Descobrindo a cena
Descobrindo a cena: o processo de investigação da imagem em O Pássaro das Plumas de Cristal
Por Wellington Sari
Prelúdio Para Matar, lançado alguns anos depois de O Pássaro das Plumas de Cristal, contém uma sequência que serve como bom ponto de partida a uma análise sobre alguns elementos predominantes na filmografia de Dario Argento, presentes já em seu primeiro longa-metragem: nela, Marcus, interpretado por David Hammings, retira a camada de cimento que cobre a parede de um velho casarão e descobre um desenho infantil com a encenação de grotesco assassinato. O homem, após retornar duas vezes ao local – ele havia ido ao porão, em busca de algum objeto que lhe ajudasse a remover o reboco – é chamado por outros dois personagens e é obrigado a abandonar o trabalho. A câmera, no entanto, permanece mostrando a gravura. Até que outra parte da crosta se desprende, revelando um elemento oculto da ilustração: uma testemunha ocular.
Tony Musante, no papel de Sam Dalmas, ao passar por uma galeria de arte em O Pássaro das Plumas de Cristal, a estreia do diretor italiano, assiste a um crime sendo cometido. Ao dar depoimento à polícia, mais tarde, repete que há algo de estranho naquilo que viu, naquela cena, sem saber precisar o quê. No decorrer do filme o rapaz voltará, mentalmente, inúmeras vezes àquele acontecimento. O paralelo com a seqüência descrita no primeiro parágrafo já é óbvio. Vamos agora detalhá-lo, dando atenção especial à obra de 1970.
Descobrir, retornar, e cena: eis as palavras-chave.
Ambos os exemplos giram em torno de uma cena, valendo-se de uma definição ligeira, um espaço cuja ação se desenrola, onde diversos elementos são inseridos e organizados com o intuito de representar algo. Em uma galeria de arte, um casal parece lutar. Ele veste sobretudo preto e chapéu. Segura uma faca. Ela está de branco. Parece se defender do ataque. Dalmas vê tudo através da parede de vidro que compõe a fachada do lugar. A mulher é esfaqueada. O agressor sai por uma porta lateral. A vítima, ensangüentada, está caída ao chão. A mão espalmada estendida à frente, postura que remete a de Marion, no assassinato sob o chuveiro em Pscicose (a imagem original? O esboço à lápis que ficará soterrada pelas tintas de Argento?).
Assim como em Prelúdio Para Matar, há uma barreira física entre a imagem/cena e o observador; algo impede o acesso rápido, direto, de um para outro, tanto em sentido literal quanto metafórico (ambas as testemunhas não conseguem compreender de imediato aquilo que está diante dos olhos). Lá era o reboco, aqui, o vidro.
Dalmas ficará obcecado por esta imagem/cena durante boa parte da narrativa. Como se estivesse presa à retina, ela volta à sua mente, em forma de flashback. A imagem/cena é estudada detalhadamente e a cada vez que reaparece, vemos um aspecto ligeiramente diferente da anterior. Seja um novo ângulo – que ainda assim permanece limitado pelo ponto de vista de alguém que observou pelo lado de fora da galeria de arte, é claro – ou um novo gesto, antes passado despercebido e agora posto à luz graças ao efeito empregado por Argento, o da manipulação da velocidade de projeção. A grande propriedade da imagem fílmica, o movimento, é questionada – o que revela um plano em fluxo, quando “congelado” e mostrado quadro a quadro?
