Que horas ela volta? – Texto 2
Que horas ela volta? (2015), de Anna Maylaert
O país que deu certo
O que separa Que Horas Ela Volta? de seus pares Casa Grande e O Som ao Redor é seu otimismo. Se os filmes de Kleber Mendonça Filho e Fellipe Barbosa apontavam sobretudo para a estratificação social e suas permanências históricas, o filme de Anna Muylaert é um grande retrato de um país em transição. Val (Regina Casé) é o potente signo de um passado, enquanto sua filha é o emblema de um país presente. Val: representa o êxodo nordeste-São Paulo, o abismo entre classes, o quartinho dos fundos como metáfora da senzala. Em sua docilidade ela encarna, mais profundamente, a subserviência de classe. Jéssica (Camila Márdila): representa a ascensão da classe C, a “invasão bárbara”, pelos pobres, dos aviões e universidades. Uma invasão que a classe média alta, evidentemente, terá que engolir. A casa do filme nada mais é do que um microcosmo simbólico dessas questões, e a chegada de Jéssica pode ser lida justamente como uma metáfora desta invasão. Situação esta que o filme tenta abordar com sutileza e jocosidade: a personagem da patroa não é tanto uma vilã, como alguns amigos apontaram, e mais um alvo pitoresco pronto à chacota de classe (lembremos, por exemplo, do breve episódio do acidente: há para ele alguma outra justificativa senão prostrar a patroa na cama, ridicularizando-a ainda mais?).
A opção pelo humor como tom dominante, se por um lado evita o miserabilismo, o maniqueísmo e o vitimismo de classe (conhecemos bem as armadilhas que Anna Muylaert procurou evitar), por outro, cria uma toada otimista que desconcerta alguns de nós. Esse desconcerto vem sobretudo com o final, quando o filme aborta seu sistema cuidadosamente construído e a personagem pede demissão (“para cuidar da minha filha”). A cena tem dupla função: ao mesmo tempo em que resolve a questão familiar, reconciliando mãe e filha, ela “liberta” simbolicamente Val de suas amarras de classe. Mas este diálogo blindado com a patroa no final, em que tudo é negado, todas as explicações são recusadas, em que “dinheiro não é a questão”, no fundo soa como um recalque das relações de classe em nome de um gesto afetivo esvaziador. Como se Anna Muylaert quisesse transmitir a sua personagem a lição geralmente ensinada nas casas de classe média: “Val, você não precisa desta subserviência de classe. Você pode tudo. Basta ter a coragem de jogar tudo para o alto”. Afinal, o país está cheio de oportunidades lá fora, “querer é poder” etc. Desculpe, Anna, mas, não, nós não “podemos tudo”: nem nós da classe média, nem a Val (tampouco ela). Essa lição um pouco esquecida é que precisa ser relembrada.
Difícil deixar de ver o otimismo triunfante de Que Horas Ela Volta? como uma grande propaganda lulista (fosse o filme menos idealista, Jéssica, adolescente pobre e mãe precoce, no lugar da FAU se contentaria com um crédito estudantil — e, voilà, teríamos uma bela propaganda do Prouni). A questão aqui não é pessoal ou partidária. O que nos perguntamos é quando os cineastas abandonaram a ambição de criticar a realidade, de criar desconforto, de buscar as fraturas, pôr a mão na ferida, para se contentarem com radiografias estáveis, com seus mundinhos ordenados e confortáveis, cheios de signos legíveis para o público. Os espelhamentos simbólicos são infindáveis: Val deixou a filha para criar o filho da Patroa; a frase-título, dita no início por Fabinho, é retomada por Jéssica; a filha da empregada passa no vestibular, o filho-patrão não; como Val, Jéssica também deixou um filho no nordeste etc. Essa redoma simbólica aprisiona o filme. Mas se trata de uma prisão confortável, que não sufoca os personagens nem o espectador. Como Val, podemos sair do filme com tranquilidade, com a consciência limpa. Apenas para que se faça justiça, uma cena escapa desses esquemas simbólicos sutis e confortáveis: o pedido de casamento de Lourenço Mutarelli à moça. Uma cena estupenda justamente pelo seu desarranjo, pela sua gratuidade, por um certo pathos complexificador: o personagem deixa de ser a encarnação simplista do patrão abusador para, em sua vulnerabilidade, nos provocar alguma condescendência.
No mais, a opção é sempre por não se forçar muito a corda. A direção de Muylaert procura oferecer soluções delicadas, como na cena em que Val serve o café nas xícaras que presenteou à patroa, na qual a diretora resolve elegantemente, através do fora-de-campo, um conflito que antecipávamos muito mais constrangedor. Mas há no filme bem menos a se dizer sobre as opções cênicas do que gostaríamos. Pois o verdadeiro esforço aqui se concentra nas notações simbólicas, na radiografia social. É o filme para “bons” espectadores, muito aptos a “ler” as imagens, mais do que vê-las. O filme do qual todos saem sentindo que apre(e)nderam alguma coisa. Julgam que o filme abordou perfeitamente a relação patrão x domésticas (mesmo que ele se concentre mais nos ranços culturais do que em relações de classe e seu fundo material). Que ele oferece um olhar atual, plausível e ambicioso sobre o Brasil (mesmo se este nos soa exageradamente otimista). Assim, faz-se o boca-a-boca, vende-se mais ingressos. Exibe-se o filme em salas de aula. Em debates. Fala-se de Oscar, de feminismo. Um verdadeiro filme-evento. Faz-se “cultura”, em suma, e todos na cadeia produtiva parecem ganhar com isso (produtores, público, colunistas de jornal, professores, o governo, os próprios críticos). Mas é preciso nunca perder de vista uma questão: e o cinema, o que ele ganha?
Calac Nogueira
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