Que Horas Ela Volta?
Que Horas Ela Volta? (2015), de Anna Muylaert
No cinema brasileiro recente, instalou-se uma nova obsessão: a relação de forças entre empregado e patrão, que tem na figura da doméstica a sua Mulher Maravilha. Quase todo filme mais ou menos artisticamente bem-sucedido dos últimos cinco anos tratou, com maior ou menor ênfase, deste assunto. Que Horas Ela Volta? se apresenta em um momento em que esse esqueleto de obras, unidos pelo colágeno da boa intenção, já está montado, tornando impossível a fruição neutra por parte do crítico ou do espectador menos ingênuo. Muitos automaticamente abraçam a causa, dada a relevância social do tema, outros cruzam os braços e negam o afeto pelo mesmo motivo.
Em vários casos, no entanto, o que ocorre não é um problema de tema, e sim de olhar. É a maneira como esses filmes todos olham para a classe média e para as domésticas que deve ser questionada, não simplesmente a escolha do assunto. Casa Grande, Que Horas Ela Volta? e até O Som ao Redor, por exemplo, se refugiam na boa e velha decupagem econômica, com a câmera ligeiramente distanciada, captando atores livres pra fazer do muxoxo seu santinho protetor da interpretação naturalista. É sempre aquele olhar cândido derramado sobre a apática pobre coitada vítima da mão invisível do patrão. Val é a desgraçada da vez: expressões pitorescas, olhar caído, figurino minuciosamente escolhido para ressaltar o contraste entre o brejeiro e “estrangeiro” – a personagem olhando para a camiseta dos Ramones como o faria Mazzaropi. Vejo Regina Casé se regalando e vivendo o sonho profissional de finalmente dar vazão à persona construída fora das telas em um papel feito sob medida, tal qual um Steve McQueen em Le Mans. Que delícia, brincar de empregada, mimetizar um sotacão, ser o Ribamar que ao invés de morar no Largo do Arouche, vive no Morumbi.
Não há dúvidas sobre a qualidade das imitações. Os dois primeiros longas de Anna Muylaert atestam sua habilidade como diretora de atores, além de uma capacidade acima da média do cinema brasileiro para construir tipos. Habilidosa roteirista, faz do desenho da curva dos arcos dos personagens ser mais sutil do que a sinuosidade carnavalesca presente em Casa Grande, mas, ainda sim, a megera cujo cabelo curtinho se estende até a nuca em um ridículo rabinho e o calvo apático molestador de adolescentes evidentemente representam o mal, a Classe Média do Diabo, na mais simplória ilustração que acompanha a superficial leitura do embate de classes no Brasil. O roteiro consegue aguentar a coceira da denûncia até o segundo ato, escondendo um pouco os chifrinhos e o tridente pontiagudo da dupla, fazendo o espectador acreditar que talvez exista alguma bondade genuína em toda aquela polidez de gestos e fala, ao invés de uma estratégia de dramaturgia (nos é possibilitada a empatia com os vilões apenas para que o baque seja maior quando lhe são reveladas as verdadeiras faces). Assim como Val quebra a alça da bandeja enquanto a polia, Muylaert logo arrebenta a sutileza, e o famoso olhar “crítico” se impõe. Tudo começa no travelling in que avança para um rastro vazio do acesso de raiva da patroa que bate à porta com violência, ao saber que a filha da empregada ocupará o quarto de hospedes. Ao, literalmente, levar pela mão o público para dentro do vazio que é o corredor sem vida, sem calor e sem sotaque que é a classe média brasileira, Muylaert trai toda a pretensa isenção distanciada presente no restante da obra. O travelling, aqui, não revela coisa alguma: é apenas o gesto pesado da diretora que finge conduzir o filme com mãos leves, é a reiteração, sem imaginação, daquilo que já sabe desde o início do longa, ou mesmo antes da sua realização.
