Carlos Manga
A carreira e as palavras de Carlos Manga
Em homenagem ao grande diretor brasileiro Carlos Manga, falecido em setembro de 2015, republico aqui um perfil/entrevista feito em 2010 para a Programadora Brasil, e nunca publicada online.
Sérgio Alpendre
Carlos Manga é uma instituição do cinema e da televisão. Sua importância para a qualidade da produção audiovisual é incomensurável, e não se restringe apenas às comparações com obras brasileiras. De fato, o diretor possui uma carreira cinematográfica digna de um mestre, e na televisão manteve o padrão elevado de sua produção cinematográfica, ajudando a dignificar as emissoras nas quais trabalhou.
Autor de algumas das melhores comédias dos anos 1950, obras como Nem Sansão nem Dalila (1954 – Programa 178), Matar ou Correr (1954), De Vento em Popa (1957) e O Homem do Sputnik (1959), todos produzidos na Atlântida Empresa Cinematográfica do Brasil S.A., sua primeira casa, Manga se estabeleceu rapidamente como um dos grandes diretores do cinema brasileiro, depois de ter entrado na produtora para trabalhar no almoxarifado e dirigido alguns números musicais em filmes de outros diretores.
Após o fim da Atlântida, começou a trabalhar na televisão, inicialmente em comerciais de 30 segundos, mas também dirigindo programas musicais e humorísticos para a TV Rio, sendo contratado alguns anos depois pela TV Excelsior. Foi um dos precursores do videotape, utilizando técnicas semelhantes às do cinema, editando fitas e suprimindo erros de gravação da primeira versão do programa Chico City.
Dirigiu, ainda nos anos 1960, programas elogiados como O Riso é o Limite (sua estreia na televisão), Vovô Deville, A Cidade se Diverte, Dois na Balança, entre outros. Criou programas polêmicos como Preto no Branco e Quem Tem Medo da Verdade?, ambos exibidos pela TV Record em plena ditadura militar.
Contratado pela Globo em 1980, desenvolveu uma carreira de sucessos na emissora, com a segunda versão de Chico city, Os trapalhões; minisséries como Agosto, Um Só Coração, Memorial de Maria Moura, Engraçadinha… Seus Amores e Seus Pecados, e novelas: Anjo Mau, Torre de Babel e Eterna Magia.. Dirigiu também programas e seriados como Domingão do Faustão, Sandy e Junior, O Sítio do Pica-pau Amarelo e Zorra Total.
Sua obra cinematográfica foi retomada, após um hiato de doze anos, com dois filmes de meados dos anos 1970: o explosivo O Marginal (1974), feito sob influência do cinema moderno e da narrativa alinear de boa parte da obra de Fellini, e Assim Era a Atlântida (1975), que compila alguns trechos de clássicos da chanchada. Seu último trabalho em cinema aconteceu quando sua carreira já estava mais do que estabelecida na televisão: Os Trapalhões e o Rei do Futebol, realizado em 1986, marca o encontro do grupo de humoristas com Pelé. Marca, também, a consolidação cinematográfica de uma grande amizade com Renato Aragão, o grande Didi, principal humorista de Os Trapalhões.
Paixão e gratidão, nas palavras de Carlos Manga
Uma intensa paixão pelo cinema é revelada pelo diretor. Paixão a que está ligada uma profunda gratidão a parceiros significativos de sua trajetória, especialmente àqueles com quem trabalhou na Atlântida. Seus olhos marejam-se ao relembrar esses tempos, a amizade de todos no estúdio, a “família” de técnicos criteriosamente escolhidos por Luiz Severiano Ribeiro Jr., empresário que assumiu o controle da Atlântida mudando o rumo da companhia e iniciando uma fase de grande sucesso: “Severiano era um homem muito justo, sério, e por isso não muito querido. O demagogo é querido neste país, o que diz a verdade, não. Ele queria fazer comédias, achava que era o retrato do brasileiro. E não estava enganado. Montou uma família, com técnicos escolhidos por ele. Não tinha o procedimento profissional de hoje, mas ninguém ficava esperando, eram todos assalariados, algo muito raro em cinema.”
Dentro dessa “família”, Manga dá um destaque especial a José Rodrigues Cajado Filho, cenógrafo, roteirista e diretor que entrou para a Atlântida logo no começo, em 1944, e a quem enaltece como um dos maiores artistas brasileiros, infelizmente esquecido: “Era um gênio, o homem que inventou a chanchada.” É contagiante a maneira como ele relembra o momento embrionário de um clássico: “estava com ele no carro, procurando locações, não lembro mais para que filme, quando de repente ele me pede para parar. Diz empolgado:
– Olha aquilo ali em cima da igreja, um galo, e logo abaixo norte, sul, leste, oeste. Você tira o galo e os escritos e o que sobra? O Sputnik.
– Que cai no galinheiro do Oscarito – completo em seguida”
É o princípio da trama de O Homem do Sputnik, de 1959, um dos maiores sucessos de Manga, e também um dos filmes preferidos por ele, entre os que dirigiu. “É uma comédia inteligente, refinada. A piada final com o português foi ideia minha, pois minha família é toda portuguesa [de Trás-os-Montes], foi uma maneira de homenageá-la. Além disso, meu pai vivia cantando essa música”. Manga canta, lembrando perfeitamente, tanto tempo depois, a canção que o português entoava no filme.
