Ano VII

Passo para trás

segunda-feira ago 3, 2015
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Blackhat

Michael Mann dá um passo para trás: Blackhat

Por Sérgio Alpendre

Blackhat, décimo primeiro longa para cinema de Michael Mann, foi esnobado pelo circuito comercial brasileiro, habituado a entupir o espectador de toda a sorte de enlatados americanos (predominantemente) e europeus, e a desprezar nomes com muitos serviços prestados à arte. O fracasso de sua estreia americana provocou esse descaso. Nesta edição da Interlúdio, a primeira de uma nova fase da revista, uma fase de periodicidade fixa e mensal, resolvemos pensar em Blackhat e na carreira de Michael Mann, com três textos que formam uma mini-pauta. Neste, o mais panorâmico, procuro repassar a carreira do diretor tendo em vista os acertos e os inúmeros erros deste seu último longa. Divido em sub-capítulos para facilitar a leitura, também porque o texto acabou ficando mais longo do que eu gostaria.

Introduzindo as questões

Blackhat tem momentos bons e momentos constrangedores, além de uma série de cenas que estão no meio disso, em gradações diversas. Tem sido muito comparado a Miami Vice, e é justa a comparação pelo que os dois filmes trazem em suas dramaturgias (dois homens investigam um crime, um deles se envolve com uma chinesa) e composições visuais (abstrações com luzes, dissolvição dos personagens dentro dos ambientes ou diante de fundos urbanos ou naturais, como disse Jean-Baptiste Thoret a respeito do estilo de Mann). Penso, contudo, que a comparação não se sustenta por muito tempo, e um exercício interessante seria voltar aos primeiros filmes de Mann para cinema – Profissão: Ladrão (Thief, 1981), A Fortaleza Infernal (The Keep, 1983) e Manhunter (1986) – e também para o telefilme que realizou em 1979, The Jericho Mile, tendo em vista um percurso singular dentro de Hollywood. Talvez resida nesses primeiros filmes a base do que deu certo em Blackhat, e num espírito maligno destes tempos cinematográficos (sobretudo o aspecto infantil e descuidado das produções) o que deu errado. A dissolvição do ser humano na paisagem urbana, de que fala Thoret a respeito do estilo de Mann, por exemplo, está presente desde Thief. Também os protagonistas obsessivos e obstinados. Há outros sinais, evidentemente, e é disso que falaremos aqui.

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Thief

A cena dos irmãos chineses conversando do alto de uma torre em Xangai, ou a da chinesa com o protagonista hacker, mais tarde, ambas com a cidade iluminada pelas luzes noturnas ao fundo, remete diretamente a William Petersen em salas no alto de arranha-céus de Chicago ou Atlanta em Manhunter, e a diversos momentos semelhantes de filmes posteriores, com destaque para Colateral e Miami Vice. O prisioneiro Thor, digo, Nick Hathaway (Chris Hemsworth), que tem uma chance de liberdade quando chamado para desvendar crimes cibernéticos para o FBI, tem clara conexão com o prisioneiro perpétuo da Folson Prison que tem a chance da liberdade se correr pelo país nos jogos olímpicos em The Jericho Mile. Ambos são protagonistas obsessivos, que não arredam pé de suas convicções e não abrem mão de suas individualidades. Assim é também o personagem de Al Pacino em O Informante (The Insider, 1999). Seu Lowell Bergman, produtor do 60 Minutes, um dos programas de maior prestígio da CBS, faz de tudo para proteger uma fonte valiosíssima, porque ele sempre faz questão de proteger as fontes, custe o que custar. Quando sente que não pode mais confiar em seus superiores, pede demissão (“o que foi quebrado aqui, jamais será consertado”). Obsessivo também é o lutador Muhammad Ali, tanto nos ringues como no confronto com o governo dos EUA. E também o vilão de Colateral, vivido por Tom Cruise. Impiedoso e inabalável, fará de tudo para eliminar cinco vítimas que lhe foram encomendadas, assim como provocará uma mudança na mentalidade do taxista sem iniciativa interpretado por Jamie Foxx.

As abstrações são o melhor de Blackhat. Provocadas pelo focar e desfocar da câmera em movimento, num balé de luzes e cromatismos, elas se assemelham às abstrações que acompanham o primeiro roubo que vemos em Thief, e veremos em filmes seguintes, sempre que estamos numa cidade grande à noite, ou em momentos nos quais a ação é fundamental para alguma solução buscada pelos protagonistas. Por exemplo: a primeira luta de boxe em Ali, em que a ideia de nos colocar no meio da luta (utilizada durante todas as outras cenas de luta) é radicalizada, e faz com que algumas vezes só percebamos os golpes por sabermos que há uma luta. Outros exemplos: a estrada no início de A Fortaleza Infernal, a cachoeira em O Último dos Moicanos, as cenas nas casas noturnas na dobradinha de Dion Beebe (Colateral e Miami Vice).

