Ano VII

Pânico

segunda-feira out 19, 2015

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Pânico

Por Calac Nogueira

É a última fronteira, o western de saiotes que se autoparodia até a embriaguez, o filme de gênero que recapitula todos os outros com uma virtuosidade derrisória, a linha vermelha a partir da qual seu bilhete não tem mais validade.

Louis Skorecki sobre Rio Bravo

 

O que resta depois que o cinema entrou para dentro de si mesmo? Depois que o mundo desapareceu, e tudo o que resta é este universo embalado a vácuo, o mito do high school suburbano, estes personagens insípidos, pastiches insípidos (da mocinha virgem, do policial atrapalhado, da jornalista arrivista), estes adolescentes espinhentos ou formosos mas sempre um pouco burros, um pouco idiotas, e que podem por isso se substituir uns aos outros sem dificuldade, uns assumindo o papel de vilão, outros de vítima — e depois, o que resta?

Se Pânico pode ser considerado de alguma forma uma “fronteira final” (destes anos de pós-pós-pós-cinema cujo início Skorecki anuncia em Rio Bravo) é porque nele o mundo já não existe mais, não há mais o “fora”, esta vibração do mundo exterior que foi a marca de todo o cinema moderno (que para Skorecki já é em si mesmo um pós-cinema, que fique claro). E se não há mais o “mundo” não há mais Mal: não há mais vilões em Pânico, apenas uma violência banalizada e esvaziada, o slasher erigido como sistema. Não há antagonismos (entre bem e mal, entre mocinha e vilão), apenas um circuito físico onde os personagens, portando máscaras, interpretam papéis (de Ghostface, mocinha, policial etc.). Um princípio de aleatoriedade e gratuidade se instala aí, e não à toa os assassinos revelados no fim de cada filme da série são sempre os mais improváveis e estapafúrdios (como who-done-it Pânico funciona grosseiramente, cheio de pistas falsas). Julga-se que Craven quer falar de alguma patologia juvenil contemporânea ou cinefílica, dos “nossos tempos”  (o xerife: “20 years ago I’d say ‘Not a chance’, but these kids today…”) ou da hipótese de que o assassino pode ser “qualquer um”. Não é que esses discursos não estejam lá. Mas eles se perdem em meio ao virtuosismo paródico do filme, se esfacelam na sua vagabundice flagrante, no seu desinteresse em articular conceitos. O projeto de um horror político pertence definitivamente ao cinema moderno, e em 1996 ele já é um fato passado.

O que resta, então? Resta o essencial. Craven conseguiu construir aqui um dispositivo, uma maquinação. O assassino primeiro telefona e se anuncia. O telefone já existia num filme como Black Christmas (1974), mas apenas com Craven ele se torna parte efetiva de um sistema. O telefonema acua a vítima. A partir daí, o assassino pode aparecer de qualquer lado, em qualquer parte do cenário, por esse mundinho artificial e vazado do filme. Acompanhamos esses longos segundos de terror sensual da vítima acuada aguardando a aparição do assassino (nós sabemos que ele vai aparecer, a questão é quando e de onde). Então ele vem, e normalmente uma luta física se desenrola: o assassino é estabanado, frequentemente apanha, cai. Ele pode ser abatido pela vítima, mas é apenas para desaparecer em seguida num golpe de vista antes que possa ser desmascarado (este truque de montagem em forma de elipse, salvo engano, ocorre pelo menos uma vez em cada um dos quatro filmes da série). Essa dinâmica de aparição e desaparição de um personagem veloz e anônimo, o terror sensual do anúncio telefônico culminando na luta física, a repetição, em suma, deste sistema com pequenas variações internas deixam claro que o que guia Pânico não é tanto uma narrativa e seus personagens, mas um princípio de mise en scène.

Metteur-en-scène, mestre deste universo fechado dos filmes, Craven pôde aplicar nele algumas variações ao longo da série: o episódio 3 é barroco, baseado na artificialidade dos cenários (dos estúdios de um set de filmagens, da casa “mal-assombrada” do final); o 4, possivelmente a obra-prima da série, começa num espiral alucinado do filme-dentro-de-filme, possuindo as cenas mais refinadas, enquanto os sobreviventes envelhecidos Sidney, Dewey e Gale vagam pelo mundinho adolescente do filme. É também o único filme da série que, em seu fim, chega a esboçar uma vilã dotada de alguma personalidade. (O episódio 2, exceto por um ou dois momentos de brilho, permanece um filme bastante esquecível).

Em 1996, Craven já havia realizado aquelas que são possivelmente suas duas obras-primas: A Hora do Pesadelo (1984) e Criaturas Atrás das Paredes (1991). Com esses dois filmes, ele já havia dado ao mundo um grande vilão e seu statement político definitivo sobre a América e sua fundação. O que resta a um diretor quando não há nada mais a se criar e nada mais a se dizer? O puro exercício da mise en scène, a maestria e a manipulação de seu mundinho particular, como um compositor que, criando uma forma, se põe a aplicar nela pequenas variações (não é por acaso que, diferentemente do que ocorre na maioria das franquias de horror, Craven dirigirá aqui todos os episódios).

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