Ano VII

Três filmes de Truffaut

segunda-feira out 19, 2015

atiremnopianista

Três filmes de François Truffaut

Por Sérgio Alpendre

Jean-Luc Godard foi o grande homenageado da última edição da Interlúdio. Parece então uma provocação, embora seja mais um contraponto ou uma simples justiça, publicar um texto sobre filmes de seu desafeto de Nouvelle Vague, François Truffaut, logo na edição seguinte. Explico o uso da palavra desafeto: Godard e Truffaut se afastaram pouco a pouco a partir de maio de 1968, quando Godard acreditava que a única via era a do cinema engajado, e o afastamento se tornou ríspido quando Godard chiou do teor mentiroso do filme oscarizado de Truffaut, A Noite Americana. A situação piorou ainda mais quando Godard deu uma entrevista, em 1978, soltando o verbo e dizendo coisas duras a respeito de seu antigo amigo e parceiro. Truffaut não respondeu na hora, mas ao receber, dois anos depois, um convite de Godard para uma entrevista em sua casa na cidade de Rolle, respondeu finalmente com uma carta terrivelmente ácida, completada pouco depois em uma entrevista para a Cahiers du Cinéma. Até a morte de Truffaut, a animosidade entre eles se arrefeceu, mas não deixou de existir. Alguns cinéfilos apaixonados por um ou pelo outro cerram fileiras em defesa de seu ídolo e partem para o ataque contra o outro, o que a meu ver mostra quão equivocada pode ser a cinefilia.

O fato é que ambos os diretores são grandes e estão bem representados em DVD no Brasil, apesar de Truffaut levar clara vantagem na qualidade dos lançamentos em DVD (em blu-ray, salvo engano, só Godard está representado, com Acossado). A coleção “A Arte de François Truffaut” surge então para sanar algumas lacunas, com filmes que antes existiam apenas em cópias toscas (A Noite Americana é a exceção).

Os três filmes dessa coleção não figuram entre os mais festejados por críticos e cinéfilos. Atirem no Pianista, rodado em preto e branco e no formato scope, foi um tremendo fracasso em sua época (Michel Marie conta dos falsos amigos que se afastaram de Truffaut por conta disso); A Noite Americana foi mal visto por Godard, e muitos foram no embalo, chamando o filme de papa-Oscar (de fato, papou o de melhor filme estrangeiro); e De Repente Num Domingo é um divertimento aparentemente sem grandes pretensões, apesar de contar com um ator de primeira grandeza no circuito franco-italiano: Jean-Louis Trintignant. Estamos distantes, então, da série com Antoine Doinel, que começa com o muito amado Os Incompreendidos, ou de Jules et Jim. O Truffaut presente na coleção é um Truffaut para iniciados (no caso dos filmes em preto e branco) ou para quem não tem preconceito contra filme oscarizado (o filme é bom, afinal).

Seria mesmo equivocado subestimar os encantos desses filmes menos celebrados. A carreira do diretor é repleta de longas menos ambiciosos, mas ele nunca errou, de fato. Sempre há algo de sublime em seus filmes, até mesmo no mais fraco que realizou, A Sereia do Mississipi, ou em filmes feitos com um olho voltado para possíveis premiações (ou ainda, numa ironia, voltado para uma atualização da velha qualidade francesa) como O Último Metrô.

Atirem no Pianista é um dos maiores modelos da Nouvelle Vague e o grande filme da coleção. É a materialização cinematográfica de diversos dos preceitos que os jovens turcos (sobretudo Truffaut, Godard, Rivette e Rohmer) defendiam quando eram críticos da Cahiers du Cinéma. É uma história de gangsters totalmente incomum, baseada em livro de David Goodis, com Charles Aznavour como um pianista que se envolve com assassinos. Incomum e, vale dizer, formidável. Uma das maiores injustiças daquele período. O grande momento do filme é aquele em que Aznavour tenta pegar na mão de Marie Dubois enquanto ambos andam juntos pela rua. Ela recolhe a mão, meio hesitante. Acompanhamos então o fluxo de pensamento dele, seu receio de ter desagradado, sua careta de vergonha de si mesmo pela audácia, careta que ela flagra ao olhar para ele no momento exato, e, ao flagrá-lo, dá uma das risadas mais espontâneas que uma câmera já registrou numa ficção.

A Noite Americana não é a bobagem mentirosa que apregoam os godardianos. Truffaut sempre foi romanesco. Logo, sua versão de como é fazer um filme, a vida do cinema se misturando com a vida pessoal, as agruras que torturam um diretor (“para quem tudo é perguntado”) é extremamente romantizada e apaixonada, o que ainda contrariava a turminha que defendia sempre um cinema de intervenção política. Estávamos em 1973, e os efeitos de maio de 1968, embora mais fracos, ainda se faziam presentes na sociedade parisiense. Daí a resistência de alguns a este belo filme. Um feito ao menos não pode ser ignorado: a bela Jacqueline Bisset nunca esteve tão bela como nesse filme.

De Repente Num Domingo data de uma outra época. O filme é de 1983, e praticamente serve de veículo para sua esposa, a atriz Fanny Ardant (que já tinha feito com Truffaut o soberbo A Mulher do Lado, de 1981). Ela é a secretária do agente imobiliário Julien Vercel (Trintignant), que está sendo acusado do assassinato da esposa e do amante. Como ele está foragido, é ela quem busca provar sua inocência. A inspiração hitchcockiana é evidente no tema do falso culpado, a do noir está impressa por todo o filme; graças a elas, Truffaut, em seu trabalho derradeiro, realiza um belíssimo exercício em preto e branco. Engana-se, contudo, que a influência de Hitchcock (ou a do noir) contamina todo o filme. Toda a resolução da trama é praticamente uma carta de princípios do cinema de Truffaut. É seu último filme, mas pela jovialidade parece um dos primeiros.

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