Uma pergunta, contudo, se instala: por quê a câmera chacoalha tanto em algumas cenas de diálogo em Blackhat? Para forçar um maior dinamismo? Ou porque é cacoete do cinema atual mostrar incidiosamente que a câmera está na mão do operador? Só quem nunca operou uma câmera pensa que é inevitável essa tremedeira, pelo menos nessa intensidade empregada por operadores contemporâneos; e só quem nunca viu filme com ótima câmera na mão considera que o efeito pode ser empregado de forma assim gratuita. Não se trata de ser contrário à câmera tremida por antecipação. Mas se pensarmos no porquê de ela estar tremendo em certos planos de Blackhat, chegaremos à conclusão de que é puro modismo, algo bem distante nas câmeras tremidas de Glauber Rocha, Pasolini, Naomi Kawase, Philippe Grandrieux, de outros filmes do próprio Mann (O Informante, Ali, Miami Vice) e tantos outros, ontem como hoje, mas principalmente ontem.

Fosse só esse o problema de Blackhat, estaríamos ao menos no nível de Inimigos Públicos, outro filme em que a câmera treme abestalhadamente.  Mas não podemos fechar os olhos para sua fragilidade estrutural, que em parte pode ser atribuida ao roteirista estreante Morgan Davis Foehl, embora seja possível que o problema esteja também na situação atual de produção hollywoodiana, em que para continuar filmando um diretor deve se submeter a modismos e concessões. Difícil acreditar que Mann tenha sucumbido facilmente a elas. Por outro lado, como explicar ideias tão frágeis, dramaturgica e estruturalmente? Essa fragilidade, de qualquer modo, torna bem maçante entender os meandros da perseguição cibernáutica que acontece, em que hacker caça hacker. Só que nesse filme os hackers (anteriormente associados a nerds que desviaram do caminho da lei) partem para a ação como se fossem super-heróis, num corre-corre vertiginoso pelas cidades do mundo. E dá-lhe um hacker a correr atrás de criminosos como se fosse Schwarzenegger, a lutar como um agente secreto muito bem treinado, a envolver-se sexualmente com a mocinha, a dizer frases de efeito como se fosse Liam Neeson. É duplamente estranho, então: Chris Hemsworth interpretando um hacker, e um hacker atirando e lutando como um agente secreto dos bons. Onde está a obsessão por autenticidade que era a base da estilização dos filmes de Mann? O ator, de fato, está mal no papel de Nick, pois continua sendo Thor. Mal escolhido e mal dirigido, o que é estranho ao cinema de Michael Mann. Tínhamos miscasting em outros filmes. Johnny Depp como John Dillinger, ou Tom Cruise como um implacável assassino de aluguel. São atores mal escolhidos, mas bem dirigidos. Talvez Mann considerasse a hipótese de fazer com que Hemsworth rendesse melhor. Mas o fato é que há vários atores ruins ou mal escalados em Blackhat. Esse descuido com a autenticidade, por sinal, é o maior responsável pelo desinteresse na investigação, que não convence em momento algum e, de resto, parece uma cópia carbonada e mal feita da investigação de Manhunter. O que vemos em Blackhat são adultos que parecem crianças brincando de detetives, com diálogos frágeis e reações risíveis – até a ótima Viola Davis parece deslocada como a agente do FBI. Os momentos de invenção visual de Mann, que não são poucos, livram o filme do completo fiasco.

A ideia de que Blackhat é a realização de um Mann diferente daquele que fez Thief e Manhunter, contudo, é absurda. Desde o início da carreira ele pratica a alternância entre a procura pela abstração (A Fortaleza Infernal, Manhunter, Colateral, Miami Vice) e a dramaturgia mais reta (O Último dos Moicanos, O Informante, Ali, Inimigos Públicos). Obviamente os filmes que listei no primeiro grupo têm elementos do segundo, e vice-versa. Estamos falando aqui de predominância de uma tendência sobre a outra. Fogo Contra Fogo (Heat, 1995) é o ponto culminante dessas duas tendências, é quando elas coexistem em perfeita harmonia, embora Thief não fique muito atrás nesse sentido. Estes últimos são justamente seus melhores filmes. Fogo Contra Fogo é na verdade quando a própria dramaturgia justifica melhor a estilização, uma vez que estamos lidando com espelhos, com gato que persegue rato, no qual se enxerga, e se torna cada vez mais parecido com o rato. Lembremos Pat Garrett & Billy the Kid, o melhor Peckinpah: Pat mata Billy e logo depois atira em sua imagem refletida no espelho. Matou porque era necessário, mas esse assassinato é também um suicídio. Em Fogo Contra Fogo é um pouco isso, e um outro tanto de matar o único que lhe faz sombra. Dois obsessivos ocupam um mundo pequeno demais, e só um deles deve sobrar, como os hackers que se digladiam em Blackhat, mas nunca com o mesmo peso, também porque aqui não temos Pacino e De Niro.

Sendo assim, mesmo com a tremenda mudança tecnológica dos últimos quinze anos, Blackhat é mais um passo no caminho que Mann tem percorrido desde seu primeiro longa para a TV, no fim dos anos 70, com alternâncias na dosagem de ingredientes e nas tonalidades. Mas é um passo para trás.

