uma imagem é uma imagem
Uma imagem é uma imagem (ou, o cinema puro)
No princípio, era o verbo. Ou, já desde o princípio, era a palavra.
Se um filme pode ser uma crítica em imagens, uma imagem pode ser também um desfilar de palavras desenhadas. Em Godard, a palavra é tão imagem quanto todo o resto. Se o cinema inicial do diretor é a busca de um gesto, o gesto fixado em celuloide tanto pelo impulso criativo do ator quanto pela câmera, em uma espécie de transferência de sentidos, que passa do olhar e vai para o tato – Godard toca os filmes americanos B, Rossellini, Dreyer, primeiro pela fixação do olhar, dentro da sala escura, em condição de cinéfilo, depois, com as mãos, dentro da sala de montagem, como diretor -, que passa da objetiva para a caneta, que é deliberado, tal o polegar nos lábios de Belmondo, ou simplesmente escapa, através dos olhos de Ana Karina, sentada ao cinema.
A escrita, em Godard, o ato de escrever à mão em um caderno, como o faz Nana, em Viver A Vida, ou mesmo a citação oral narrada por cima das cenas, como em Bando à Parte, é gesto de imagem, que produz sobreposições visuais. Desenhar letras e formar palavras, é, ainda sim, desenhar. Pintura e escrita são gestos de fricção contra uma superfície que produzem formas e a industrialização do processo diminuiu a necessidade do fazer artesão, mas não matou o resultado. Ao contrário, criou outras artes e outras estéticas: o cinema, em muitos casos é pintura processada através de um dispositivo criado na fábrica e a pop art, assim como a poesia concreta, só foram possíveis graças a substituição da caneta e do lápis pela máquina impressora. Estaria Godard fazendo uma citação, ao iniciar Viver A Vida com imagem que, dentro do enquadramento, reorganiza motivos presentes em No Café, de Manet? Não, ele está pintando a cena possível em Paris, nos anos 60, com a ferramenta possível, que não é o pincel. O diretor, ao posicionar as figuras de costas para o espectador, ao contrário da obra de Manet, faz aquilo que tanto a escrita quanto a pintura em diversos momentos da História tentaram, seja pelo fluxo de consciência e narração indireta livre, seja pelo afresco: a fluidez do gesto na continuidade do tempo.
Não estamos falando aqui simplesmente do movimento, esta novidade de feira, e sim do universo de possibilidades que se abre no buraco negro que separa retenção e exposição, e no horizonte que se vislumbra na jornada do gesto. Como não vemos o rosto de Nana na referida cena, só podemos inferir que seu olhar é tão tristonho quanto o da prostituta no quadro de Manet. Também não temos a expressão de desinteresse do companheiro e apenas adiante, mais de uma dúzia de minutos depois, é que a certeza escorre sobre nós: as lágrimas que descem no cinema, diante de Joana D´Arc, nasceram lá em Manet, na moça de sobrancelhas grossas que tinha diante de si um copo de cerveja e o olhar privilegiado do espectador, situado do lado de “dentro” do balcão, pariram na primeira cena de Viver A Vida. Terá acontecido o mesmo à jovem parisiense do século 19? Em que momento ela chorou? O cinema aperfeiçoa a mais linda das características da pintura, a de ser um eterno presente. Na tela, a 24 quadros por segundo, há sempre o depois, apesar de o presente ser eterno. O gesto começa no ponto A e termina no ponto B. Sofre a passagem do tempo e ao invés de envelhecer, nasce.
O ato da escrita, muito comum nos primeiros filmes de Godard, marcadamente em Viver A Vida (longo plano de Nana escrevendo carta) e em Bando à Parte, na igualmente longa sequência na sala de aula, em que a professora preenche a lousa, é a exposição plena da fluidez do gesto na continuidade do tempo. Gesto que desliza sob a superfície plana e que, lentamente, vai organizando um sentido, que só é total ao final da frase, e que sempre deixa margem para a reticência. Que bela definição para “cinema puro”: não é aquele que nega a palavra, ou ajoelha-se aos pés da pintura, como no expressionismo alemão; é aquele que tem consciência total da sua ontologia, que o entende como um sucessor e, sendo assim, é capaz de iluminar toda a História para trás e, em seguida, mudar a direção do farolete para o norte e provar que a Terra é redonda. Ou seja, é o cinema capaz de alcançar tudo aquilo que não puderam seus predecessores, é o cinema capaz de transformar tudo em… cinema.
Godard não é, portanto, o cineasta da citação, da paráfrase. É o cineasta da alquimia que transmuta tudo em imagem total. Alquimista ou clarividente? Já nos anos 60 previa que a imagem em movimento dominaria o mundo, que nunca mais a escrita ou a tinta seriam puras (nunca mais pintou-se ou escreveu-se sem dever ao cinema, de alguma maneira ou outra). Morre a frase, nasce o super-olho, capaz de ver que que tanto a Terra quanto a tela não são planas. Sem lágrimas, dá-se adeus à linguagem.
Wellington Sari
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