Ano VII

La Sapienza

segunda-feira out 19, 2015

lasapienza

 

La Sapienza (2014), de Eugène Green

Lição de arquitetura

A qualidade maior do cinema de Eugène Green é sua clareza. Se o projeto de “cinema franciscano” acenado em Le Monde vivant (2001) foi em parte modificado pelo encontro do cineasta com novas paisagens (primeiro Lisboa, agora a Itália), as imagens de Green permanecem, contudo, sem ambiguidade.  Cada plano do diretor possui um traçado interno preciso, de uma limpidez e uma economia que se refletem na sensação de leveza de seu cinema, a despeito do controle e do rigor absolutos. Os atores não desperdiçam gestos; eles são antes portadores da palavra, veículos para o cineasta transmitir suas ideias da forma mais clara o possível. O que pauta as interpretações não naturalistas parece ser, assim, antes um desejo de concisão e controle expressivos. Logo no início de La Sapienza, por exemplo, vemos a reação de Aliénor (Christelle Prot) a um comentário despropositado sobre a necessidade reforçar a “masculinidade” de uma população: um movimento facial estudado, um esgar que denota o constrangimento da personagem — um close up isola o gesto, tornando-o literal e inequívoco.

Toda essa precisão, essa economia e essa clareza resultam num cinema cristalino, que pode servir bem à iluminação espiritual caso o espectador se permita entrar por uma segunda porta: a do didatismo. Digamos logo que La Sapienza é um filme pura e simplesmente sobre a arquitetura, e que se trata aqui, antes de tudo, de aprender uma lição, de aprender a ver: daí que os momentos de maior êxtase no filme sejam precisamente aqueles em que Green se põe a filmar fachadas e espaços internos em travellings desenvoltos, quase sempre acompanhados por uma voz explicativa em off. Se é possível encontrar uma iluminação espiritual no filme, ela certamente passa por aí, por esses momentos em que a câmera vira as costas para os personagens e conduz nosso olhar pelas linhas de força daquelas abóbadas e fachadas inanimadas, se esforçando para nos fazer enxergar sua beleza. Provavelmente desde Visita ao Louvre (2004) não íamos ao cinema para receber uma lição de arte tão direta e tão prazerosa.

Nota-se então que, se os filmes de Green almejam uma iluminação espiritual, eles o fazem da forma mais racional possível. Neles, a busca pela espiritualidade se dá mais nos termos de uma investigação filosófica do que de um fenômeno místico. Não à toa a epifania, ou a iluminação, deve sempre atravessar um processo dialético desencadeado por um encontro (um diálogo) com o outro: com a freira em A Religiosa Portuguesa (2009), com a cantora suicida em Le Pont des Arts (2004) e com o casal de irmãos adolescentes italianos aqui. Essas figuras luminosas funcionam como duplos, espelhos antitéticos dos protagonistas desses filmes, que precisam se enxergar neste outro para alcançar a iluminação. Cria-se assim um sistema lógico que tem como eixo central a Palavra: pois em Green a iluminação precisa passar pela forma de conceptualização mundana da Palavra para se manifestar, para que a “lição” possa ser aprendida pelos protagonistas. Daí a necessidade da clareza e do didatismo do filme (diríamos que, nos filmes de Green, a iluminação é como que “demonstrada à maneira dos geômetras”: e esta sensação é particularmente forte em La Sapienza, que em muitos momentos parece se desenvolver quase à maneira de uma equação, como um filme-teorema).

Mas esse sistema lógico de maneira alguma torna o filme “frio”, excluindo dele o plano da imanência: esta, no entanto, deve se manifestar da maneira mais cristalina o possível. E em La Sapienza o seu lugar de manifestação é, precisamente, a arquitetura, que é o verdadeiro assunto do filme (reiteramos pela última vez: este não é um filme sobre personagens; é uma lição didática sobre arquitetura). Para Green, a arquitetura parece ser este ponto crucial de encontro entre a racionalidade extrema e a possibilidade de iluminação espiritual (através do manejo da luz e do encontro com a beleza). O lugar onde esta racionalidade pode e deve estar, precisamente, a serviço desta iluminação. Será papel do cineasta então conduzir o nosso olhar da maneira mais clara e transparente possível — nos ensinando, didaticamente, a ver — por esse trajeto que vai da imanência à beleza, do mundo concreto ao metafísico.

Calac Nogueira

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