INDIE FESTIVAL BH
INDIE FESTIVAL BH – 2015
por Gilberto Silva Jr.
Para aqueles habituados com as filas, os tumultos e as correrias de um Festival do Rio ou de uma Mostra de São Paulo, o Indie Festival de Belo Horizonte, ao menos em sua edição de 2015, me pareceu um oásis de tranquilidade. Não somente considerando sua concentração em apenas quatro salas, não muito distantes umas das outras, mas também pela programação não preocupada em ser um abrangente panorama contemporâneo e valorizando retrospectivas de cineastas aqui pouco divulgados. E o melhor de tudo: apesar dos ingressos gratuitos, nenhum problema para conseguí-los. Só chegar à bilheteria no momento em que começava a distribuição, meia hora antes da sessão, e tudo bem. Mesmo para uma concorrida sessão do novo Apichatpong, no horário nobre de sábado à noite.
Mas, como se trata de um festival de cinema, o que interessa mesmo são os filmes, e as já referidas pequenas proporções do festival permitiram que, apesar da permanência de somente três dias, um bom número de filmes fossem assistidos, dando uma amostra bastante representativa do conjunto do Indie BH – 2015. Em coerência com seu nome, a escalação dos filmes brasileiros do evento inclui basicamente filmes pequenos de diretores estreantes ou de carreira ainda recente. Mas essa inexperiência acaba pesando de forma evidente, ao menos nos filmes assistidos, onde apesar da simplicidade de orçamentos e recursos, os cineastas acabam por se perder, em maior ou menor escala, num manancial de pretensões e ambições “artísticas”. Como no caso de Asco, do paulista Alê Paschoalini, filme assumidamente referencial, fotografado em um preto-e-branco estilizado, à moda noir, onde desfila uma trama que não se decide entre o existencialismo vazio e o pastiche, descambando para constrangedores momentos de humor involuntário. Paschoalini afirma, durante a concepção de seu projeto, ter assistido a vários filmes de estreia de diretores que o inspiraram, como Martin Scorsese e Stanley Kubrick. No entanto, o que se vê na tela são referências oriundas de um modelo ultra desgastado de cinema independente da década de 1990, como os filmes de estreia de Darren Aronofski (Pi) ou Christopher Nolan (Following).
Os outros brasileiros assistidos transitam na seara do documentário, apresentando duas diferentes vertentes. A primeira delas, o documentário musical centrado em um importante artista, no caso a grande cantora Elza Soares, com My Name Is Now, Elza de Elizabete Martins Campos. A diretora cita ter centrado sua proposta num retrato de Elza como sobrevivente ao ter, ao longo de vida e carreira, ido de encontro aos incontáveis tabus de etnia, gênero, condição sócio-econômica e comportamento. Entretanto, todas as riquezas que tornam fascinante a trajetória da cantora são apenas esboçadas ao longo da projeção. A diretora acaba por se perder em exibicionismos, seja dos dotes vocais de Elza, retratada em infinitos números de improvisação jazzística, seja da parte da própria Elizabete, viajando por imagens abstratas que pouco ou nada acrescentam à exploração do fascinante objeto que tinha em mãos. Por sua vez, Sermão dos Peixes, de Cristiano Burlan, opta pela exploração mais sóbria, mas igualmente pouco inspirada, do universo de uma comunidade de pescadores de Santa Catarina. As referências, aqui, ficam por conta de um neo-realismo, e não há como não ter à mente o Visconti de A Terra Treme ou o Rossellini de Stromboli.
Entre os filmes estrangeiros, pude acompanhar no Indie o destaque a filmografias oriundas das antigas repúblicas soviéticas, onde o tema de conflitos bélicos, seja do passado ou do presente, intervindo nas trajetórias pessoais, surge com insistente recorrência. Da Estônia tivemos Na Ventania (Risttuules), estreia em longa-metragem de Martti Helde. Da segunda guerra à morte de Stalin, o filme acompanha, através de uma narrativa epistolar, o sofrimento de Erna, separada do marido e deportada de sua Estônia natal após a anexação pela URSS. Pretensioso ao extremo, o diretor opta por uma narrativa com atores imóveis e complexas composições unindo tableaux e planos-sequência elaborados, que encenam a leitura das cartas que a protagonista escrevia ao marido. A encenação supostamente virtuosística acaba por levar a um distanciamento com relação a um tema já batido, apesar de contundente, e confere identidade e algum interesse ao trabalho. Já exibido ano passado na Mostra de São Paulo, o georgiano A Ilha do Milharal (Simidis Kundzuli) explora o calvário de um velho e sua neta em cultivar uma plantação e sobreviver numa ilha fluvial temporária em meio a uma guerra. O diretor George Ovashvili não vai além de uma sucessão de clichês sobre ritos de passagem para a vida adulta e interação homem-natureza, que não escapa de causar uma sensação intensa de beleza superficial e vazia.