Que Horas Ela Volta? é o quê, senão uma insistência de duas horas? O filme já está dito (e é isso mesmo: dizer, falar, declamar…) no prólogo e na pergunta retórica do título. O prólogo deixa absolutamente evidente quem são os peões brancos e quem são os peões pretos nesse xadrez social. A cena seguinte é sempre a reiteração de uma ideia pré-concebida, o que nos leva a mais óbvia das constatações, que, incrivelmente, parece pouco incomodar: a de que a única motivação do longa é “discutir” uma questão. O filme vai se construindo em acúmulos: na cena do jogo de café, havia ficado bastante evidente o descaso da patroa para com o presente. Toda uma engenharia de signos caricatos (celular, macbook, publicidade, moda, entrevistador meio Clodovil meio personagem do Hermes e Renato) é posta a serviço daquilo que já se espera, embora Muylaert tenha tentado disfarçar, como já mencionando, com a polidez. Espera-se que a patroa seja malvada. Apesar de tudo, a cena realmente mostra o desprezo de uma e a ignorância da outra por meio do gesto (a caixa do presente não é aberta pela aniversariante) e do não dito, resultando em escolha genuinamente interessante. O embate de classes, a luta da doméstica de bom coração e mau gosto contra a megera de mau coração e bom gosto, é orquestrada pela mise-en-scène. Mas a imagem parece não bastar, o gesto, só o gesto, é algo pouco enfático: necessita-se que Val tenha um monólogo para expor a retumbante singeleza e, em última instância, todo o desarranjo cognitivo que é a marca da personagem. O balbuciar, as reiterações e as frases ditas pela metade lembram o comportamento da criança durante a alfabetização, ao mesmo tempo que remetem a motivos cômicos muito comuns no repertório do público ligeiramente habituado com aquele tipo de comédia, célebre no Brasil, em que atores adultos usam chapéus “engraçados”, tais como Chaves, Mr. Bean, Ernst, Godiniz (o momento suscita a famosa pergunta: os que riem da cena, riem do quê? Riem de quem?).
Segue-se o que poderia ser um belo momento: a steady cam de atenção totalmente voltada a Val a servir as madames, que jamais encaram nos olhos a empregada. A imagem, sendo esse objeto incomodo que fica entra o discurso e o receptor, precisa ser perfurada de algum jeito e nada melhor do que a manifestação oral para garantir que o objetivo do filme seja cumprido: é necessário que a patroa vocifere contra a bandeja de mau gosto, é fundamental que, mais uma vez, ela diga, com a voz da autora, o quanto a classe média é insensível e nojenta, com suas louças suecas e seus sucos de erva doce.
Daí em diante, a sarna toma conta. A coceira é tanta que rasga a pele já machucada e expõe, finalmente, o que corria de modo subcutâneo através de todo Que Horas Ela Volta? (vale lembrar: ridicularizar a classe média). As duas tendências correntes manifestam-se de novo: pela oralidade, temos a patética cena do pedido de casamento. Enquadramento indeciso, não está nem com ele, nem com ela, resultando em algo tão hesitante quanto o próprio comportamento do homem, medroso, dúbio, sacana. Ao evitar o close e ao negar as expressões da adolescente pela escolha do ângulo, Muylaert está simplesmente executando o dispositivo armado no título, traduzido pela câmera fixa à meia distância, que, assim como Carlos, esconde segundas intenções por baixo da voz serena. Se a resposta já está dada, se as convicções já estão todas firmadas, para que filmar? Espanta que em uma longa-metragem supostamente tão humano, tão cheio de boas intenções, a vida seja tratada com tamanha automaticidade, que o drama seja tão sumariamente excluído. Não há qualquer interesse em fazer entender aquela parte do universo do Morumbi, da cozinha em que a doméstica é “dona” da geladeira. Quando se atinge o ápice da transgressão de fronteiras – o patrão pedindo a mão da filha da empregada, na cozinha - o filme prefere a resposta pronta (como é patética essa classe média) à pergunta, qualquer pergunta. E, recordemos, não estamos diante de um Bresson ou do casal Straub-Huillet: o esvaziamento aqui não é visão de cinema, mas catarata.
A outra tendência, a expressão da dualidade por meio da metáfora, é ainda mais cruel: a gorda e bem nutrida patroa, incapaz de se servir sozinha, é, baleia de cetim, encalhada por Muylart na cama, engessada graças ao acidente de carro. Mascarada de lição de causa e efeito encontrada em manual de roteiro – Bárbara passou a tratar Val com mais rispidez por estar sofrendo as consequências psicológicas de um acidente –, a analogia é mais uma evidência da ambiguidade moral de Que Horas Ela Volta?, a ambiguidade que se permite lançar mão de estratégias tão grosseiras e carregadas de preconceito quanto as atitudes dos personagens que o longa finge condenar.
Mora no coração de uma parte do cinema brasileiro o fetiche apaziguador do bom pobre, o culto ao reino mágico da periferia. O sutil Que Horas Ela Volta? termina como o gritante Casa Grande: com o retorno à periferia, a volta ao conforto do puxadinho. Essa ode ao tijolinho à vista, perpetuada em várias telas, esconde um desejo conformista e, em última instância, um anseio de separação e de manutenção das fronteiras entre margem e centro, por parte, é claro, da classe média a que geralmente pertencem estes cineastas. A imagem é um organismo vivo e arisco, que trai a confiança daqueles que não aprenderam a respeitá-la: o retrato da felicidade proposto no encerramento destes dois longas mostra o quão verdadeiramente deterministas são seus autores, ávidos por manter as coisas como estão.
Deitada na cama, apática, a ordem se estabelece na fuga para a inconsciência dos olhos fechados, do sono. Era só uma brincadeira. Como a dizer: “Meu pedido não era sério, não”.
Wellington Sari
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