É emocionante a maneira como o diretor agradece seus parceiros: “Uma das coisas que meu pai me ensinou como um grande valor é a gratidão. Eu sou Carlos Manga por causa de duas pessoas: Luiz Severiano Ribeiro Jr. e José Cajado Filho. Um me deu tudo, outro me ensinou tudo. (…) Acrescente aí: Waldemar “Didi” Noya, que me ensinou o que é montagem, que montar um filme é dar ao público o que ele quer ver naquela hora. Devo tudo a esses três.” Mais tarde acrescenta um outro nome, também injustamente esquecido: Herbert Richers, técnico da Atlântida que montou sua própria produtora (Produções Cinematográficas Herbert Richers S.A.) na segunda metade dos anos 1950, realizando chanchadas e lançando os comediantes Ankito e Ronald Golias.
Espaço para a crítica no cinema da Atlântida
Carlos Manga foi levado à Atlântida por seu amigo, Cyll Farney, àquela época já um ator de prestígio na empresa. Ao entrar no estúdio, deparou-se com seu ídolo, Watson Macedo – diretor já responsável por alguns filmes na produtora (Este Mundo é um Pandeiro, O Mundo se Diverte, entre outros) – serrando um pedaço de madeira. Nesse momento percebeu o espírito com que trabalhava a “família” de Severiano Ribeiro, que servia ao cinema sem frivolidades ou empáfia.
Manga estreou na direção com Dupla do Barulho (1953), em que Grande Otelo, dentro da trama, se rebela com a condição de escada para Oscarito e abandona o show, ecoando um sentimento do próprio Otelo em relação à sua parceria com Oscarito na vida real. O primeiro grande sucesso veio com seu segundo trabalho na direção: Nem Sansão nem Dalila (1954), uma sátira que aproveita as confusões clássicas de uma viagem numa máquina do tempo. Suas lembranças desse trabalho insinuam uma tendência à politização da comédia. “Nunca fui muito ligado a partidos, mas nessa época eu era um pouco canhoto. Tinha problemas com a figura do ditador. Aproveitei o gênio de Oscarito para imitar o discurso de Getúlio Vargas.”
Sobre a baixa incidência de números musicais em seus filmes, se comparados às chanchadas de outros diretores, Manga explica: “Fiz meu primeiro filme em abril, não tinha nada a ver com o Carnaval. O que se apossou de mim foi a crítica aos filmes americanos. Porque vi que aquilo era uma mentira, uma terrível enganação do próximo, então comecei a diluir a crítica ao Brasil também, aproveitando que o Cajado queria exatamente isso [esse lado mais crítico].” E continua, lembrando a sofisticação de alguns de seus trabalhos: “De Vento em Popa é uma de minhas melhores comédias – era comédia, não chanchada; a chanchada procurava a graça fácil, este filme não, era situação, só.” Ele entoa a música que Oscarito canta para Zezé Macedo enquanto esta toma banho, em um trecho famoso desse filme. “A letra eu inventei na hora.”
Poucos sabem que Manga quase realizou uma cinebiografia de Carmen Miranda. É com intensa emoção que ele fala dessa possibilidade não concretizada: “Renata Fronzi [atriz de diversos de seus filmes] achava que minha coreografia não era copiada de ninguém, era minha, e por isso ela gostava. Um dia ela me apresentou a Carmen Miranda. Ficamos um dia inteiro com ela, cantando, rindo e contando piadas. Carmen me pediu para fazer a vida dela no cinema, pois segundo ela eu era o que melhor sabia falar de quem canta, de quem dança, de quem é brasileiro. Mas por razões diversas, não consegui fazer. É uma pena. Eu tinha muito o que contar sobre ela. Minha biografia seria contundente. Eu ia mostrar uma Carmen Miranda vendendo chapéu e cantando ‘Taí, eu fiz tudo pra você gostar de mim’ [canta o diretor], morando num bairro com prostitutas e se dando bem com todas elas.”
Sua relação com a Atlântida foi registrada em filme anos mais tarde, no documentário nostálgico Assim Era a Atlântida (1975), dirigido por ele, que intercala depoimentos de Grande Otelo, Adelaide Chiozzo, Anselmo Duarte e outros com longos trechos dos diversos sucessos da companhia. “Era uma época fantástica, um clima de amizade bem diferente de hoje, com toda a concorrência que há”.
Mas Carlos Manga não brilhou apenas na Atlântida. Fez, na São Paulo dos anos 1970, depois de uma passagem pela Itália (de três a quatro anos), O Marginal, que é o oposto das chanchadas, mas que possui a marca de seu artesanato sólido, incorporando técnicas de roteiro e direção que havia aprendido em sua estadia em Roma. Nesse período passado na Itália, Manga conheceu Fellini, e acompanhou parte das filmagens de Amarcord.
Filmado na Boca do Lixo, com Tarcísio Meira, “em sua melhor interpretação para o cinema, como ele mesmo me disse”, O Marginal é um dos trabalhos de que Manga mais se orgulha: “Escrevi o roteiro com o Lauro Cesar Muniz. Toda vez que eu queria fugir um pouco da história ele não deixava. Dediquei-me de corpo e alma a esse trabalho. Filmei todo na Boca, pois estava contando uma história de lá, e filmei no meio da rua, com a clientela andando, nada foi armado.”
Atualmente Carlos Manga deseja voltar ao cinema, assim que terminar seus compromissos com a televisão. Para ele, “cinema é amor, e eu tenho muito amor para dar”.
O cinéfilo espera, ansioso, por esse retorno.
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