Vida Cigana
Vida Cigana (Dom ZaVesanje, 1988), de Emir Kusturica
Lançado em 1988, Vida Cigana é o terceiro longa-metragem de Emir Kusturica. Após uma consagradora estreia, sete anos antes, com Você Se Lembra de Dolly Bell? – prêmio de cineasta debutante em Veneza e da crítica na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo –, realiza Quando Papai Saiu em Viagem de Negócios, vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes.
Em comum, estas três obras partem de um olhar afetivo sobre um núcleo familiar bastante particular para revelar o complexo sistema social que os insere. Entretanto, se em seus dois primeiros trabalhos um tom histriônico e o desfile de figuras caricaturais eram apenas timidamente sugeridos, Vida Cigana pode ser considerado como a primeira vez em que o seu cinema surge pleno, utilizando-se de um retrato comunitário mais como uma base para devaneios líricos do que para críticas social e histórica. Seu enredo não poderia ser mais adequado, uma vez que toda a mística deste povo, marginalizado por definição, nos surge simultaneamente bela e ridícula, melancólica e festiva, amável e rude; em suma, kusturiciana.
Perhan, interpretado pelo talentoso Davor Dujmovic (revelado em Quando Papai Saiu em Viagem de Negócios, e que viria a cometer suicídio aos 29 anos), é um jovem bastardo que vive em uma pequenina casa na periferia de Sarajevo. Além dele, sob o mesmo humilde teto, uma avó curandeira, uma irmã caçula aleijada e um tio com alguns bons graus a mais de demência do que os outros habitantes deste local – acredite: isso quer dizer muito!
Por sua precária situação financeira, o rapaz é rejeitado pela família da garota por quem é apaixonado. Parte à Itália, onde acaba envolvendo-se em diversas atividades ilegais. Vagando por pontos turísticos de Milão e Roma, o ingênuo Perhan deixa-se corromper de maneira quase lúdica: sua ruína só começará a desenhar-se no instante em que ele passa a desconfiar de que sua amada, que ficara em sua antiga comunidade, tenha perdido sua credulidade. Pouco importa se o filho que ela agora espera é legítimo: a mera dúvida disso basta para suspender a inocência e o arrebatamento de ambos.
Como anunciado na felliniana apresentação dos personagens, onde uma ventania domina a banda-sonora (algo que se repetirá em momentos-chave da narrativa), Vida Cigana é, sem dúvida, uma “história de amor” – mas não apenas. É, sobretudo, uma história de formação, de ascensão e queda, com a diferença de que, sendo esta uma obra de quem é, a pureza do protagonista jamais será completamente quebrada, ao contrário do que ocorre com muitos a sua volta, dos dois lados do mar Adriático.
A inserção nestes cenários e nestas vidas é notável: do dialeto no qual o filme é falado (romani), passando pelos rostos destes maravilhosos e improváveis intérpretes, Kusturica mostra, com uma ternura invulgar, a tradição e o cotidiano de uma cultura estigmatizada, e o faz sem negar ou julgar quaisquer atividades ilícitas, indo de uma rotina repleta de pequenos furtos até o tráfico de crianças e à prostituição.
Talvez sua maior façanha esteja justamente aí, ao assumir todo este imaginário a seu favor, jamais vitimizando seus personagens mas contrastando estes costumes lendários e suas decorrentes imagens oníricas com variadas atitudes e necessidades das mais concretas ordens, por vezes sob um registro beirando o documental: para cada imagem que poderia ter saído de um filme de Andrei Tarkovski (e estes vilarejos em ruínas estariam muito longe da devastada Zona, de Stalker? E o que dizer sobre a telecinese do protagonista, fenômeno aparentemente tomado com naturalidade por todos ao seu redor?), uma outra nos jogará de volta à realidade, à tragédia ou à estupidez inerente a ela, seja na insanidade pura e simples de gestos insólitos como uma imitação de Bruce Lee, ou no correr de um peru de estimação, prestes a ser funestamente cozido.
Através das contradições entre cada um destes planos e de cada imagem (e sons, uma vez que a trilha-sonora, composta por Goran Bregovic, é onipresente), o atordoamento do espectador deixa-o também apátrida, sem certeza alguma de exatamente onde está e para onde será conduzido. Quase três décadas depois destas filmagens, ao nos depararmos com um novo trabalho do cineasta, tal sentimento não poderia estar mais longe da verdade. Se é aqui onde a forma e o discurso do cinema de Kusturica se instauram é, também, quando este universo é retomado – com Gata Preta, Gato Branco, em 1998 – que seu vigor se torna uma evidente repetição autorista. Mas tal constatação não pode empalidecer esta história da carochinha tão habilmente inserida em um território onde, normalmente, seria terra fértil a um humanismo de araque ou a um dramalhão pseudo-politizado.
Bruno Cursini
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