O apogeu de um cineasta

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Robert De Niro em Fogo Contra Fogo

Fogo Contra Fogo é o ápice do cinema de Michael Mann (e do cinema americano dos anos 90). Um duelo de atuações, em que Al Pacino começa conscientemente liberado ao overacting, e vai sendo controlado por Mann à medida que seu personagem se transforma. Essa transformação se dá um pouco pela influência de uma grande mente, a de Robert De Niro, gigante no filme. Mas também pela crise na relação com sua terceira esposa (Diane Venora) e sua enteada problemática (Natalie Portman). Seu personagem, o tenente da polícia de Los Angeles Vincent Hanna, é inicialmente extravagante, cheio de afetações e espaçoso. Fala alto em lugares públicos e usa meios não muito éticos para atingir seus objetivos. É obcecado em prender criminosos, e finalmente encontra um à altura de sua habilidade em Neil McCauley (De Niro). Neil é o contrário de Vincent. Quieto, age sempre com discrição. Não gosta de violência (como o Frank de Thief), mas a pratica se necessário (idem). Quer fazer mais um roubo e se mandar para a Nova Zelândia, ter uma vida tranquila (sonho de Frank, de Thief, mais uma vez). Seu lema, como grande ladrão de bancos, é “não se apegar a nada que se possa largar em 30 segundos ao sentir a tensão dobrando a esquina”. Precisamente o que faz Frank, que larga a esposa que ama porque está numa grande encrenca. É o que também acaba fazendo Neil McCauley (De Niro), com pesar. Por não querer abandonar pontas soltas, tem de agir de acordo com o próprio lema.

É sabido que o embrião de Fogo Contra Fogo é L..A. Takedown, telefilme que Mann realizou em 1989. A trama de gato e rato é preenchida enormemente, com o dobro da duração, no filme de 1995. Além disso, no telefilme os atores são deficientes, ainda que a direção inventiva de Mann conspense em grande parte esse obstáculo. Algumas ideias foram melhoradas no longa de 1995, e nesse sentido L.A. Takedown foi um importante ensaio. Outras ideias foram apenas encenadas com outros atores, repetindo falas e entonações. Como estamos falando de Robert De Niro e Al Pacino, claro que esses outros atores fazem muita diferença. De certo modo, a história de gato e rato já havia sido ensaiada em uma série que Mann supervisionou de perto como produtor executivo, chegando a dirigir um episódio da primeira temporada: Crime Story. Mas aqui, em que pese a excelência do material, e a superioridade (até onde pudemos ir) em relação à série muito mais badalada Miami Vice, estamos em Chicago, 1963, muito distantes da Los Angeles dos anos 90.

Tanto Thief quanto Manhunter têm cenas de confronto que funcionam igualmente como ensaios para a grande sequência de tiroteio após o assalto ao banco no miolo de Fogo Contra Fogo. Primor de encenação e realismo, essa grande sequência, como bem alertou o amigo Franklin Ruão, estudioso de técnicas de guerra, é uma das melhores representações de uma guerrilha urbana no cinema. De fato, o diretor conta que os atores tiveram treinamento em guerrilha urbana com um veterano da primeira Guerra do Golfo, como parte de sua obsessão com a autenticidade. Formalmente, a sequência é perfeita. O tempo preciso nos faz querer parar de piscar. A alternância de planos abertos e fechados nos colocam no centro da ação com tanta maestria que qualquer diretor de blockbuster atual daria um braço para fazer igual (se entendessem que é assim que filma, ou seja, estão em estágio anterior). Porque há um sentido de espaço que é vital para a sequência. Não nos perdemos em momento algum quanto à posição de cada um deles no tiroteio, mesmo com algumas mudanças de ângulo bem ousadas. Nada de “a câmera filma qualquer coisa” dos filmes de ação atuais. As duas cenas de tiroteio de Blackhat, mesmo sendo acima da média do cinema de ação atual, se comparadas a essa de Fogo Contra Fogo, parecem obras de um mau aluno do próprio Mann.

Não se trata de condená-lo à insignificância, num patamar em que Hollywood está mergulhada há tempos. Mann nunca será um diretor banal. Trata-se apenas de perceber que a atual conjuntura não lhe é favorável. A comprovação dessa conjuntura perigosa se encontra em Blackhat, após sérios sinais de alerta em Inimigos Públicos.

Voltando ao problema da câmera tremida

Para não pensarem que sou birrento, é necessário falar um pouco mais da câmera tremida, um problema maior para outros cineastas contemporâneos do que para Mann, exceto, como já escrito, em Blackhat. Como vimos, o questionável expediente surge na carreira de Michael Mann em O Informante. Podemos dizer que, em embrião, até antes, pois o começo de Heat tem uma cena de amor entre Pacino e sua terceira esposa que é filmada com uma câmera ajustadamente hesitante, como se quisesse fugir daquele momento de intimidade. Nada igual à de Ali, em que um movimento rápido sai do lutador para um de seus assessores, para logo depois ter um corte seco que nos manda novamente para o lutador, com a câmera na mesma posição anterior ao movimento. Esse é o tipo de associação do movimento com o corte que me incomoda no cinema contemporâneo, e não vejo como poupar Mann por fazer a mesma coisa. Contudo, é um momento isolado dentro de um filme com duas horas e meia, e devo lembrar que a perfeição não existe. No geral, em Ali a tremedeira da câmera se justifica, principalmente nas cenas de luta, em que parece estarmos dentro de uma coqueteleira. O pior é a tremida fake, feita para mostrar que a câmera está na mão, mesmo que uma câmera na mão não trema daquele jeito quando se está parado, filmando uma cena de diálogo. É o fake que me incomoda, não o tremor.

