Ano VII

Homem Irracional (Contra)

terça-feira set 8, 2015

16

Homem Irracional (Irrational Man, 2015), de Woody Allen

É essencial nos perguntarmos o que acontece entre Magia ao Luar (2014) e o novo filme de Woody Allen, Homem Irracional; onde reside a grandeza daquele e o acanhamento desse, como se dá a passagem de um cineasta maior, investido de pleno conhecimento de sua arte, seu meio de produção e de circulação para um homem que aparenta abdicar de sua maestria, do controle das rédeas de seu gênio, dobrando-se com facilidade à um risco que sempre permeou sua obra (daí muitas vezes a beleza que dela emana, daí o local específico em que seu gênio se movimenta, se expressa), mas que vez ou outra ganha a superfície num golpe tão violento que, após o susto, somos obrigados a nos perguntar: o que de fato aconteceu?

Explico-me: o cinema de Woody Allen muitas vezes operou a partir de uma simplificação brutal de ideias e conceitos advindos dos mais diversos campos do conhecimento (filosofia, artes e psicologia, principalmente), que ao tomarem abruptamente conta da narrativa, impunham ao cineasta a necessidade de se debruçar com uma energia redobrada sobre seu universo a fim de que ele não se tornasse mero decalque, um mero fantasma daquilo que o inspirava. A energia despendida em seu universo, portanto, tomava apenas como ponto de partida a simplificação brutal operada, para, enfim, dar vida a um mundo, dar vida à uma fantasia imbuída de um raro poder de fabulação, de uma crença inabalável na ficção (mesmo quando a fala direta com a platéia, tão típica de seus filmes mais emblemáticos, irrompia na tela), na qual a atenção a um gesto, a um olhar reordena de súbito aquilo que até então fora imposto pelo o que havia sido importado, tomado como parti pris narrativo.

Seus melhores trabalhos ou operavam nessa equação de forma a manter a tensão rumo a um reordenamento repentino do estabelecido, através de uma mise en scène precisa, extremamente calculada, balanceada entre o despojamento do plano e da encenação e uma máquina  infernal quase mecânica, imposta pelas exigências primeiras das ideias importadas para se caracterizar as personagens e seu mundo (Noivo neurótico, noiva nervosa, Um Misterioso Assassinato em Manhattan, Vicky Cristina Barcelona, Magia ao Luar); ou abandonavam completamente esse mecanismo, operando principalmente a partir da tragédia (Ponto Final – Match Point e O Sonho de Cassandra); ou, por fim, tentavam operar uma delicada síntese entre o trágico e o cômico, na qual a transição era sempre sentida, evidenciada e demarcada claramente em determinado momento do filme, porém, retrospectivamente percebemos que ela sempre esteve lá (Crimes e Pecados é ainda insuperável, nesse sentido).

De certa forma, Homem Irracional tenta se filiar a essa última tendência. Seu naufrágio, porém, se dá primeiramente quando opera dentro do que seria a primeira tendência. Talvez, mais do que nunca, Woody Allen joga para dentro de seu filme uma gama extremamente vasta de citações filosóficas: Abe Lucas (Joaquin Phonix) é um professor de filosofia em crise existencial que chega para lecionar em uma faculdade inteirorana. No campus, acaba por se envolver com uma outra professora casada e com uma aluna. Seu tédio existencial, explicitado sempre que possível através de suas aulas de filosofia, será rompido quando ele resolve praticar um assassinato em nome da justiça.

As aulas de Abe Lucas se mostram o local perfeito por excelência para Allen colocar na boca de seu protagonista – e por conseguinte na espinhal dorsal do filme – toda a simplificação filosófica brutal que deseja. O grande problema é que esse dado teórico bruto não se mostra apenas como ponto de partida, a partir do qual o cineasta irá desenvolver sua arte maior (a composição de um mundo, a fuga do que fora enunciado, o humor que brota das situações físicas e sociais dali engendradas), mas sim como ponto de estagnação a ser refutado por um outro dado teórico (no caso, de que a moral é relativa). Não há a habilidosa transição do cômico para o trágico na percepção desse mundo (como há por exemplo em Scoop – O Grande Furo), tampouco a sustentação de um interesse moldado a partir de uma tensão rumo ao que foi colocado primeiramente, observamos a esse desfile de ideias completamente alheios.

A ideia de despojamento me parece aqui ser um ponto crucial. Muito já se discorreu sobre o ritmo frenético da produção de Woody Allen, e de fato é algo que me parece essencial ser retomado quando nos debruçamos sobre sua obra, principalmente quando tentamos entender o abismo que há entre filmes tão próximos como Magia ao Luar e Homem Irracional. A produção de um longa por ano ainda hoje é algo que impressiona e particulariza Woody Allen, uma condição privilegiada, conquistada por um cineasta que realiza suas primeiras grandes obras de peso nos anos 70, num cenário de rearranjo das forças produtivas do cinema americano, e consegue sustentar e mobilizar interesses, mantendo sua independência e força criativa.

O fato é que a velocidade com que os projetos vão se realizando exige igual velocidade do realizador no seu processo criativo. Em seus melhores momentos, isso nunca se mostrou um empecilho (na verdade, a velocidade do processo criativo parece preexistir à mobilização das forças produtivas, a inversão de tal equação, tal como enunciado, parece se dar especialmente nos últimos anos, com destaque negativo para a sequência de filmes Você Vai Conhecer o Homem dos seus Sonhos, Meia-noite em Paris e Para Roma com Amor). A sabedoria do despojamento – não o desleixo, mas o fino equilíbrio entre o controle e a desmesura – a permissividade à imposição dos gestos e dos olhares que o habilitam a retomar, em meio ao quase caos (no sentido do filme que se torna um mero receptáculo das ideias e conceitos importados inicialmente), o controle de seu universo.

Magia ao Luar é o grande filme de Woody Allen dos últimos anos, investimento puro na mise en scène, através da qual um sorriso escapa, um olhar fugidio se arrisca, uma vigarista se torna musa, um cético boçal de repente é capaz de ter sentimentos, um casal se forma, um mundo brota. Homem Irracional é apenas um fantasma, uma imagem mais ou menos formatada sobre o que a simplificação brutal de conceitos filosóficos tem a dizer  sobre a relatividade moral num mundo isolado (o campus da faculdade, as aulas teóricas). O primeiro possui a sabedoria do despojamento, o outro não.

Guilherme Savioli

——

Texto de Bruno Cursini (a favor)

© 2016 Revista Interlúdio - Todos os direitos reservados - contato@revistainterludio.com.br