TERMINATOR GENISYS
O Exterminador do Futuro: Gênesis (Terminator Genisys, 2015), de Alan Taylor
Tudo gira em torno dos efeitos especiais: o Exterminador, de 1984, era uma criatura dura, de músculos de aço e movimentação de pedra, cuja estátua celebrava o início da Era do Brutamontes de Peito Brilhoso. O caminhar desengonçado, quase frame a frame do esqueleto de lata de Schwarzenegger, ao fim do filme, expõe as estruturas de um filme igualmente duro, frio, que recupera o medo ancião que temos da caveira e o associa ao indelével sentimento sinistro que as tecnologias embrionárias provocam. Pensemos nos esboços dos tanques de guerra e das armas de Da Vinci, nas imagens das engenhocas de tortura medievais, nos registros em filme das primeiras tentativas do homem em criar máquinas que voam, máquinas desproporcionais, ligeiramente grotescas, aberrações destinadas a se espatifar.
Na continuação dos anos 90, na era da superfície platinada do CD, das tentativas de se criar jogos eletrônicos em full motion video, James Cameron, o mago high tech, inaugura o modus operandi do artista de afrescos dos novos tempos e antecipa em alguns anos aquilo que George Lucas faria com a trilogia original de Star Wars: Exterminador do Futuro 2 não deixa de ser um extensivo retoque com o deslizar do mouse no primeiro filme. Atualizada a tecnologia, é atualizada também a visão de mundo, já bem menos sombria e temerosa da máquina fria soviética (qual a diferença entre Ivan Drago e o Schwarzenegger de 1984?). Abrindo as artérias para o que, pouco depois terminaria na overdose de cultura pop aplicada por Tarantino, Schwarza agora diz frases de efeito, carrega guns e rosas, se veste de hell´s angel, vira um irmãozão. E o inimigo é menos um inimigo, e mais um showcase das capacidades da ILM (empresa de Lucas, claro). A fluidez platinada de T-1000 é o sonho da continuidade ininterrupta (foi-se o tempo da reprodução musical truncada e suja do LP), da capacidade gigantesca de armazenamento, da magia do movimento cristalino, da matéria que a tudo é capaz de reproduzir. O T-1000 é a ode ao CD, essa promessa do futuro que toca música, roda vídeos interativos e videogames.
A tecnologia e as novas possibilidades de efeitos especiais deslumbravam, o que faz ser coerente a natureza praticamente invencível daquele ser elástico (o fetiche pela elasticidade foi a cara dos anos 90: o rosto de Mario na abertura do videogame Super Mario 64, que podia ser esticado de acordo com o gosto do jogador, tornou-se icônico). As longas cenas de perseguição, em que os tiros de 12 abrem buracos que se fecham tão rapidamente quanto quando se deixa cair uma pedra na superfície de um lago, faziam de T-1000 um inimigo de materialidade encantadora, por encarnar a novidade máxima e espelhar todo um horizonte de tecnologias que se abria no mundo lá fora.
Em 2015 o CD morreu e, desde Avatar, que outro filme foi capaz de embasbacar as plateias do mundo com efeitos especiais? Exterminador do Futuro: Gênesis chega em um tempo onde o CGI é obrigação que, já sem o frescor da novidade, não é mais tinta e sim, pincel (o mesmo se deu com as outras três grandes mudanças técnicas no cinema: o sonoro, a cor, o scope). Alan Taylor, como o título do longa deixa evidente, retorna a 1984, tendo o número dois na cabeça: o de James Cameron e o de Robert Zemeckis do ousado De Volta Para o Futuro 2, ao retrabalhar literalmente em cima das imagens do primeiro Exterminador, inserindo digitalmente novos elementos. Ultrapassada a tendência da releitura, enfraquecida a moda do remake, surge uma nova onda, a do retalho. Se a cabeça de Paul Walker pode ser costurada no corpo do primo, sem que o público veja qualquer barreira moral nesta operação, a Mary Shelley da Sunset Strip vê aí uma saída mágica para prolongar a vida de astros envelhecidos ou mortos. Se a necromancia um dia for possível, não será graças às páginas de Abdul Alhazred, e sim à percepção de negócios de um executivo de Hollywood.
A interação entre os dois Schwarzenegger, promovida por Taylor, é mórbida, sem vida e só parece acentuar o fato de que vivemos dias em que não há qualquer respeito pela imagem, por qualquer imagem. Não parece existir qualquer tipo de ação inteligente neste retorno, qualquer faísca de graça ou sagacidade, além da tola manipulação da matéria original. Marcel Duchamp merece todo o ódio do mundo, mas não se pode crucifica-lo eternamente. O fetiche pela materialidade na apreciação das artes excita cada vez menos e quando todas as obras passam a ser experimentadas unicamente de maneira virtual, não é de se estranhar que, uma vez que ocupam, evidentemente, um lugar virtual no mundo, sua presença seja menos imponente, menos cúmplice, menos verdadeira. Um homem com duas namoradas só tem problemas. Um homem com várias namoradas virtuais só tem nada.
A composição do corpo de John Connor encarna, de algum modo, essa falta de materialidade, essa existência arenosa que se perde na própria infinidade. Formado por microchips, ou, quem sabe, por grãos de areia do vale do Silício, a figura é uma nuvem de poeira que assume contorno com a ajuda do vento, como se vê em uma das pouquíssimas imagens de interesse no filme, quando o corpo do antigo Messias se esfarela ao ser sugado por um equipamento. Sob o oceano de possibilidades há um deserto pronto para aflorar. Connor, sendo um produto direto da Skynet, que no filme é retratada claramente como se fosse o Google, pode ser visto como a representação da banalidade resultante da tecnologia que pode tudo alcançar: os efeitos especiais à disposição de Taylor lhe permitem executar cenas de ação intermináveis, em que Connor jamais é ferido (como foi que deixamos a arma de fogo, o segundo elemento mais importante do cinema, depois da mulher, tornar-se um objeto que não causa dano?). Só que, ao contrário do Exterminador do Futuro 2, que em T-1000 víamos, pela primeira vez no cinema com tamanha fluidez, as cabeças da Hidra de cristal líquido platinado a se regenerar, o vilão de Exterminador do Futuro: Gênesis não tem qualquer traço de novidade. Os efeitos especiais necessitam do ineditismo para não se transformarem em efeitos banais.
Com a virtualidade infinita propiciada pelo Skynet/Google, que nos dá tudo, por que haveríamos de nos apegar ao que quer que seja, se podemos até mesmo voltar ao passado e manipular qualquer coisa já criada? O caminho do conhecimento infinito da barra de buscas tem essa desvantagem: pode desertificar a relação que estabelecemos com as coisas, e apontar para a vastidão do vazio, como o plano final do longa de Taylor, que desvenda na tela uma esplêndido monte de nada.
Wellington Sari
© 2016 Revista Interlúdio - Todos os direitos reservados - contato@revistainterludio.com.br