A ideia é que a câmera deve ser um organismo que está associado à respiração do operador, ou, se preferirmos, dos personagens. Como ninguém fica totalmente estático, a não ser que fique sem respirar, a câmera acompanha essa pulsação. Não vejo muito sentido nisso, mas é a única justificativa plausível para que esse efeito seja tão corriqueiro, não mais algo que incomode o espectador, como era até o início dos anos 90, mas algo que o espectador aceita e, logo, passe despercebido. Um modismo do cinema contemporâneo. Mann criava modismos, se ele criou, em seus primeiros filmes, o estilo urbano oitentista com toques de abstração e eletrônica que poucos conseguiram imitar a contento, e que atingiria muitos espectadores a partir do visual das séries que supervisionou (Miami Vice e Crime Story), se muitas pessoas começaram a usar blasers com ombreiras e camisetas por baixo por causa da série Miami Vice. Agora segue um modismo. Tristes tempos em que um autor se submete a esse tipo de coisa. Vejam a cena em que Carol Barrett (Viola Davis) vai ao quarto de hotel do agente Leehom Wang (Chen Dawai) para falar dos crimes de Nick Hathaway (Chris Hemsworth). A câmera treme como se estivesse nas mãos de um bebum.

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Al Pacino, em O Informante

O efeito, como vimos, surge em O Informante. Mas ali tinhamos uma desculpa – o efeito reportagem televisiva – que se não redime o equívoco, ao menos o atenua, e o roteiro fantástico escrito por Mann e Eric Roth segura nossa atenção e nossa tensão. Atenua também porque graças à proposta e à habilidade de Dante Spinotti, o diretor de fotografia, surgem cenas de incrível beleza fluídica. O mesmo efeito atenuante temos em Ali (2001), Colateral (2004), Miami Vice (2006) e Inimigos Públicos (2009), filmes que, em variadas medidas, tinham a câmera boba em alguns momentos, ainda que nem sempre em momentos justificáveis (principalmente no caso de Inimigos Públicos, o mais frágil dessa fase até então). Em Ali, principalmente, Mann usa muito a câmera na mão, por vezes balançando mais do que o natural, mas existe uma forte tensão, que envolve também o momento histórico em que o filme se passa, a luta de Muhammad Ali pela raça negra e pela religião muçulmana, que na verdade é a luta de quase todos os protagonistas de Mann, uma luta pela própria integridade. Essa atenuante não existe em Blackhat.

O Informante e Ali fazem parte de um dístico baseado em histórias reais e muito crítico à América. O primeiro fala da grande revelação contrária à indústria do tabaco. Narra um momento importante da luta contra o tabagismo nos EUA. Ou, contra o poder. O segundo conta a história vencedora do pugilista Muhammad Ali (anteriormente conhecido como Cassius Clay), até a antológica luta contra George Foreman no Zaire, documentada no longa Quando Éramos Reis. Também luta contra o poder. Ao narrar essas duas histórias reais, Mann parecia querer se afastar de vez da pecha de estiloso que então lhe era imposta, não sem razão, por muitos críticos. A câmera na mão procura, antes de emular o cinema experimental, associar-se aos anos iniciais de sua carreira, do documentário, da liberdade de representação. Essa ideia de realismo é discutível porque quando observamos uma cena, tentamos observá-la da melhor maneira possível. Um obstáculo entre nossa visão e a cena que se desenrola surge como maneira de saciar o olho que “quer superar dificuldades”, como formulou Heinrich Wolfflin. A câmera tremida não teria essa função de fazer com que nossos olhos superem dificuldades. Não consigo imaginar alguém querendo que a câmera trema porque seu olhar, naturalmente, pede esse tipo de dificuldade. Logo, a ideia de realismo é furada, assim como a da respiração que contamina a câmera (e que afinal tem a ver com realismo também). A não ser que nosso estômago queira também superar dificuldades.

Ponto passado, entremos numa cronologia.

O começo: filho da Nova Hollywood

Após três curtas (não vistos) mais ligados ao cinema provocador da Nova Hollywood – incluindo um documentário que registra trabalhadores dos Estados Unidos durante a Guerra do Vietnã (17 Days Down the Line, 1972) – e uma série de roteiros que escreveu para séries de TV como Starsky e Hutch (e também a direção de um episódio de Police Woman, em 1977), chega The Jericho Mile, um longa de ficção para a TV, dirigido em 1979. Mann havia trabalhado em Liberdade Condicional (Straight Time, 1978), de Ulu Grossbard, um veículo para Dustin Hoffman sobre um prisioneiro na condição explicitada pelo título. Não ganhou crédito algum por isso, mas a experiência documentando convictos na Folson Prison (cadeia imortalizada pela música de Johnny Cash), serviu como gênese para esse primeiro longa. A oportunidade se confirmou quando um produtor de TV lhe ofereceu o roteiro sobre um corredor muito rápido que estava preso, roteiro este que Mann alterou segundo sua personalidade.

