Godard para principiantes
Godard para principiantes
(Uma breve tentativa de entender a arte de um mestre)
Sérgio Alpendre
1.
Muito da apreciação entusiasmada ou da rejeição a Godard esbarra na falsidade. Os que endeusam qualquer filme dele por vezes o fazem por intimidação (a erudição e a eloquência godardianas inibem questionamentos). E os que rejeitam sem entender o fazem por despeito (“como ele ousa ser assim, tão hermético?”). Isso acontece porque Godard normalmente fala primeiro à razão, e só depois à paixão. A partir de Le Gai Savoir (1968), ou talvez um pouco antes, seu cinema deixa de paparicar os sentidos cinéfilos para exigir muito mais da massa cinzenta do espectador, passando pela fase Dziga Vertov, de discussão política direta; pela fase do video, com pérolas fascinantes e até hoje pouco vistas longe do âmbito de pesquisadores, dentro ou fora da Academia; e por um retorno ao cinema, digamos, convencional nos anos 1980. A partir de Puissance de la Parole (1988), assinado por Edgar Poe, Charles Baudelaire, James Cain, Jean-Luc Godard, Haroun Tazieff, Voies du ciel, é o projeto Histoire(s) du Cinéma (1988-1998) que impera sobre sua carreira e seus filmes passam a ter maior (JLG por JLG, A Origem do Século XXI, Filme Socialismo) ou menor (Infelizmente Para Mim, Elogio ao Amor) parentesco com esse grande monumento ao cinema e à sua errática história, e portanto tornam-se ainda mais hostis aos neófitos. Dizendo de outra forma, não se gosta de Godard impunemente. É necessário esforço, paciência, concentração, insistência. É necessário rever e rever Godard. Sempre.
2.
É impossível imitar Godard. Quem tenta imitá-lo geralmente faz porcarias. Obras influenciadas por Godard, por outro lado, costumam ser no mínimo instigantes. Vejam o Scorsese inicial, até Caminhos Perigosos; o Arthur Penn dos anos 60, principalmente Mickey One; Hal Hartley nos três primeiros filmes; Bertolucci em Antes da Revolução; Nagisa Oshima, Kiju Yoshida e boa parte da Nouvelle Vague japonesa, o Carlos Reichenbach de O Império do Desejo ou Alma Corsária… A lista pode ter ainda Maurício Gomes Leite, Rogério Sganzerla, Ettore Scola e ainda estará incompleta, pois Godard é um dos diretores mais influentes do cinema. Não lembro de quem tenha claras influências de seu cinema e tenha feito filmes ruins. Bertolucci fez aquela bobagem chamada Os Sonhadores como uma homenagem à Nouvelle Vague, mas o filme não tem nada de Godard.
3.
Minha lista só tem filmes que eu indicaria para alguém que estivesse iniciando no cinema de Godard. Não foi de propósito, mas algo que constatei a posteriori e me incomodou. Por que nenhum dos filmes geniais que Godard fez para iniciados? Por que ficaram no “quase” curtas sublimes como Armide ou Puissance de la Parole? Por que não houve espaço para ensaios como Comment Ça Va ou Scénario du Film Passion? Talvez porque eu tenha usado como único critério o coração, e assim os filmes que se dirigem a ele com mais força, mesmo que após uma escala pelos labirintos mentais, tiveram prioridade na lista. Tudo isso, repetindo, foi impensado. E de modo geral, acho que um iniciante pode pegar a lista geral, começando pelos primeiros colocados, e depois de ter visto os dez filmes pode começar a rever todos eles antes de partir para outros filmes. Pedagogia godardiana, obrigatória para estudantes de cinema.
4.
Uma das melhores apresentações de Godard que eu conheço é a que fez Luc Moullet no pequeno filme Jean-Luc Selon Luc, que está como bônus no blu-ray de Acossado. Ali Moullet brinca com o fato de ter matado Godard (o pai) em um de seus filmes e lembra das idiossincrasias do artista: raramente ler um livro inteiro, apropriar-se frequentemente do que outros escreveram ou filmaram, filmar a natureza como algo maior que o homem (o lago que banha a pequena cidade suiça de Rolle, as árvores, a ave de som estranho que ocupa seus filmes a partir dos anos 80, o céu, as nuvens).
5.
A década de 80 foi especial para Godard. Os filmes podem não ser tão sedutores, à primeira vista, quanto os da fase 1960-1967, mas são igualmente fascinantes. São filmes caseiros, às vezes explicitamente (Soft and Hard, Scénario du Film Passion), e investigam a dualidade entre corpo e espírito (sobretudo na dobradinha Prenom: Carmen/Je Vous Salue Marie, tendo um início de aprofundamento no tema em Passion). Os filmes também parecem mais simples, porque Godard chegou a um nível de maturidade que o permitia investigar coisas muito profundas sem ser pedante, como em Je Vous Salue Marie, espécie de centro nevrálgico de sua filmografia.
6.
As colagens se intensificam a partir de 1988: Puissance de la Parole e Histoire(s) du Cinéma retomam o recurso utilizado com genialidade em France/Tour/Détour/Deux/Enfants, série de 1978 que precisa ser redescoberta. Filmes diversos, incluindo os dele próprio, entram na dança com outras imagens – quadros, documentários, comerciais, gravuras, filmes amadores e muito antigos de sexo explícito, fotos das mais diversas fontes. É desafiador entender as associações trabalhadas por Godard em cada filme que realizou a partir desse período. São dezenas de curtas, com destaque para L’Origine du Siècle XXI e Liberté et Patrie. Todos podem ser considerados capítulos das Histoire(s) du Cinéma.
7.
Em seus filmes, Godard propõe uma História da Civilização, como disse Joel Yamaji. Se estivermos de mente aberta, aprendemos muito com seus filmes. Basta querer.
8.
Mais uma vez é necessário dizer: novo não é Gaspar Noé ou Xavier Dolan ou qualquer outra coisa que quer se passar por novo, ou querem que aceitemos como o novo. Novo ainda é Acossado, feito há 55 anos, ou Adeus à Linguagem, feito há dois anos.
9.
Pouco se fala do Godard ator. É um lado que já aparecia antes, mas ganha força em Carmen, em que ele é o diretor que está internado com problemas mentais, e volta com mais força ainda em Rei Lear, em que Godard é o bobo da corte e anda com filmes enrolados na cabeça. O Godard da máquina de escrever e da estante de livros, presente em diversos filmes e nas Histoire(s) du Cinéma, não é bem um ator. Como também não é atuação a de Soft and Hard e outros filmes caseiros que realizou com sua esposa Anne-Marie Miéville. E sua voz cada vez mais gutural muitas vezes é propositalmente humorística.
10.
O título deste esboço de ideias é uma piada. Um artista como Godard não se presta a manuais do tipo “modo de usar”.
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