Ano VII

Blackhat

quinta-feira jul 30, 2015

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Blackhat: crítica da separação

Por Guilherme Savioli

Blackhat se constrói sobre um intervalo abissal: aquele que se inicia com as primeiras imagens de uma terra quase cibernética, de onde só se enxergam algumas luzes – e a partir da qual somos lançados diretamente numa longa sequência de mergulho por um organismo virtual – e se estende até o momento em que o protagonista, o hacker Nicholas Hathaway (Chris Hemsworth), constata que tudo se resumirá à uma questão de se conseguir chegar perto o suficiente e rápido o suficiente de seu alvo. No interlúdio entre esses dois momentos e na sequência que precede a constatação de Hathaway, Michael Mann compõe o que estaria próximo de uma sinfonia, na qual cada sequência é um movimento ensaístico que discorre sobre um problema contido na observação crucial feita por Hathaway (e que já está presente também no mergulho inicial do filme): as coisas, para serem assimiladas em sua essência, precisam ser colocadas fisicamente em choque, confrontadas proporcionalmente em suas escalas.

A luta que existe entre a passagem do virtual e abstrato para o plano físico e concreto não é um motivo que existe apenas a nível temático, mas está incrustado na essência formal da obra. Em Blackhat a encenação de Mann não é marcada tanto pela violência com que os elementos visuais e sonoros eram manipulados em seus últimos três filmes (Colateral, Miami Vice e Inimigos Públicos), mas sim por uma espécie de estudo e revisão do trabalho desenvolvido até então.

Para tanto, há uma certa urgência por parte do cineasta em apresentar de forma extremamente concisa seus personagens, alguns ambientes-chaves pelos quais eles irão circular e o que eles perseguirão. Através dessa concisão (principalmente dos personagens, talvez os mais compactos e superficiais do cinema do diretor) Mann irá trabalhar com o que há de mais aparente nas coisas, com sua superfície mesmo: uma cena de ação – como a briga no bar em Koreatown – servirá para o diretor o explorar ao máximo as nuances de luz e cor, os gestos e principalmente a alternância do ponto de vista e a duração temporal. Se alguns desses traços já eram marcas essenciais e caracterizavam formalmente seu cinema, aqui o componente da dilatação temporal e a tendência de se colocar a matéria à prova, puxando-a rumo à abstração, desenham uma obra sui generis em sua filmografia.

Uma das cenas mais perturbadoras de Blackhat é justamente aquela em que todos as pessoas que ligavam o protagonista e sua amante aos governos da China e dos EUA – personagens que garantiam o caráter de legalidade da missão – são fulminados pelo grupo bandidos. Assim como em Colateral, no momento em que Tom Cruise assassina o policial e Jamie Foxx se vê novamente sozinho, os personagens estão por conta própria a partir desse momento. Ao contrário do filme de 2004, o tratamento que Mann dá a cena não é marcada pela urgência e necessidade de tomada de decisão. O adeus ao amigo e irmão é filmado quase como um ritual, a cena da explosão (como em alguns outros momentos de outras cenas de ação) é filmado em um sutil slow motion. Ao fim da sequência, quando Hathaway e Chen Lien (Wei Tang) estão a caminho da Indonésia somos brindados novamente com uma cena extremamente bela e dura, quando Mann filma o olhar petrificado da atriz, sintetizando seu estado catatônico, e depois corta para o avião mergulhado na escuridão da noite, atravessando a cidade luminosa e finalmente ganhando o horizonte, mais iluminado, mas por apenas alguns breves segundos.

É também na cena do extermínio em que ocorre o plano mais cruel do filme: o momento em que Barrett (Viola Davis), baleada, quase morta, olha para um prédio. Acompanhamos o ponto de vista da morte, em um acentuado contra-plongé. O peso que o momento carrega advém de uma cena anterior, quando a mesma personagem pondera sobre o fato de ser justa a perseguição a Hathaway (ordem das instituições legais responsáveis) e revela que perdeu o marido no atentado do 11 de Setembro. Mann não se preocupa em desenvolver uma carga psicológica que acompanha a personagem (e o mesmo se pode dizer sobre todos os outros personagens e as relações estabelecidas entre eles), a dor existente e partilhada no plano existe, porém, justamente da secura dessa construção, da intensificação do sentido que vem primordialmente pelo aspecto visual, pela exploração dessa superfície.

Se o indivíduo que se debate contra as instituições é uma tônica no cinema de Mann, Blackhat é um dos filmes mais incisivos nesse aspecto, e sem dúvida o mais cético em relação à qualquer instância oficial. Esse aspecto está impresso na forma como Mann insere as figuras de seus personagens contra o horizonte, figura característica de seu cinema. Antes, apesar do peso existencial que dominava esses planos, o horizonte de possibilidades existia. Agora, o horizonte parece se desfazer, ou existe apenas por um breve instante.

Hathaway já havia feito a fatídica declaração (I’m doing the time, time isn’t doing me) e o ponto de vista da morte de Viola Davis é o bastião formal dessa profunda descrença (que em Blackhat já se converte em um profundo desprezo) pela ordem institucional, que opera sempre num plano quase virtual, abstrato. Novamente, é necessário trazer às coisas à terra, e nesse movimento a primeira instância a ser fulminada é essa suposta legalidade.

Ao compor esse ensaio sinfônico sobre um problema que julga ser central em nossos tempos, Michael Mann assume um risco e uma responsabilidade que se assemelham apenas ao salto formal rumo ao minimalismo, de um Howard Hawks em Red Line 7000. Seu diálogo atual é com Clint Eastwood, que em Sniper Americano propõe, igualmente, uma depuração em seu estilo, mas encaminha sua narrativa para o épico. Mann continua sendo um cineasta essencialmente do drama, mas ao submeter sua narrativa à uma construção formal que tensiona a matéria rumo ao abstrato, leva a discussão central de seu cinema a um outro patamar.

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