As filmagens aconteceram na própria Folson Prison, com reais prisioneiros. Mann lhes ofereceu os pagamentos estabelecidos pelos sindicatos de atores, e com isso conseguiu negociar uma trégua entre as gangues que lá imperavam (os negros, os latinos e os white-power, todas presentes no filme). A procura por autenticidade marca, desde já, o cinema do diretor, como iria ficar evidente nas cenas de rua de Fogo Contra Fogo (Heat, 1995), na atividade dos ladrões em Thief e nas reconstituições históricas de O Último dos Moicanos (1992), Ali (2001) e Inimigos Públicos (2009). Autenticidade e estilização andam de mãos dadas em seu cinema. E dane-se que ele não gosta que falem de estilo a respeito de suas obras. Críticos não deveriam ser programados por vontades e caprichos de diretores, por melhores e mais dignos que sejam.

The Jericho Mile foi exibido na TV americana em março de 1979, estreando em salas comerciais de cinema da Europa no ano seguinte. Trata-se de uma obra portfólio, ou seja, uma demonstração de que Mann, ainda jovem, mais associado aos documentários de início de carreira e às séries de TV que ajudou a escrever, poderia dirigir um longa.

Rain Murphy, prisioneiro perpétuo de Folson Prison, impressiona as autoridades do presídio pela velocidade em suas corridas diárias. Querem que ele treine para os Jogos Olímpicos, mas ele não aceita. A situação se altera quando seu único amigo convicto Stiles cai numa armadilha e é assassinado por uma gangue. Ele aceita treinar, enquanto o pau come solto no presídio. Tudo vai de maneira mais ou menos convencional até quase a metade do filme (um convencional muito bem feito, diga-se de passagem, pois naquela época se dirigia bem para a TV, ao contrário de hoje, em que geralmente se ilustram roteiros, como no cinema). Há um ou outro plano mais elaborado, como aquele em que a tela é dividida pelas duas celas dos amigos. A coisa muda na cena do assassinato de Stiles e da descoberta de seu corpo por Rain. Mann se solta mais e faz uma pequena demonstração de estilo. A música cresce, numa tecladeira melodramática típica daquela época; a câmera se move com lentidão, surge um plano mais aberto e enviezado, em que Rain mistura-se com o ambiente como só Mann é capaz de fazer. Uma fusão mostra Rain correndo com raiva. Já adivinhamos que ele vai correr para continuar vivo. No plano seguinte, a câmera desliza pelos ambientes penitenciários como num filme de Fassbinder, embora Mann não abra mão de uma decupagem que privilegie o campo e o contracampo.

Há também uma surpreendente escalação do elenco. Geoffrey Lewis não é mais o alívio cômico ou caricaturalmente maldoso dos filmes de Clint Eastwood (ver O Último Golpe, produção da Malpaso de Eastwood com direção de Michael Cimino, e Doido Para Brigar, Louco para Amar, produção da Malpaso com direção de James Fargo, para ficar apenas em filmes feitos antes de The Jericho Mile). Aqui ele interpreta o diretor do presídio. Não um diretor sádico, como também nos acostumamos a ver nos filmes de prisão, mas um diretor pensativo, que procura ser justo com os prisioneiros. É uma de suas melhores atuações, num tipo de economia de expressão que Mann faria anos depois com De Niro em Heat. Ed Lauter, que nos impressionou como vilão em Golpe Baixo (The Longest Yard, 1974), de Robert Adrich, e normalmente faz tipos sisudos, ganha o papel de um homem decente e simpático, que procura ajudar Rain Murphy a se tornar um grande atleta. Peter Strauss, o ator por trás de Rain, por outro lado, parece mais um modelo do que um corredor. Faz inúmeras poses dentro de sua cela, jogando com os longos cabelos como se estivesse fazendo um ensaio para alguma propaganda de jeans. Incrivelmente, Strauss ganhou o prêmio de melhor ator no Emmy daquele ano. Mas é o primeiro miscasting da carreira do diretor. E nisso ele se assemelha bastante a Blackhat.

Mann se exercita muito bem, enfim, na narrativa de um longa-metragem, faz um final acachapante, que recusa a conciliação entre o lado de dentro e o lado de fora da prisão (o lado de dentro, aliás, é salientado nos letreiros finais que informam que a produção foi filmada em meio à população aprisionada e dentro dos muros da Folson State Penitentiary), e confirma algo que veremos no decorrer de sua carreira: a personalidade forte, embora perturbada, de seus heróis.

