Homem Irracional
Homem Irracional (Irrational Man, 2015), de Woody Allen
Um personagem intelectual em meio a uma crise existencial; um conturbado romance entre ele e uma amante, anos mais jovem; a aleatoriedade dos eventos os conduzindo a uma situação limite; o ensaio de um crime perfeito. Eis alguns dos elementos característicos do cinema de Woody Allen retomados em Homem Irracional, seu 45º longa-metragem. Se estes dilemas remetem a alguns dos trabalhos mais noturnos (e melhores) de sua filmografia, como Crimes e Pecados, Match Point e Sonho de Cassandra, o cenário idílico e a fotografia calorosa trazem à mente seu título mais recente, Magia ao Luar, também filmado em CinemaScope – algo raro na carreira do diretor, normalmente fiel ao 1.85:1 como formato de tela (antes deles, somente Manhattan, Igual a Tudo na Vida e Blue Jasmine haviam sido rodados em 2.35:1).
Pois esse contraste entre a sensualidade estética e o tema será apenas a primeira das evidências de que Homem Irracional é, sobretudo, um perfeito jogo de ambiguidades, de duplos, onde aquilo que atrai também pode repelir. Mais especificamente, é sobre as consequências da aplicação prática do mundo teórico em ações cotidianas; seja a entrega a um ideal romântico, seja fazer justiça moral com as próprias mãos.
Antes mesmo de Abe (Joaquin Phoenix) chegar a uma pequena faculdade de Rhode Island, Jill (Emma Stone) já se mostra encantada com a fama de seu futuro professor: uma espécie de gênio indomável, aventureiro e romântico, notório bebum e mulherengo. O namorado da garota, almofadinha e bem-educado, se diz enciumado e Jill responde que gosta de vê-lo assim. Funcionando como um espelho envelhecido deste casal, Rita (Parker Posey) é casada com um homem igualmente endinheirado e enfadonho. Ela, uma professora de ciências, também flerta com as emoções que só alguém tão desapegado dos critérios sociais quanto Abe pode proporcionar, desejando-o, também, anteriormente a sua chegada.
Rita é aquilo que Jill irá se tornar, caso permaneça como e com quem está, seguindo à risca aquilo que dela é esperado, celebrando aniversários trocando agasalhos como presentes com seu namorado: azul para ele, rosa para ela.
O ritmo suave dos eventos e as belas imagens registradas pelas lentes de Darius Khondji são pontuados por uma mesma música, uma versão instrumental de “The In Crowd”, do trio jazzístico de Ramsey Lewis. A sobriedade e a depuração de Allen jamais podem ser confundidas com desleixo; pelo contrário, tratam da precisão de um cinema de critérios, no qual tão-somente o necessário será exibido. Assim, as cartas estão dadas desde o princípio: se Abe leciona filosofia e Jill é sua aluna, em pauta a impossibilidade dos conceitos em alterar, de fato, qualquer realidade posta. Para isso, seria preciso fazer algo pelo qual os pensadores não são particularmente notórios: agir.
Seus alunos claramente admiram suas ideias, mas são incapazes de abrir mão de seus bem-estares, vide o espanto em seus rostos ao verem Abe pegar um revolver e fazer, por três vezes consecutivas, a roleta-russa com a qual eles apenas brincavam.
É aqui onde ele começa a retomar o tesão pela vida, entrando novamente em linha com o universo. Pouco depois deste posicionamento radical de vontade de colocar em prática seus discursos, chega o momento-chave do filme, quando a garota chama a atenção de Abe para a conversa de uma mesa vizinha em um restaurante. Inconscientemente, é como se ela estivesse testando os limites de seu mestre: ao lhe apresentar um relato de injustiça envolvendo um juiz local, não estaria ela colocando em xeque o elã vital de seu doutrinador? Ao apresentar um caso moral, cuja solução ele poderia tomar para si, não estaria ela lhe proporcionando viver a vida em seu instante imediato, em sua plenitude?
