Ano VII

FICA 2015

quinta-feira ago 27, 2015
My Name is Salt

My Name is Salt

 

FICA 2015: Meio ambiente ou cinema?

Por Sérgio Alpendre

Respondendo à pergunta do título: pode ter os dois. É possível fazer um festival temático, com filmes que passam pela preocupação com o meio ambiente, sem abrir mão do cinema. Essa é a lição que o FICA, em sua 17ª edição, mostra ainda não ter aprendido (ou aprendeu e desaprendeu).

O que temos na cidade histórica de Goiás é o tema em primeiro lugar. Não importa se é bem filmado, se tem preocupação estética ou algum ingrediente de inquietação artística. Se o filme trata de um assunto importante dentro do tema, é selecionado. Como o tema é meio ambiente, a visão de paisagens é, ao que parece, uma garantia de imagens bonitas. Talvez tenha sido esse o critério, pois pudemos ver uma série de belas paisagens por lá. Mas o que são imagens bonitas? Bonitas pelas paisagens naturais? Mas aí as paisagens é que são bonitas, não necessariamente as imagens (se mal filmadas, podem ser um horror, mesmo que mostrem a Foz do Iguaçu. E se for para ficar só nisso, é preferível acompanharmos os canais derivados da National Geographic.

Temos uma programação enorme, que poderia ser enxugada em filmes mais cinematográficos, excluindo aqueles que parecem foragidos de algum canal da TV paga. De repente, filmes históricos (há um monte deles) que privilegiassem a temática ambiental poderiam compor a programação fornecendo um rico panorama da discussão no decurso dos tempos.

Imaginemos uma série de curtas do Vittorio De Seta (como os que passarão em outro festival, na vizinha Pirenópolis) enriquecendo a programação do FICA? Um Flaherty, um Ivens, um Herzog ou um Kaneto Shindo. Opções não faltam, e mesmo no cinema contemporâneo, mesmo nos últimos dois anos, haveria justificativa para se programar filmes que passassem pela temática, ou mesmo a abordassem frontalmente, sem que o cinema fosse negligenciado.

Isso não acontece, ao menos como gostaríamos, e infelizmente temos um festival que fica no meio do caminho, com seus pontos de interesse, suas surpresas, mas uma série de filmes que não contribuem em nada para a arte, ainda que, muitas vezes, sejam interessantes de se ver.

O festival trabalha principalmente com inscrições? Que se abra para produções outras, para filmes que possam ser convidados. Festivais temáticos sofrem demais se programarem só ou majoritariamente filmes que foram inscritos.

Os atrativos na Cidade de Goiás são inúmeros: a cidade é histórica, tem um belo coreto no centro da cidade, e uma boa gastronomia, com destaque para o inesquecível empadão goiano. Aqui se pode ver um céu muito estrelado, e à noite o clima refresca bastante, fazendo com que aguentemos melhor o sol quase insuportável do dia. O clima é todo propício a um belo evento cultural, e em muitos momentos sentimos que o FICA tem a vocação de ser um importante polo de discussão cinematográfica em uma região ainda carente de filmografia. É trabalho longo, mas de recompensas certas.

Chegamos facilmente à conclusão, portanto, que o festival ainda não se aproveitou de seu potencial.

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Para esta cobertura, resolvi ver toda a sessão da ABD, que contava com 21 curtas goianos. Tendo conhecido parte da recente produção alagoana em dezembro, ajudado na seleção de Votorantim do ano passado, com muitos curtas da região de Sorocaba, e tendo acompanhado o progresso dos alunos da Escola Inspiratorium, percebi em mim um crescimento da curiosidade do que estão fazendo os jovens no Brasil, mesmo chegando à inevitável conclusão de que a imensa maioria dos filmes fica bem abaixo do que seria o mínimo ideal, e também levando em conta a pouca experiência da quase totalidade dos realizadores. É o percurso quase utópico rumo a uma pedagogia cinematográfica que me interessa. Ver como, afinal, eles estão aprendendo. Acompanhar o processo de estabelecimento de uma filmografia regional, num país de tantas diferenças. Poucos chegam lá. Mas é necessário fazer o possível (seja ensinando, seja criticando) para que esses poucos sejam mais numerosos e mais reconhecidos.