Nasce um cineasta

Profissão: Ladrão (Thief, 1981) é a estreia de Mann dirigindo um grande ator, James Cann, e seu primeiro filme feito para a tela grande. Trata-se do nascimento de um grande cineasta, desde as primeiras imagens, com uma perfuradora penetrando em um cofre como nunca antes o cinema havia mostrado. É possível dizer, numa operação de mão contrária à que fiz no início em relação a Blackhat, que todo o cinema de Mann está presente, ou pelo menos latente, em Thief. Estilização e realismo. Abstração e dramaturgia. Todos os filmes que iria fazer depois pendem para um lado, não excluindo o outro. O senso de proteção familiar, por exemplo, tão presente em Thief, na cena em que Frank (Cann) agride verbalmente a esposa para que ela o largue sem remorso levando também o filho adotivo, quando na verdade o que ele quer é protegê-los da violência na qual ele se inseriu, reverbera anos depois na preocupação de Will Graham com a esposa e o filho em Manhunter, ou no cuidado com que Hawkeye (Daniel Day-Lewis) se despede de Cora (Madeleine Stowe), deixando-a à mercê da tribo inimiga porque essa era a única maneira de salvá-la. Ou logo depois, quando Hawkeye se oferece para morrer no lugar de Cora, e o oficial inglês, que até então tinha se demonstrado um fraco de caráter, traduz errado de propósito uma fala de Hawkeye, colocando-se na fogueira e deixando livre o caminho para Cora, pela qual ele se apaixonou, ficar com seu maior rival no amor. Aí Mann concede ao mais fraco dos homens um momento de grandeza. A montagem singular do confronto final de Thief, com pequenos congelamentos e acelerações na imagem, volta no tiroteio final de Manhunter, no clímax impressionante de O Último dos Moicanos, e em uma sequência de Colateral, e também no clímax de Blackhat, um dos melhores momentos do filme, aliás.

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Thief

A música eletrônica do Tangerine Dream dá um ar anos 80, e a aproximação do efeito de perfuração cria uma abstração na imagem. Mais adiante, Cann (aliás, Frank, seu personagem) anda pela beira de um cais, com o horizonte de Chicago ao fundo se apequenando para que ele possa se dissolver na frente da cidade. Jean-Baptiste Thoret, a propósito, fala das pessoas que se dissolvem, ou na natureza, ou nas construções urbanas. Isso acontece bastante. Mas existe também o inverso. As pessoas, por vezes, se destacam de seus ambientes, como na belíssima cena em que Cann e o pescador interpretado pelo bluesman Willie Dixon conversam olhando para o mar. Estão de costas, em silhueta, num anoitecer de grande beleza cinzenta. Preto e branco em cores. isso voltará em praticamente todos os filmes posteriores do cineasta.

Cann é um ladrão profissional, como entrega o título brasileiro. Vive de grandes roubos, e procura agir na surdina, com a ajuda de parceiros. Mann faz questão de dizer, comprovando sua preocupação com o realismo, que conheceu ladrões de verdade para retratá-los melhor. Além disso, mandou os atores aprenderem a manejar os maçaricos que eles usam nos roubos. No encontro do realismo com a estilização, desenvolve um diálogo entre Frank e um mafioso que é um primor, tanto de decupagem (o trabalho na TV lhe deu uma incrível noção de ritmo), quanto de composição visual, com a luz da noite refletida nas águas criando belas abstrações visuais.

Em uma cena considerada chave para o filme, a genialidade de Mann já se anuncia com força. São dez minutos de um diálogo numa lanchonete. Uma declaração de amor de James Cann para Tuesday Weld. Frank e Jessie. Aconselhado pelo padrinho no crime, um ladrão veterano vivido por Willie Nelson, Frank conta toda a verdade sobre seu passado na cadeia e sua profissão. Mostra uma pequena colagem que resume sua vida, e diz que Jessie poderia estar ali. É um passo realmente grande para ela, que se emociona, contudo, e, depois de alguma relutância, aceita. Nada de estilo exacerbado nesse cena, apenas realismo. Coisas corriqueiras como uma reclamação do creme que está na mesa, ou um outro cliente incomodado porque ela falou palavra de baixo calão em voz alta. Um diálogo que começa nervoso e termina na mais profunda harmonia entre dois seres. E o primeiro show de atuação de dois atores que contracenam numa lanchonete, antecipando o encontro antológico entre Pacino e De Niro em Heat.

A pergunta, então, se impõe: como o homem que fez Thief pode fazer algo frouxo como Blackhat? Impossível imaginar, neste último, cena assim, tão longa, bela e adulta, tão verdadeira pelas emoções que desperta (a lágrima que sai do olho esquerdo de Jessie, a franqueza com que Frank escancara sua vida e seus temores). Blackhat, em seus piores momentos, parece mais obra de algum desses diretores apreciados pelos arautos do Vulgar Autheurism do que do diretor que nos deu Thief.