Do Japão, o Indie apresentou três trabalhos de cineastas pouco conhecidos. Pude assistir a É Isso (Soredaki), de Sogo Ishi, comédia sobre um jovem criminoso repleta de reviravoltas, em clima de mangás. Tem lá alguns momentos divertidos, mas não consegue superar uma sucessão das “tarantinices” que se vulgarizaram até proporções infinitas desde o lançamento de Cães de Aluguel. É Isso não consegue ultrapassar limitações que o posicionam como um sub-Takashi Miiki ou sub-Shion Sono.
Já em seu quarto longa e após várias participações no Festival de Cannes, o romeno Corneliu Porumboiu pode ser considerado um veterano. Depois da decepção que fora Quando a Noite Cai em Bucareste ou Metabolismo, Porumboiu retoma em O Tesouro (Comoara) o clima de sátira social bem-humorada de seu primeiro e ainda melhor filme, A Leste de Bucareste. Seus planos longos, diálogos de sutil ironia e eficaz direção de atores, reforçam mais uma vez as contradições de uma Romênia contemporânea, não distantes de problemáticas universais, aqui acrescidas de um final delirante, porem coerente. Igualmente coerente e coesa vem sendo toda a obra do francês Alain Cavalier, que está há anos se dedicando a documentários que fazem de si próprio o objeto central. Seu recente O Paraíso (Le Paradis) sobe degraus ainda mais elevados no subjetivismo, transbordando questionamentos e citações de ordem filosófica e religiosa. O resultado é de fascinante contundência, apesar de não muito palatável para desavisados.
Uma tradição já consagrada pelo Indie é a de retornar a cineastas que foram alvo de retrospectivas em anos anteriores. Um deles é Apichatpong Weerasethakul, de quem foi exibido Cemitério do Esplendor (Rak Ti Khon Kaen). O redundante Hotel Mekong sugeria que a fórmula cristalizada pelo autor tailandês dava sinais de cansaço. O novo trabalho demonstra que, mesmo retornando aos elementos de sempre e chegando às fronteiras da auto-referência, o cinema de Weerasethakul ainda guarda sua força, num momento onde a inserção mais evidente de elementos bem-humorados e descontraídos se faz bem-vinda. Outro que mantem seu cinema fiel aos princípios autorais é o mestre sul-coreano Hong Sang-Soo. Hill of Freedom (Jaiuui Eondeok) traz um cineasta que vem a cada filme depurando sua formula em trabalhos mais curtos e secos. Suas infinitas conversas e caminhadas pelas sinuosas e estreitas ruas das cidades de seu país natal mostram que a grandeza de um cineasta pode surgir ao se percorrer infinitamente caminhos aparentemente iguais, mas que na verdade espelham uma diversidade de emoções universais.
Filé da programação do Indie, as retrospectivas de obras de cineastas praticamente desconhecidos no Brasil são sempre atrações imperdíveis. Do lituano Sharunas Bartas, infelizmente só foi possível assistir a um dos nove filmes exibidos: o mais recente, Paz Para Nós Em Nossos Sonhos (Ramibé Musu Sapnuose). Belo trabalho de acerto de contas e conciliação com a vida, a filha e a falecida esposa, a atriz Yekaterina Golubeva, constante em seus primeiros trabalhos, Bartas, cuja obra destaca longos planos e uma raridade de diálogos, faz aqui, justamente no terço final de seu filme, uma virada, centrando a narrativa em longas falas que ressaltam as intenções do autor.
Finalizando esse passeio pelo Indie, vale ressaltar que a descoberta da obra de Kira Muratova corresponde ao ato de se desenterrar um tesouro há tempos oculto. A apreciação das sutilezas da obra da diretora nascida na Moldova não cabe nos poucos dias do turbilhão de um festival, mesmo que de pequeno porte. Filme síntese de toda sua carreira e de seus ideais para um cinema ímpar e original, Síndrome Astênica (Astenicheskiy Syndrome) é uma obra-prima que só nos deixa na mente o desejo de explorar com dedicação qualquer imagem que tenha sido filmada por Muratova.
© 2016 Revista Interlúdio - Todos os direitos reservados - contato@revistainterludio.com.br