Ano VII

Corrente Do Mal

quarta-feira set 9, 2015

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Corrente Do Mal (It Follows, 2015), de David Robert Mitchell

O cinema segundo St. John Carpenter: acima de tudo, apreender a materialidade do etéreo. Existem as coisas do mundo – o céu alaranjado, a folha outonal, as casas enfileiradas – e existem coisas. E o que são elas? A forma primária, o estado embrionário gasoso, líquido e disforme, a gosma de moléculas e de outras substâncias desconhecidas que foram moldadas ao longo de bilhões de anos. Neste processo, resquícios de matéria não trabalhada, restos e raspas, como lascas de mármore e sobras de argila forrando o chão do escultor enquanto mãos habilidosas criam harmonia, permanecem guardadas no escuro abissal do oceano, em dimensões desconhecidas, em porões de igrejas há muito esquecidas, em bibliotecas amareladas de mofo e frases cujo conhecimento atual é incapaz de decifrar; e, claro, no próprio mundo em si, possivelmente invisíveis a olho nu e a corações mesquinhos. A sabedoria necessária para enxergar a coisa não é adquirida pela alquimia, tampouco a necromancia. A inteligência que se faz necessária para a revelação é, simplesmente – e resposta mais óbvia não poderia haver – a da honestidade.

A honestidade implica perscrutar o mundo pacientemente com a câmera no travelling lateral, em usar toda a extensão da tela (“call me Snake“, ou “call me Scope”?) para apanhar o maior pedaço possível de realidade que, no filme de terror, é, ora, o próprio terror. Quando uma obra se aventura a responder o chamado de Cthulhu, um compromisso moral se estabelece com o desconhecido; a maneira de honrá-lo é torná-lo visível por meio do plano, sem jogos abusivos com o fora de quadro, sem a covardia da sugestão. Filmes, e desses temos aos montes no Brasil, que observam o mundo à distância, que fingem acenar para a coisa na superfície da onda, quando sabemos que ela mora no naufrágio e que para ser combatida deve ser exposta pelo mergulho. O filme de “horror artístico”, extremamente autoconsciente, por isso cínico, não passa de ritual de hereges. A coisa, em várias ocasiões, tal como o rosto em Marte, assume formas que, ilusão de ótica, permite vislumbrar respostas para questões sociais e políticas, quando o mistério se encontra por baixo das rochas do planeta vermelho; é aceitável que nos deixemos enganar, pois, naturalmente egocêntricos, estamos sempre tentados a vermos nós mesmos em tudo: nos faróis dos carros enxergamos olhos, na lua minguante encontramos um sorriso. A honestidade consiste em não permanecer até o final no caminho fácil da superfície e em estar verdadeiramente disposto a fazer a guinada para olhar o mundo e ver o horror. E ele não é humano. O horror é.

A autoconsciência de Corrente Do Mal não é joguete, não é esperteza do pós, que julga dominar a forma clássica ao ponto de poder brincar com ela. Se o filme é situado em um espaço cinematográfico imediatamente reconhecível, e estamos, evidentemente, falando de John Carpenter, Wes Craven e o cinema americano de gênero dos anos 80 em geral, não é pelo prazer efêmero da homenagem, nem pela picardia do plágio, é para acentuar o choque da travessia para o outro lado da fronteira. Ou, melhor, para acentuar a exposição da coisa, este grande tema do horror. Todo o aparato intelectual e a engenharia reunida para sustentar Corrente Do Mal tem a honestidade mencionada ao início deste texto. Em dois momentos, o longa-metragem realiza a passagem da abstração para o concreto: primeiro, quando retira a semente para criar aquilo que será o organismo central do filme não de Halloween, O Príncipe Das Trevas e A Hora Do Pesadelo, pois tais filmes já expuseram o que deveriam expor e repetir o processo seria vulgar e banal, mas da infame “leitura” praticada na época e repetida até hoje – e ingenuamente “revelada” como regra na série Pânico - principalmente no caso da obra com Michael Myers: sexo, nos slasher movies e no horror adolescente como um todo, é punido com a morte. Corrente Do Mal, então, sublima a abstração gasosa para lhe tirar o componente de analogia e lhe transformar em imagem bruta; eis que de modo mais direto e puro possível, David Robert Mitchell conjura um filme em que o sexo é responsável por fazer o adolescente visualizar algo (o quê? Não importa: aquilo é o que é) e se deparar com a possibilidade material da morte.