Vi, também, o máximo possível da Mostra Competitiva de filmes ambientais, que neste ano estava com muitos filmes goianos. Disseram por aqui que vim num ano de baixa, e que os dois anos anteriores foram bem melhores, no que obviamente não tenho como concordar ou discordar, pois é meu primeiro ano aqui. Por outro lado, disseram também que neste ano, com a crise, o festival deixou os eventos periféricos de lado e se concentrou na exibição de filmes (se bem que não dá para chamar um show de Caetano Veloso, atração de anos atrás, segundo me conta o Cid Nader, de periférico… bem, vocês entenderam). O grande problema dessa Mostra competitiva, mais do que ter muitos curtas goianos (seriam eles melhores que os não selecionados?), é aquele apontado no início deste texto, da ditadura do tema. Afinal, se fosse um festival só de curtas feitos no estado de Goiás, me interessaria bastante, pelos motivos apontados acima. De todo modo, ver os filmes da competição foi uma tarefa mais dura que a dos curtas goianos (que no geral me pareceram bem inferiores aos alagoanos que vi na Mostra Sururu, mas pelo menos revelam a ambição de fazer cinema) ver filmes americanos, venezuelanos, brasileiros e franceses, sempre com a preocupação ambiental predominando sobre a preocupação cinematográfica (que muitas vezes inexiste). Foi um tanto decepcionante para um festival tão tradicional e tão simpático.

Segue, então, breves linhas (às vezes muito breves) sobre os 36 filmes que vi no FICA 2015.

 

Mostra Competitiva de temática ambiental

A Ria por Dentro

Vemos sempre com interesse esta peça audiovisual de Portugal. O termo audiovisual, aliás, vem bem a calhar, já que não há interesse cinematográfico em A Ria por Dentro. Ou, levando em conta que o festival se abre a vídeos, seria melhor dizer que não há interesse artístico. Audiovisual, então, serve para abarcar o que antes era considerado outra coisa. É o assunto, e nada mais.

Últimos Refúgios: Reserva Biológica de Duas Bocas, de Alexandre Barcelos

Na mesma toada do curta português, mas este ao menos tenta algumas abstrações para dizer a que veio.

Guinée: Le Territoire des Oubliés, de Philippe Lafaix

Forte mais pelo que mostra do que pela maneira como mostra. Ou seja, está bem no espírito desta edição. Nos melhores momentos, lembra, no tom, um Las Hurdes menos ousado e inspirado. Sinto falta, mais uma vez, de cinema. Mas é um filme que precisa ser visto.

Desculpe Pelo Transtorno: A História do Bar do Chico, de Todd Southgate

Ninguém aguenta minha repetição, então só vou dizer que é mais um filme interessante de se ver sobre um bar mítico da praia de Campeche, em Florianópolis, mas que não tem nada de especial enquanto expressão artística.

El Rio que nos Atraviesa, de Manuela Blanco

Idem, com a diferença que se passa na Venezuela, e mostra as populações que vivem à beira do poluído Rio Orinoco.

Baque Solto em Buenos Aires, de Ângelo Lima

Buenos Aires, antiga Jacu, Pernambuco. Um vendedor de doce japonês explica que é pernambucano o doce, mas é chamado de japonês porque é de alta qualidade. O curta é sobre o envolvimento das pessoas da cidade com o maracatu, quando chega o carnaval. É o que dizíamos: belas imagens antropológicas com algumas entrevistas. Fórmula gasta, mais um filme esquecível.

Índio Cidadão, de Rodrigo Siqueira

Começa com uma voz estranha. Parece uma senhora simpática que está a falar. É uma voz que já chama a atenção para o problema de que o filme vai tratar: índios vão a Brasília para protestar. Nem é necessário dizer pelo quê, ou contra o quê. Se há um povo que precisa protestar e gritar, é o índio. Há mais, claro. Praticamente 95% da humanidade é roubada ou explorada pelos 5%. Os índios e os negros são mais. Tirando o tema, que já vimos ser muito justo, o que temos? Um média, quase longa, com 52 minutos, cheio de imagens interessantes de arquivo. Não faz feio, mas também não é nada especial.

Ainda Existe, de Pedro Diniz

Sim, é mais um filme sobre carros de bois. Alguns planos interessantes, outros escolares. Nada de novo no front.