Manhunter, Colateral, Miami Vice: a questão do estilo

Como Frank, protagonista de Thief, Will Graham (William Petersen), de Manhunter, é um dos mais ilustres da galeria de protagonistas obsessivos de Mann. Como também Nick Hathaway, o Vincent Hanna (Al Pacino) de Fogo Contra Fogo, o Lowell Bergan de O Informante, e Muhammad Ali. A obsessão em capturar Hannibal Lekter quase levou Will à morte, e ainda o fez amargar algum tempo num hospital psiquiátrico para superar o trauma de se sentir na pele do criminoso. Agora, com um discípulo de Lekter à solta, ele se convence a deixar seu paraíso na Flórida, seu filho e sua esposa, para novamente entrar na mente do assassino. O trauma dessa vez parece menor, mas a tensão percorre todo o longa. Durante a investigação, Mann envolve Will em construções modernas. Chama a atenção, por exemplo, a cena em que Will foge desesperado da claustrofobia que o tomou enquanto visitava Lektor em busca de pistas. Ele sai por uma rampa giratória, numa edificação toda branca onde funciona um hospital penitenciário. Poucos diretores, aliás, souberam usar o branco de maneira tão assustadora como nas breves cenas em que Lektor está presente, assim como poucos diretores tiveram a coragem de fazer um plano deliciosamente patético em câmera lenta em que Will atravessa uma grande janela de vidro para apanhar o assassino. Vemos seu corpo se aproximando, bem ao longe, um ponto crescendo em direção à câmera e realizando um salto para dentro do ninho da serpente, estilhaçando as enormes placas de vidro que compunham a janela. Leva uma série de golpes de vidro no rosto, como punição pela invasão. Will, como Nick, não hesita em pegar uma arma, mesmo que seu papel ali fosse apenas estratégico, nunca o de um homem de ação. A diferença é que Will era policial, não um nerd. O pulo através da janela procura impedir uma ação do criminoso, que está ofendido pela suposta traição da garota cega (Joan Allen) por quem ele se apaixonou. Ele quebra o espelho, recolhe os cacos, e pretende assassinar a garota com eles. O vidro da janela se estilhaçando em câmera lenta remete ao vidro do espelho se estilhaçando, também em câmera lenta, simbolizando a entrada de Will na mente do assassino. F.X.Feeney fala sobre a fragilidade da família a respeito de Manhunter. Uma família que o assassino não tem, mas deseja ter. Logo, é preciso matar famílias felizes, apoderar-se de alguma forma dessa felicidade (ele edita videos caseiros e guarda os que foram feitos por famílias que destruiu).

Após uma temporada tentando negar a pecha de estiloso, negação que culmina com a câmera documental e bem solta de O Informante e Ali, Mann volta de certo modo à estilização de Manhunter, com personagens em prédios altos e envidraçados e a cidade noturna brilhando do lado de fora de enormes janelas. Só que agora estamos no reino do digital, por isso a imagem de Colateral é chapada, também para que o filme não fique tão exageradamente brilhante (e ainda assim, é muito brilhante com suas luzes gritando na noite), e em alguns momentos bem granulada (embora nem tanto quanto em Miami Vice). Sob o ponto de vista da câmera, Colateral é melhor filmado que os dois filmes que o precederam. Claro que existem outros fatores, que fazem com que seja também o mais frágil dos três. Um desses fatores é o excesso de ganchos. Parece que o roteirista Stuart Beattie é algum entusiasta de Syd Field, ou um desses escritores de manuais para roteiristas. Logo, se Tom Cruise fala que Los Angeles é desumana, que um cara morre no metrô e demora para que alguém perceba, pode apostar que isso vai acontecer durante o filme. Enquanto ganchos desse tipo se acumulam, Mann pratica a mesma simbiose de personalidades de Heat, com o taxista Jamie Foxx imitando, aos poucos, a personalidade forte do passageiro/assassino de aluguel Cruise. Por outro lado, é surpreendente a aparição não creditada de Jason Statham no início, e o desaparecimento prematuro do policial Mark Ruffalo. Syd Field não aprovaria. Ponto para Beattie. Mann se diverte filmando Los Angeles à noite. Ele que é um dos melhores diretores da noite urbana, realiza um policial classudo, em que os momentos de tremedeira da câmera estão restritos a ocasiões em que ela deve mesmo tremer (uma perseguição numa boate lotada, por exemplo).

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Colateral

Em Miami Vice, Dion Beebe, o mesmo diretor de fotografia de Colateral, ousa um pouco mais com a câmera. Em momento algum, contudo, sentimos que as balançadas são inadequadas. A opção é totalmente justificada pela fluidez alcançada nas cenas predominantemente noturnas, fluidez que se assemelha à de alguns filmes de Claire Denis ou Naomi Kawase, ou seja, uma herança cassaveteana que é sujada pelo digital. Quando se fala em abstração, o filme mais lembrado é justamente Miami Vice, que extrapola nas tais dissolvições, como também os destacamentos dos personagens na ambientação urbana de luzes e céus amarronzados. Extrapola também o brilho das luzes, que já era presente em grande medida no filme anterior. Como Miami Vice é um filme predominantemente aquático (nunca a água foi tão presente na carreira do diretor), essas luzes se multiplicam, transformando as noites de Miami ou Havana. E aqui é necessária uma dissociação com Blackhat, com o qual muitas vezes Miami Vice é aproximado. Porque este último é atípico em ao menos um sentido: não há protagonista obsessivo. Ao menos obsessivo pelo trabalho. O Sonny de Colin Farrell está tão interessado em Gong Li que põe em risco toda a operação, e o Rico de Jamie Foxx não é obsessivo o bastante para impedir o amigo de mergulhar nesse amor impossível. Temos então os detetives mais relapsos da carreira de Mann, o que difere bastante, tanto do agente chinês, quanto do hacker Nick ou da agente do FBI, personagens de Blackhat. A maior semelhança é no envolvimento do protagonista com uma mulher chinesa, além, claro, dos planos do alto de um prédio com a cidade se horizontalizando em luzes por trás dos personagens. Convenhamos, é pouco diante das dissonâncias. A câmera tremida de Blackhat, como já dissemos, não se justifica, é puro modismo, enquanto a de Miami Vice faz parte da tensão causada pela infiltração de policiais dentro de uma rede de criminosos extremamente perigosos. Além disso, em Miami Vice não há miscasting, há atores irregulares (Foxx e Farrell) bem dirigidos.