Todo este processo lembra muito aquele aplicado por Antonioni em Depois Daquele Beijo, influência que o autor de Phenomena jamais negou. No longa de 1966, David Hammings – sua presença em Prelúdio para Matar, portanto, não é uma coincidência – investiga compulsivamente uma fotografia, que imagina conter a prova de um crime. O estudo da imagem/cena – casal discutindo em um parque – se dá por meio das ampliações dos retratos tirados do evento, pelo personagem. A primeira grande diferença em relação a O Pássaro das Plumas de Cristal é que enquanto o primeiro tem a imagem intrigante fixada em suporte físico – a fotografia – o outro permanece apenas nos registros da memória. A segunda diferença são as respostas a que chegam cada um no que diz respeito à problematização da imagem. Ainda não é a hora de mencionarmos as de Argento. Podemos adiantar as de Antonioni: não é só a imagem materializada em forma de foto que é ambígua, cheia de segredos, não-reveladora – por mais que se amplie-a (blow-up), o detalhe não vem à tona – mas tanto o mundo que cerca o personagem, quanto a arte em si, parecem dar a entender a partida de tênis sem bola e raquete, perfeitamente audível, disputada por mímicos ao final do longa-metragem.
O mundo ao redor de Dalmas não é uma continuação das perguntas feitas à imagem/cena, como em Depois Daquele Beijo. Ele é o mundo do giallo, do suspense, do detetivesco. O homem, a fim de desvendar o mistério, sai por conta própria em busca de pistas e indícios. Ou, dizendo de outra maneira: para desvendar a visagem perturbadora, para remover o obstáculo que o impede de ver o todo, ele precisa descer ao porão à procura de ferramentas. Seguem-se o cumprimento do protocolo – que não deixa de ser prazeroso ao espectador – do filme de gênero: o rapaz é perseguido por bandidos, é pressionado pela polícia, depara-se com as mortes provocadas por um(a) assassino(a) em série – que nós, o público, já desconfiamos ser alguém relacionado ao evento testemunhado por Dalmas, pois, Argento nos faz presenciar, sem a companhia do protagonista, alguns atos violentos do/da matador(a). Conhecendo-se sua filmografia, aliás, fica interessante perceber como o cineasta em O Pássaro das Plumas de Cristal ainda se preocupa em equilibrar interesses “artísticos” (na falta de palavra melhor) com a obrigação em fazer rodar satisfatoriamente as engrenagens do giallo – gênero, como qualquer outro, de grandes implicações comerciais. Existe a preocupação com verossimilhança, há o cuidado em justificar as ações do protagonista e do assassino, em demonstrar os métodos investigativos da polícia, em inserir na trama alívios cômicos etc. Procedimentos praticamente abandonados a partir de Suspiria (1977), obra posterior a Prelúdio Para Matar, quando o “realismo” é suplantado por elementos sobrenaturais – com eventuais retornos ao velho giallo, como em Tenebrae, que dá mais atenção a movimentos de grua de dois minutos do que à plausibilidade do roteiro. Com resultados maravilhosos, diga-se.
Ferramentas à mão, depoimentos recolhidos, pistas reunidas e Dalmas descobre, finalmente, a imagem/cena: quem se defendia, na verdade, era o suposto agressor e não a suposta vítima. A imagem mente, a imagem fascina e provoca o delírio – imagens em cima de imagens. Para qualquer um interessado na atividade crítica, é sempre possível encarar os atos dos heróis de Argento como resistência ao valor de face. Em tempos, os de hoje, da imagem-clímax, os homens obcecados dos longas do diretor são arqueólogos, exploradores, pesquisadores capazes de viajar distâncias abissais às profundezas do sistema solar em busca do vislumbre de uma imagem que permita inferir a verdade de um passado. A fotografia de Plutão, o tema do momento, reduzido a um meme, é um memorando sobre como boa parte da sociedade atual perdeu a capacidade ou o interesse em escavar, em descobrir o que se esconde por trás do reboco. Desenvolveu um tolo afã por pichar. De acrescentar uma nova camada de sentido sem nunca se preocupar em compreender o sentido original.
A crítica de cinema, e a própria filmografia de Argento, são exercícios de criação que utilizam outras imagens como matéria-prima, imagens de fascínio. Na sociedade dos memes, como tudo é passível de modificação, tudo é fascinante. Se tudo é fascinante, logo, nada é fascinante e o que sobram são páginas e páginas virtuais de imagens modificadas que autorizam a feiura sob a desculpa do humor. Se não pensamos em imagens belas, não produzimos imagens belas.
A pichação venceu.
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