My Name is Salt, de Farida Pacha

Com um olhar totalmente documental, a presença cinematográfica é muito mais notória neste duro relato das famílias que trabalham com a extração de sal, no litoral indiano. A desdramatização reflete a tônica do cinema contemporâneo, mas ainda assim o filme não deixa de se abrir para o drama inerente à condição das pessoas retratadas. O drama vem forte, apesar de indireto. Vem também conforme nos acostumamos a esses rostos, esses corpos castigados pelo sol. O desenquadramento em alguns planos coloca o espectador no meio da paisagem, como se estivesse ali, junto dos personagens. Num ritmo lento, o ritmo necessário ao trabalho, com um cuidado de composição raro de se ver, o filme vai deixando suas marcas: a menina dançando no meio de um deserto agraciado pelo começo da noite, as abstrações criadas no meio da paisagem natural, os rituais característicos do trabalho, o rádio apoiado em dois chinelos, o belíssimo trabalho de fotografia nas cenas de penumbra (não à toa, o nome do diretor de fotografia Lutz Konermann aparece logo depois do de Farida Pacha nos créditos, indicando a proposta claramente visual do filme), a caranga bizarra em movimento, o tom sempre sóbrio. É sem dúvida o melhor filme que vi no FICA 2015.

Maria Macaca, de Lázaro Ribeiro

Filme sensação local sobre uma carregadora de água da Cidade de Goiás. Um tanto amador na direção, mas isso não quer dizer nada, pois tem montes de blockbusters que naufragam no analfabetismo visual completo. Dentro da Mostra ABD de filmes goianos, cairia até bem. Numa mostra competitiva, com filmes do mundo todo, mesmo com o cinema em segundo plano, fica pálido demais.

Matias, de Ricardo Martensen e Felipe Tomazelli

Eis um curta cinematográfico. Numa região rural a 165 quilómetros da capital paulista vive Matias, em sua cabana, dando de comer aos cachorros e galos que se atropelam pelos alimentos. Tem duas câmeras lentas que, francamente, parecem mais coisa de videoartista que escorrega para a propaganda de companhia de viagem. Mas os momentos corriqueiros, principalmente aqueles em que Matias está com seus animais, são bem fortes. Depois do indiano My Name is Salt, este foi o melhor que vi no festival.

O Veneno Está na Mesa II, de Silvio Tendler

Contra o agrotóxico. Quem não é? Sinceramente, nem quero ver o I. Este é alarmismo cinematograficamente nulo, embora justificado.

Babilônia, de Celso Martins

Curta colegial sobre fazenda do século XIX, que vai passando de geração para geração. A atual proprietária é uma senhora muito simpática, mas o curta , em seu melhor, não passa do medíocre.

Galus Galus, de Clarissa Duque

Curta de animação venezuelano que evapora da memória.

No Jile, de Carolina Dávila

Mais um curta de animação venezuelano. Este, contudo, é melhor que Galus Galus. Ao menos foi o que pensei quando vi. Sua animação é mais incomum, e as ideias visuais salvam o conjunto frouxo.

Girassol de Plástico, de Amarildo Pessoa

Mais um curta que insiste em escapar de minha lembrança. Nem com a sinopse ele retornou. Recorro, então, a um resumo da anotação que fiz após a sessão: medíocre.

 

Mostra ABD de curtas goianos

 

Batalha das Máscaras, de Iuri Araujo

Animação de dois minutos, e ainda por cima o primeiro da sessão. Nem bem nos instalamos e ela já acaba. Qualquer julgamento seria injusto numa situação dessas.

A Vida de Cada Um, de Vasconcelos Neto

Em meio a tantos filmes amadores, um filme com um olhar curioso é um alento. A preocupação maior aqui é com uma poética das imagens. Nem sempre acerta, mas são 11 minutos simpáticos que passamos no cinemão (nome do local onde foram exibidos os filmes).

A Pedra, de Adriana Rodrigues

Com calma, imagens bem pensadas, mas com uma trama meio boba. Dentro dessa mostra de filmes goianos, é acima da média.

O Preço da Passagem, de Ernesto Rheiboldt e Thomaz Magalhães

Alguns planos e alguns cortes são péssimos. Mas existe uma verdade quando a mãe chora a morte do filho. Isso salva o filme de ser um desastre.

Dergo!, de Ricardo Alvez

Por que diabos este objeto não identificado está na programação?