O que assombra a obra de John Carpenter é infilmável e só lá existe, o que justifica acertada escolha do diretor novato em começar a moldar a coisa a partir de uma ideia externa, que não está nos filmes de Carpenter (ou de Craven), mas é aplicada neles, como um post it.  É possível apenas, e desejável, aliás, aceitar de coração aberto a moral de St. John e buscar por conta própria a coisa, pois ela não vive nos filmes ou nas imagens fabricadas (como nos lastimáveis found footages, que confundem efeito de realidade com efeito de picaretagem), e sim, no mundo. O cinema de horror, o verdadeiro cinema de horror, deve olhar sempre para o mundo e não encostar o queixo no peito para fitar o próprio umbigo (quando Sergio Martino, por exemplo, recupera a trama de O Bebê De Rosemary, em Todas As Cores Do Medo, não é para homenagear Polanski e sim para dar o derradeiro passo em direção ao abismo do mundo e mostrar a coisa, ao invés de sugeri-la, unicamente). Sendo assim, Mitchell poderia apropriar-se tão ostensivamente dos elementos superficiais da obra de Carpenter e de Craven? É preciso replicar o mesmo tom dourado das folhas das árvores de Halloween? É necessário buscar no casting um ator tão parecido com o Johnny Depp de A Hora Do Pesadelo? Em um filme sobre atravessar a fronteira, é fundamental.

Para que se diferencie o lado de lá do lado de cá, convém arquitetar espaços completamente diferentes; o choque ao se descer até o oceano abissal é maior quando se caminha primeiro por entre as conchinhas na praia. O lado de cá, em Corrente Do Mal, é o da referência prontamente reconhecível, é o da superfície –  Jay plácida na piscina rasa, quase a flutuar. A citação à uma imagética de um cinema de outros tempos – em que a TV, mensageira do deus plutônio, a brilhar na sala de estar escura, tem papel de destaque, servindo de isca para atrair a coisa, que se alimenta também de nosso apego imediato ao conhecido, ao decifrável, embora o cineasta não pretenda enganar ninguém: os travellings laterais que acompanham as simetrias das esquinas do subúrbio da cidade fictícia do Illinois, em Halloween, são aqui substituídos por movimentos ligeiramente erráticos, que anunciam o distúrbio no espaço que será mostrado adiante no filme. E é calmamente, como o andar lento da ferrugem, do esfarelar paciente do cupim, que a decrepitude se revela. A decrepitude real de uma cidade em decadência, prestes a entrar em colapso a partir do seu centro nervoso, que no passado de glória produziu o maior bem da américa, o carro (polido e imponente antes do contágio de Jay; desengonçado e velho depois). Aos poucos, Corrente Do Mal nos leva para a verdadeira tradição americana, aquela que faz parte de sua gênese, que fez a terra ser semeada por sangue: a jornada. Se, no princípio, tinha a jornada o objetivo da conquista e do desbravamento, da implantação de uma vontade civilizatória contra um estado de natureza selvagem, não demorou para que, conquistado o objetivo, a jornada se tornasse uma atividade em si mesma. Cria-se então o mito do coast to coast, da rota 66, de John Wayne dando as costas para o lar e partindo sozinho para o Monument Valley, de Warren Oats montado em um GTO, do Charger branco rasgando o deserto sem motivo aparente e de Steve McQueen correndo em círculos para chegar a lugar nenhum, apenas para ser o melhor de todos. O mito da jornada é também o mito da morte, da viagem rumo à decrepitude dos órgãos, da beleza, das células. Quando Mitchell cruza o subúrbio e nos leva até o fundo da piscina, em meio às construções depredadas de Detroit, nos leva também ao fundo do verdadeiro problema da vida: a morte está vindo.

Está aí a coisa, no plano, palpável, iluminada pela mise-en-scène sempre à serviço da revelação e não da ocultação que serve de moeda de troca para sustos baratos em filmes pobres. Exemplos abundam, mas talvez o melhor acabado seja o da cena à beira do lago. As lindas meninas esperam sob o sol a passagem do tempo e, na medida em que a decupagem passa a se deter em planos próximos das irmãs, que trocam olhares em campo/contracampo, a coisa aparece ao fundo do enquadramento em que é mostrada Jay. É notória a ausência de Yara entre as meninas e é fácil aferir que a coisa que se aproxima e tem a aparência da jovem de óculos não é, de fato, a humana. Quando a real Yara desliza da borda do quadro em direção ao centro da imagem, em uma boia no rio, e o corte nos deixa diante da coisa prestes a atacar Jay, não é a surpresa que nos provoca o horror, é a certeza.

A segunda passagem do abstrato para o concreto se firma ao final, na indelével singeleza de um caminhar. Lá na essência de um povo, com a ajuda do imaginário mitológico ao qual preza a nação, Mitchel foi atrás do medo invisível que se esconde por trás de uma tradição (a da jornada), não apenas para refugiar-se no conforto da metáfora – embora ela seja possível, bem-vinda e, por consequência, abundante neste texto -, mas para dar-lhe uma forma concreta, como se jogasse um lençol por cima da coisa, e assim expô-la.

Continuemos a caminhar, com o cinema de horror de verdade, aquele que aplica St. John à realidade, nos preparando para o fim.

Wellington Sari

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