parece uma heresia aos olhos da tradição local, que usa como arma a burocracia, esse eficaz instrumento de massacre da alma.
A premissa é meio boba, mais afeita a um curta do que a um longa. Mas é aí que entra a habilidade do diretor, capaz de nos fazer esperar por 80 minutos até o desfecho do drama de Gonzalo, de acompanhar seus delírios, suas aventuras como se fossem as maiores do mundo (sendo que um dos trunfos de Veiroj é fazer com que não saibamos, por vezes, o que é delírio e o que é aventura).
Gonzalo tem três breves casos amorosos no filme (sem que hierarquizemos os que são reais e os que não são, se é que todos não são reais ou irreais). Um deles é com sua prima, seduzida por ele como num sonho, sem necessidade de jogos e floreios, como no reino animal (o que nos faz pensar que é delírio). Ele também arrasta a vizinha para seu apartamento, dá-lhe um beijo, ela parece interessada, mas diz adeus. Ele se despede também. Um romance proibido? Um sonho interrompido? A dúvida absolve a despedida um tanto estranha do casal mais efêmero do filme.
Num outro momento, ele está numa mansão onde todos estão nus. Para ficar em pé de igualdade, ele também tira a roupa, e passa a andar no meio dos convidados. Todos o observam, e vão trocando informações secretas sobre ele, como se ele não fosse bem-vindo ali, como se não pertencesse àquele lugar. Até que a corrente do mal chega em uma mulher que está de costas, e quando se vira parece com sua mãe, e é justamente sua mãe que o acorda. Eles estão no carro, a caminho de um encontro familiar na casa dos avós.
As coisas são mesmo efêmeras em O Apóstata. No ônibus de viagem, escrevendo à mão o discurso com o qual pretende confrontar a igreja, uma mulher de meia idade o seduz. Ele, autista, demora a soltar a caneta, insistindo numa escrita de caligrafia prejudicada pelo assédio. No corte, ele já está debruçado por cima dela. Cena solta, que reforça o caráter episódico do filme (e por ser episódico, tem ainda mais valor sua aparente unidade).
Algo, no tom, entre o Carlos Saura setentista e o Bellocchio de A Hora da Religião, Veiroj imprime um ritmo sempre agradável. Se carrega um pouco mais no humor do que seus modelos, é para reforçar o inusitado do relato, a ridícula vontade de Gonzalo e sua inaptidão para viver o cotidiano. É como se ele, ao procurar romper seu elo com a religião, perdesse também o contato com a razão, com sua consciência, e passasse a viver em outra dimensão.
O Apóstata é tudo que um diretor qualquer do cinema independente americano gostaria de fazer (penso no fracassado Eu Estava Justamente Pensando em Você, de Sam Esmail, ou em Inquietos, de Gus Van Sant).
Sérgio Alpendre
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