A Praça Falou Mais Alto, de Ranulfo Borges

O que é isso? Propaganda política depois de 21 anos da atuação de um agitador? Ou justiça sendo feita a um nome importante da região? O diretor vai dizer que é o segundo. Confesso que a dúvida continua comigo.

Sob Nossos Pés. de Marcela Borela, Vinícius Berger e Henrique Borella

Três diretores alternando bons e maus momentos. O que será que é de quem? Tem emoções num encontro, e uma dose forte de amadorismo, no pior sentido. Coluna do meio.

Porfirio, de Henrique Borella

O desaparecimento de um preso político de Riachão, em 1972, auge da ditadura militar. Esse é o tema de Porfírio, narrado só com fotos, numa opção mal desenvolvida e injustificada.

Enquanto a Família Dorme, de Getúlio Ribeiro

Pareceu haver uma unanimidade em relação a este curta, que é suficientemente bem filmado (dadas as circunstâncias) e estranho para vermos sempre com interesse. Mas do que se trata? É só a estranheza mesmo? Não sei, me pareceu faltar alguma coisa. De todo modo, nenhum curta da mostra ABD é plenamente satisfatório.

Tudo Que Eu Preciso, de Wadson Alvim

Mais um filme de solidão, que aposta na desdramatização tão em voga no recente cinema brasileiro. Não consegui enxergar verdade, só pose.

Ainda Existe (já comentado na mostra competitiva)

Cabocla, de Pedro Otto

Filme constrangedor e indefensável com a participação do veterano ator Roberto Bomfim (de filmes como Chuvas de Verão, Terror e Êxtase e Fulaninha).

Em Terras Estrangeiras, de Absair Weston

Bela foto em preto e branco, bela ambientação, um filme muito interessante sobre a impossibilidade de comunicação. Quando surgem os porquês, enfraquece, e ainda vem um golpe de misericórdia no final, com os letreiros totalmente desnecessários. Uma pena.

Rascunho da Bíblia, de Márcio Jr. e Márcia Deretti

Filme-minuto, oswaldiano de filiação, mas uma piada que acaba sem ser totalmente compreendida.

Viagem na Chuva, de Wesley Rodrigues

A única animação animadora (perdão!) que vi no FICA 2015. Ainda assim, superestimado. Por ser acima da média, até merece os louros momentâneos. Mas esse caminho onírico que o filme pega pode ser melhor trabalhado. Na linha Alê Abreu com algo de Miyazaki, mas alguns degraus abaixo, obviamente.

Mañana C’est Carnaval, de Alyne Fratari

Arrigo Barnabé, um gênio, utilizado da maneira mais boba, dentro de uma estética Claudio Assis. Dá um tempo.

Mero, de Ksnirbak

Seria Kabrinsk o sobrenome do diretor? Um filme experimental permeado pela tolice.

Céu Vermelho, de Ângelo Lima

Não é bem experimental. Está mais para institucional histórico sobre as estátuas de Congonhas. É mediano, mas perto dos curtas anteriores é um bálsamo.

O Dia Secreto, de Benedito Ferreira

Observação do cotidiano. Uma inspiração de Rohmer e de Moullet, pelo que me pareceu (nos números que dividem os pequenos capítulos). Muito simples e muito rápido, mas percebe-se um olhar, uma inquietação que poderia ter explodido caso tivesse mais a dizer.

1989, de Rei Souza

Um documentário interessante sobre o fato político mais importante do ano no Brasil: a primeira vez que pudemos votar para Presidente. Collor vs. Lula. Santinhos no chão das cidades. Deu Collor. Sabemos o que mais deu. Curta sóbrio, seco, direto, embora lhe falte maior ambição.

O Esquema, de Matheus Leandro

Existe uma palavra mágica chamada adequação. O tema buscado por O Esquema não é nada adequado às condições de produção, assim como o tipo de direção pretendido por Matheus Leandro. Resultado: parece brincadeira de criança que ganhou uma câmera de presente do pai e resolveu chamar os amigos do bairro para tirar onda. Só que no lugar das crianças, vemos adultos. E aí? A imagem de uma pizza sendo comida remete aos piores videoclipes que eu vi. Cid Nader me disse que, na sua opinião, é o curta mais fraco do diretor, que já fez coisas interessantes, incluindo a boa fotografia de outro curta da mostra: Em Terras Estrangeiras.

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