Passos no escuro                                                                     

Talvez o maior parentesco entre Blackhat e algum outro filme de Mann seja com A Fortaleza Infernal (The Keep, 1983), e não com Miami Vice. Porque é com tentativas de abstrações e dramaturgia flácida que Mann construiu A Fortaleza Infernal. Desde suas primeiras cenas o que vemos são delírios sensoriais e imagens que não sabemos bem o que são. A dramaturgia é um fiapo com um único momento alto: a conversa dura entre dois oficiais alemães.

Nazistas vão a uma fortaleza localizada dentro de um vilarejo na Romênia. A chegada deles lembra um filme de Werner Herzog, um Coração de Cristal, ou um Nosferatu. Difícil não ser proposital. Os habitantes ficam preocupados, inquietos. Os nazistas estão tensos também. Depois chegará a SS, com sua truculência, e o inferno será instalado, sob a liderança de um vilão de quadrinhos juvenis, Gabriel Byrne. Muito antes de Guillermo Del Toro, Mann já misturava o fantástico com o nazismo, causando estranheza: estamos vendo um filme de guerra ou um filme de horror? Por incrível que pareça, nenhum dos dois, ainda que tudo esteja cercado pelos códigos do horror.

O soldado correndo da cruz de prata que emite uma luz forte por trás lembra os videoclipes da new romantic. O visual não está distante, aliás, de um clipe do começo do Duran Duran ou do Spandau Ballet. A liberação do demônio lembra a abertura da arca em Os Caçadores da Arca Perdida (Steven Speilberg, 1981). The Keep é de fato uma coletânea de temas e motivos dos anos 80 até ali, desde a música sintetizada do Tangerine Dream (banda iniciada nos anos 60, mas que atravessou décadas) até a fotografia enevoada de Alex Thomson, o mesmo de Excalibur (John Boorman, 1981)

Como Blackhat, The Keep é um filme irregular, que alterna ótimos momentos como alguns diálogos que beiram o filosófico e algumas abstrações com trechos  de comédia involuntária como a apresentação de Scott Glenn, o homem que deve impedir a libertação completa do demônio, ou a cena da materialização do demônio para impedir o estupro de uma garota judia. O pai dela, Ian McKellen, se alia ao monstro materializado contra os nazistas. Mas qual é o maior mal, o nazismo em si ou o tinhoso à solta? Ambos querem o poder a qualquer custo, e querer o poder é se abrir à corrupção do espírito. Ninguém que busca o poder é verdadeiramente livre, como ninguém o é, de fato. Mas a busca pelo poder nos transforma em monstros. É um aspecto muito interessante de se discutir, e The Keep se insere nessa discussão de maneira trôpega. The Keep mostra um diretor experimentando com gêneros diferentes, mas de certa forma continua falando em aprisionamento, busca pela liberdade e manutenção da personalidade apesar dos revezes, como em Thief e The Jericho Mile. E como Blackhat também. Sua esquisitisse suprema mantém nosso interesse até o fim.

Michael Mann faz, em seus filmes, boas abstrações com coisas palpáveis como um fósforo ou um cigarro acendendo, um cofre sendo perfurado ou luzes da cidade à noite. O começo de The Keep ilustra bem isso, com a estrada e seu entorno se transformando numa massa indefinível diante da câmera, ou as cenas em que o demônio se move por meio de uma densa fumaça. Quando resolve esmiuçar as entranhas cibernéticas, em Blackhat, faz algo parecido com uma animação calcada no primeiro Tron, com influência do David Fincher de O Quarto do Pânico. Lembra muito mais Resident Evil do que 2001, de seu admirado Kubrick. Quando pretende mostrar o quanto o funcionamento de nossa sociedade depende de coisas pouco factíveis como dados numéricos e sistemas binários é mais interessante. The Keep é filme para chapados que não estão em Visconde de Mauá para admirar as estrelas. Blackhat é filme para quem se impressiona com invasões de espaços inatingíveis, como se a câmera fosse um ácaro.

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Mas a maior semelhança entre os dois reside na dramaturgia. São os únicos filmes de Mann que parecem brincadeira de criança, conforme escrevi na introdução. Todos nós, quando crianças, tendo maior ou menor amor por cinema, brincamos de filmes. Ou eu, meu irmão, meus vizinhos e meus primos éramos todos crianças anormais. Enfim, The Keep e Blackhat, pelos diálogos e atuações, mesmo quando são bons os atores, parecem-se demais com isso (fica mais evidente nos planos de reação). O que deve nos preocupar é que os meios de produção hoje são ainda mais avessos à ideia de cinema adulto do que eram nos longínquos e bem mais férteis anos 80. De modo que a recuperação de Mann não se pode dar como certa, e a possibilidade de ele voltar a fazer filmes mais pessoais é cada vez menor.

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