No momento em que Abe decide tomar as rédeas da situação, arquitetando o assassinato do juiz, sua potência é retomada. À maneira de muitos filmes de Claude Chabrol (Stephane, Os Fantasmas do Chapeleiro, Mulheres Diabólicas), a essa altura sua atração é tamanha que pouco importa o quão abominável serão os seus atos; o único desejo é que eles sejam bem-sucedidos. E por lidar com uma trama cujo núcleo sustenta um suposto crime perfeito, o nome de Alfred Hitchcock também surge inescapável, particular e inicialmente por Pacto Sinistro. Certamente é desnecessário relembrar a história deste filme seminal do mestre inglês, mas, em poucas palavras, trata de um encontro de dois desconhecidos em um trem, no qual uma troca de favores é sugerida. Em suma, “eu mato a tua esposa e você mata meu pai”. Daí a ideia de uma execução sem suspeitos, uma vez que nenhum deles teria razão para eliminar suas respectivas vítimas.
Fora esta aproximação, ambos os filmes contêm cenas memoráveis em um parque de diversões: se em Hitchcock é lá que a mulher será estrangulada, deformada pelos reflexos das lentes de seus óculos, Allen colocará o primeiro beijo de seu casal visto através das deformações de uma Casa dos Espelhos e será em uma brincadeira de tiro ao alvo que Jill escolherá, como prenda, uma lanterna, objeto que será fundamental para a conclusão da história (o próximo plano é de Jill saindo do elevador, outra vez exibindo a mestria de condução narrativa do cineasta).
Apesar destes pontos de afinidades inegáveis, Homem Irracional não é um thriller sobre a elaboração de um assassinato perfeito. Possivelmente, não é um thriller de espécie alguma. Peguemos a cena na qual Abe invade o laboratório da faculdade para roubar o cianureto necessário para envenenar o magistrado: a montagem segue com o seu já estabelecido ritmo brando e, na trilha-sonora, novamente a música de Ramsey Lewis. Uma aluna anda pelo corredor, prestes a entrar na sala onde Abe está, mas o suspense existe apenas pela situação em si, sem qualquer prolongamento dos fatos, apenas uma montagem paralela bastante crua. A mesma cadência será encontrada na cena do envenenamento: o mesmo distanciamento analítico, o mesmo tom farsesco.
Aos poucos, vai ficando claro que Allen estava com outra obra-prima de Hitchcock na cabeça, A Sombra de Uma Dúvida, pois são as tensões entre Abe e Jill, pessoas essencialmente diferentes, mas fatalmente atraídas uma pela outra, que fazem Homem Irracional surgir mais interessante do que sob o prisma de uma história de assassinato ou de crise existencial. Se o início do filme dos anos 40 se dá com a chegada do tio Charlie à bela e bucólica Santa Rosa, na Califórnia, o que vemos aqui é Abe dirigindo-se à igualmente bela e bucólica Newport. Nos dois casos, uma canção será repetida para diferentes efeitos, enquanto uma relação de veneração caminha, passo a passo, à tragédia. Em duas cenas têm-se, até mesmo, algo que beira a homenagem: numa, o pai de Jill conversa alegremente com Abe, criando possíveis cenários e situações de como o assassino pode e/ou deve ter agido; noutra (a própria conclusão), o protagonista se vê forçado a mudar de cidade, não sem antes eliminar seu objeto de afeto.
O que separa Charlie de Abe, no entanto, é que o segundo não é alguém de natureza psicopatológica. Seu crime é cheio de pequenas falhas e sua danação é ter passado de um misantropo a alguém engajado em transformar algo, baseando-se em um ideal para viver. Assim, jogando fora sua racionalidade estrita, despe-se das teorias e faz o que qualquer um gostaria de fazer. Tal mudança, desastrosa, só pode ser fascinante. Ou, como diz a certa altura o narrador de A Era do Rádio: “é uma coisa maravilhosa ter como professor alguém que você já viu pelado, dançando em frente ao espelho”.
Bruno Cursini
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Texto de Guilherme Savioli (contra)
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