Ano VII

Rainha e País

domingo ago 2, 2015

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Rainha e País (Queen and Country, 2014), de John Boorman

Rainha e País é um filme que marca o retorno de um cineasta à matéria-prima narrativa a partir da qual conseguiu alcançar um dos pontos altos de sua filmografia. Após 27 anos, John Boorman retorna à crônica-memorialista e semi-autobiográfica, dando continuidade a Esperança e Glória.

O ponto de retomada de Boorman é exatamente a última sequência do filme de 1987, precisamente o momento no qual as crianças comemoram, em pleno pátio da escola, a interdição das aulas, devido a um bombardeio (“Thank you, Adolf” grita um dos garotos). No filme de 2014, o corte para a cena seguinte, na qual o personagem Bill Rohan (Sebastian Rice-Edwards lá, Callum Turner cá) situa o período histórico em que se passa Rainha e País (Guerra da Coréia), através de uma narração que se sobrepõe às imagens do lago à beira do qual habita com a família, é também o corte e a delimitação de um período muito específico na carreira de Boorman. Período esse no qual, na maioria dos casos, o plano histórico moldou o plano narrativo, porém em uma chave muita diversa da existente tanto em Esperança e Glória quanto em Rainha e País.

Delineia-se, tal como no filme de 1987, a guerra como pano de fundo histórico da trama. O protagonista não vivencia o dia a dia das trincheiras, porém, os efeitos do conflito ditam diretamente seu cotidiano.

No primeiro filme, durante a Segunda Guerra, são as bombas caindo sobre Londres e o alistamento do pai no exército que desenham a experiência daquela família sempre através do olhar de Bill. A rua na qual moram vai sendo transformada, aos poucos, em um verdadeiro amontoado de ruínas devido aos bombardeios. Ali, Bill e sua “gangue” perambulam em busca de destroços de guerra. A meticulosa construção em estúdio, frisada pela encenação de Boorman, acentua o aspecto crucial de brusca mudança na rotina, confere um peso à essência dos dramas de seus personagens. Há uma consistência impressionante no olhar de Boorman: estamos sempre juntos de Bill. O ponto de vista infantil que precisa repentinamente lidar com os ônus da guerra (seja circulando por esses espaços destroçados, seja lidando diretamente com a morte) é o mesmo que vai observar os conflitos íntimos familiares. A dimensão da ternura e da inocência, intrínseca a esse olhar, só se dá pelo horror e pela gravidade dos fatos.

Já em Rainha e País é o serviço militar obrigatório e o tempo de espera aquartelado que ditam o cotidiano de Bill. As bombas não caem mais em seu espaço próximo, o conflito se passa num espaço inteiramente distinto daquele em que habita. A consistência do olhar de Boorman permanece, contudo, as nuances que surgem e operam no ponto de vista que perseguimos não se dão mais em uma mecânica entre dois pólos claramente distinguíveis, tal como antes (as pontuações acerca da guerra fria e a explanação de Bill acerca de sua visão sobre o assunto são quase esquematizações dessa nova situação). É exigido uma complexificação do olhar, um aprofundamento, uma maior generosidade para que as coisas se dêem a ver. A beleza de Rainha e País reside justamente no ponto em que, apesar de toda essa complexificação, a natureza dos dramas vivenciados e observados pelo ponto de vista de Bill vêm à luz. Ou pelo menos assim o julgamos, nem que seja por míseros segundos.

A alternância entre o despojamento e a evidência do peso dramático se dá na forma com que Boorman constrói o olhar de Bill para com os outros personagens. A princípio, todos surgem como tipos facilmente identificáveis. A fabricação desses tipos é levada até certo ponto, em conjunto com as situações de rotina do quartel, a partir do qual sofrem um revés, não se confirmam sob o ponto de vista do protagonista: um arco que vai essencialmente da leveza ao drama humano mais íntimo (pensemos no oficial obcecado com as regras, na situação do roubo do relógio, no companheiro de Bill). Esse arco se contrapõe, de certa forma, com o que é estabelecido a partir da primeira experiência amorosa de Bill. A harmonia desse duplo movimento, bem como sua coexistência, só se torna possível pela capacidade de Boorman em trabalhar com extremo rigor a ideia de consistência do ponto de vista.

Raros são os cineastas que conseguem captar uma essência tragicômica, desenhando-a em um verdadeiro arco narrativo, no qual a experiência da encenação se sobrepõe à imposição de conceitos. Hoje em dia, penso, talvez, em Hong Sang-soo, trabalhando, evidentemente, com elementos cênicos bem diferentes (Hong centra seu poder de fogo no dispositivo, Boorman é romanesco).

O retorno de John Boorman à crônica (de certa forma, um retorno aos seus primeiros grandes filmes, À Queima-Roupa e Inferno no Pacífico, crônicas sobre Lee Marvin sendo atirado aos leões) é também o retorno à uma concepção do plano histórico não mais como motivo de redenção pessoal e expiação de todos os traumas das “boas-consciências” em choque com o capitalismo (tema que persistia em seus filmes desde A Floresta das Esmeraldas, com pontuais excessões), mas sim como dado no qual se inscrevem precisamente as complexas relações da experiência humana, seja no plano macro, épico, ou estruturado sobre uma narrativa de cunho pessoal, semi-autobiográfico. 

Guilherme Savioli

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